Jornada Pantaneira 

Personagens de Taunay – Parte II

CAPITÃO COSTA PEREIRA

Oficial reformado de cavalaria, morador em Nioaque, passara pelas mais terríveis inclemências para salvar a família, composta de mulher, ainda moça e bonita, distinta nos modos, e de dois filhinhos. Falador, metido a valente e, aliás, exprimindo-se bem e não raro com calor e até eloquência, tinha particular pro­pensão à gabolice. A ouvi-lo, fora ele só quem pusera todos os habitan­tes do Distrito de Miranda fora do alcance da espada dos paraguaios. Verdade é que, depois, na Retirada da Laguna, mostrou, não poucas vezes, singular valentia. Em todo o caso, nos Morros atirara-se com decidida coragem ao trabalho e abrira uma das maiores roças de milho e arroz.

A mulher… que pena me metia aquela senhora, visivelmente de origem, maneiras e aspirações muito superiores ao triste meio em que se vira coagida a viver! Vestida de farrapos, em estado de adiantada gravidez, numa barraca esburacada, de pés no chão, no último grau da anemia, era a imagem da deso­lação e do desânimo. Costa Pereira casou-se nova­mente, no Rio de Janeiro, com uma professora públi­ca e morreu, creio que em 1889, já então quase totalmente cego. Inteligente e com algumas qualidades até distintas, este homem muito se prejudicou pela índole vária ([1]) e a imprudência da linguagem, o que afinal o forçou a pedir reforma e abandonar a carreira das armas, passo de que sempre se arrependeu.

Era muito ruivo, com cabelos anelados, cílios quase brancos, rosto todo mosqueado de grandes manchas de sarda. (TAUNAY, 1948)

JOÃO FAUSTINO DO PRADO

Tenente da Guarda Nacional, com um pai muito idoso, João Leme do Prado, descendente dos grandes e temerários sertanistas das Bandeiras Paulistas que, no século passado, haviam devassado todo esse Sul de Mato Grosso. Era casado com uma mulher indiática e feia. Esse João Faustino tomou-se de grande amizade por mim e dele conservo a expres­são angustiosa com que me interrogou, ao abraçar-me depois da Retirada da Laguna.

–  Ah! meu Taunay.

Dizia em lágrimas.

–  Como é que você, tão delicado, criado na Corte, pôde salvar-se? Saia quanto antes deste Mato Grosso; são terras demais brutas para sua educação e natureza. Deixe-as a mim e a outros que tais, nascidos aqui como gado bravio!

Morava no Morro do Azeite, perto do Rio Miranda. (TAUNAY, 1948)

JOÃO MAMEDE CORDEIRO DE FARIA

Outro mirandense que me dedicou muita simpatia, senão amizade. Bastante calado, saía-se de repente com ditos agudos e engraçados. Para gracejar com ele compus uma quadrinha em língua chané ([2]), que ensinei aos companheiros, e até às índias, e com que acolhíamos o Mamede, quando ele, vindo das matas do Aquidauana, onde se acoitara ([3]), aparecia nos Morros. Também ecoavam estrondosos os aplausos e gargalhadas, provocadas por esta sauda­ção, a que apliquei, ó profanação! Um trecho do minueto [sonata 49, n° 2] do grande Beethoven.

O Mamede e o João Canuto eram filhos de uma D. Maria Domingas, que tinha fazenda de criação, não pouco importante, do lado esquerdo e direito do Aquidauana. Nestas terras é que deveria efetuar-se, segundo opináramos, a passagem das nossas Forças para entrarem no Distrito de Miranda, ainda então ocupado pelos paraguaios. A evacuação do nosso território pelo inimigo, que se concentrou todo na linha do Apa, tornou des­necessária qualquer precaução, abrindo-nos bem franca a estrada geral que passa pelo Porto do Sousa, fazendeiro vizinho daquela D. Maria Domingas. Já de volta ao Rio de Janeiro troquei com Mamede de Faria algumas saudosas cartas. Com pesar real recebi a notícia do seu falecimento. (TAUNAY, 1948)

JOÃO PACHECO DE ALMEIDA

Bem moço ainda, pois não completara 30 anos. Muito magro, estatura média, branco, ou antes, mestiço disfarçado, rosto sobre o comprido, com maçãs muito salientes e faces encovadas, olhos grandes e um tanto esbugalhados, pouca barba, cabelos agarrados ao casco, orelhas sobremaneira destacadas da cabeça, de abano, como dizem. Ativo, simpático, bastante inteligente, amável de natureza, alegre, até certo ponto generoso apesar de alguns hábitos interesseiros, em extremo atirado às mulheres, como, aliás, o geral dos mato-grossenses que conheci.

Este, entretanto, era terrível, realizando o tipo do famoso cavalheiro de Pierre de Brantôme nas “Damas Galantes”, apesar da amásia, extrema­mente ciumenta, de nome Augusta. Era esta mulher quem nos fazia a cozinha, mas como vivia muito retraída nunca a vi bem, trocando com ela bem poucas palavras. Ouvi-a, entretanto, queixar-se várias vezes, e com amargura, das façanhas do amante.

–  Parece, dizia ela, que valho menos do que quanta índia suja e sarnenta há por aí.

E, com efeito, grassava o “acarus scabiei” ([4]) de modo pavoroso entre os índios, por vestirem quantas roupas conseguiam roubar aos paraguaios, muito afeitos a este mal. Nós mesmos não escapamos do terrível parasita e por causa dele não pouco sofre­mos, com grandes acúmulos nas articulações, sobre­tudo cotovelos. Pacheco de Almeida portou-se sempre bem e simpaticamente conosco. Embora ganancioso, jamais quis receber coisa alguma, a menor retribuição, pela hospedagem que nos dava e que durou nada menos de meses. Não pouca gratidão devemos à sua memória, pois era de rosto aberto e jovial que sempre nos falava e respondia quando queríamos discutir essa delicada questão de pagamento. Tinha, entretanto, nos livros de notas e escrituração coisas impagáveis e que denotavam modos de proceder bem diverso em relação a outros. Emprestava dinheiro e adiantava aos índios roupas e gêneros. O capital empregado não podia deixar de ser limita­díssimo, dois mil réis a um, cinco mil réis a outro e quando muito dez mil réis aos que lhe mereciam mais confiança; mas as cobranças, capital e juros se faziam rigorosamente, sendo tudo especificado nos cadernos do “Deve e Haver”.

Com semelhantes teorias e processos, mais de louvar se tornou o desapego de João Pacheco de Almeida para conosco. Depois de certo período de convivência consagrou-nos verdadeira amizade, achando graça em tudo quanto eu dizia e admirando no Pereira do Lago a decisão e o bom senso.

‒  É a cabeça e o braço ‒ costumava dizer.

Por nossa causa, tão identificados em breve tempo ficamos, inimizou-se com o “Tutu” de Miranda, Tenente-Coronel da Guarda Nacional, estabelecido à base da Serra de Maracaju num ponto chamado Buriti a que pomposamente intitulara “Acampamento três léguas e meia em frente ao inimigo”, por se achar, com efeito, àquela distância do Rio Aquidaua­na. Nem por isso, porém, deixava de ser cauteloso e seguro esconderijo, encerrado em pedregosa brenha de bem difícil acesso.

Qual o destino de João Pacheco de Almeida? Acom­panhou, descendo dos Morros, as Forças Expedicio­nárias quando a elas nós, eu e Lago, nos juntamos; fez a marcha de Nioaque para a Colônia de Miranda e daí para a fronteira do Apa e Forte de Bela Vista. Tomou parte na Retirada da Laguna e, nos elogios oficiais lavrados, todos, por minha pena exclusiva, pus todo o empenho em lhe fazer valer os serviços de guerra, já então Tenente em Comissão. Também mereceu o Hábito da Rosa.

O mísero, porém, nem sequer soube dessa distinção que o teria enchido de justo desvanecimento, arre­batado à vida, em junho ou julho de 1867, nesse mesmo lugar dos Morros, por um tiro homicida, mandado dar, dizem, por ordem de um inimigo de longa data. O assassino achara-o dormindo encostado na parede de um rancho de palha; entreabrira simplesmente a delgada separação e encostando-lhe a boca da garrucha ao corpo, fê-lo instantaneamente passar do sono à morte, na bela frase da Bíblia. A cruenta e fácil proeza não ficou, porém, impune. Perseguido pelos amigos e companheiros de Pacheco, foi o miserável capanga morto no mesmo dia.

Não é singular, tantos anos depois, estar eu a evocar a lembrança desse bom e obscuro camarada de passadas eras e para ele pedir, se possível for, um olhar de benevolência da posteridade? Muito não se podia exigir do mais que modesto filho de Mato Grosso na apertada esfera em que nascera, fora criado e finou-se. Não me é lícito, entretanto, esque­cer a boa e franca hospitalidade que me dispensou por tantos meses, sempre risonho, amável e a seu modo generoso e largo. (TAUNAY, 1948)

VALÉRIO DE ARRUDA BOTELHO

Já meio idoso, mas muito alegre e cheio de atividade e iniciativa, morava com a mulher e duas filhas, quase moças, longe do nosso acampamento, num sítio formosíssimo, junto ao Ribeirão das Pirapu­tangas. Ali nos hospedamos, Pereira do Lago e eu, quando fomos explorar a margem direita do Aquidauana, como complemento da Comissão trazida do Coxim.

Que dia agradável e quanta anedota divertida, quanto episódio grotesco nos narrou da invasão paraguaia! Não se poupou a si mesmo, descrevendo os medos tremendos que curtira, apavorando-se de tudo, de um matagal, de uma vaca parada, de um tronco de árvore! Difícil era ter mais verve ([5]), mais espírito natural, do que este bom homem, extremoso e ciumento da sua, aliás, bem organizada família.

Na madrugada seguinte acompanhou-nos e por um raiar esplêndido de incomparável aurora, cantou em dueto com o João Pacheco, ambos bem afinados de voz, melodiosa modinha que sobremaneira me agradou e cuja música ainda hoje reproduzo ao piano.

Como vem linda surgindo

A serena madrugada!

Que saudades agora, neste momento, sinto, ao lembrar-me daquele estupendo cenário, do cantar incipiente de mil pássaros, do ruído longínquo do Aquidauana, encachoeirado naquele trecho, e do colorido purpúreo e áureo do céu em que víamos subir, leve e adelgaçadamente, novelos de fumaça, a mais e mais densa. Eram os paraguaios que, na margem de lá do Rio, começavam a lançar fogo à macega dos campos a fim de prepararem pastagens para o gado… E como nos agradava sentir uma pontinha de frio no calidíssímo Mato Grosso! É que também estávamos em não pequena altitude, naqueles contrafortes da serra.

Recordo-me bem, a este respeito, que no dia 24.06.1866, dia de São João Batista, curti tanto, tanto frio no meu rancho de folhas de palmeira, que mandei fazer fogo no chão e peguei no sono meio asfixiado pelo fumo. Também essa temperatura baixa só dura uns seis a oito dias; depois volta o calor violento, sobretudo em Cuiabá.

Valério de Arruda Botelho sempre nos mostrou muita dedicação e amizade. Ainda vive, estabelecido em Nioaque, onde perdeu a mulher e casou as duas estremecidas ([6]) filhas. Deve estar bem adiantado em anos, talvez para cima dos oitenta. (TAUNAY, 1948)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 16.08.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;    

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Vária: inconstante. (Hiram Reis)

[2]    Chané: língua do grupo Chané formado pelas etnias Terenas, Laianos, Guanás e Quiniquinaus. (Hiram Reis)

[3]    Acoitara: homiziara. (Hiram Reis)

[4]    Acarus scabiei: ácaro que produz a escabiose ou sarna. (Hiram Reis)

[5]    Verve: maginação. (Hiram Reis)

[6]    Estremecidas: queridas. (Hiram Reis) 

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