Jornada Pantaneira 

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Personagens de Taunay – Parte I

Tal amor de exatidão a cenários e espetáculos naturais estende-o Taunay aos personagens da novela, que, todos, existiram – alguns tais e quais, outros reconstituídos em pequenos mosaicos de fragmentos pessoais, diretamente escolhidos entre a gente que conheceu por aqueles sertões. (PINHO)

Taunay transformou-se progressivamente, du­rante a terrível jornada, seu olhar tornou-se, eviden­temente, mais universal, sem perder, porém, a irreve­rência e minudente capacidade que possuía de retratar seus parceiros de marcha e tipos populares que conhe­ceu, com uma franqueza, riqueza de detalhes e invul­gar peculiaridade que só seu espírito extremamente diligente e observador era capaz de captar e reproduzir. Vejamos detalhes da narrativa de Taunay:

CARDOSO GUAPORÉ

Negro velho, muito feio, filho da cidade de Mato Grosso e de quem falo um tanto detidamente em meu livro “A Cidade de Mato Grosso, o Rio Guaporé e a sua mais ilustre vítima” ‒ Laemmert, 1890. (TAUNAY, 1948)

Entre os fugitivos, havia um homem de cor, um preto, velho, muito velho, de mais de 80 anos e de nome Cardoso Guaporé, antigo coletor da Vila de Miranda e que ali gozara de certa importância, pois acumulava às suas funções de exator da fazenda pública o exercício de advogado provisionado, ou antes de rábula.

Filho da cidade de Mato Grosso, ao ouvir pela primeira vez pronunciar o meu nome, mostrou-se sobremaneira admirado e sem vacilar, mas com visível sofreguidão, logo me perguntou:

–  Será por ventura o senhor parente de um Adriano que se afogou no Rio Guaporé e foi enterrado na igreja de Santo Antônio, isto pelos anos de 1827 ou 1828?

–  Sou seu sobrinho. Era irmão de meu pai.

Respondi-lhe em extremo surpreso de encontrar na­queles ínvios recôncavos um conhecido da família, que se remontava à ocorrência já tão antiga.

–  “Ah! que homem aquele!” Exclamou o velho.

E, sem mais se ocupar com o momento presente, que lhe trazia contudo tantas surpresas na sua vida de refugiado e de oculto nas matas, começou o mais ardente e exaltado panegírico ([1]) do ilustre man­cebo, das suas qualidades proeminentes, sua cora­gem indomável, sua alegria incessante, sua atividade estupenda, sua generosidade ilimitada, suas aptidões inexcedíveis de músico, desenhista e poeta, sua ha­bilidade em nadar, caçar e jogar armas, sem esque­cer a notável e impressiva beleza, atraente e máscu­la, que lhe fazia correr mil aventuras de amor e lhe valia tantas e tão espontâneas dedicações, até da­queles que poderiam pretender rivalidade.

–  Onde chegava, disse-me ele, eram festas e dança­dos, que não acabavam mais; partia e só deixava tristezas e saudades, que nem o tempo podia miti­gar. Uma feita, duas mulheres de boa sociedade acutilaram-se de ciúmes com facas de mesa e, ao apartá-las com uma força de gigante, feriu-se nos dedos, dirigindo toda a noite o baile com a mão amarrada em um lenço. Sua morte tomou vulto de verdadeira desgraça pública. Assisti ao enterro, que levou a cidade inteira atrás de si. Parecia algum Capitão-General, como aconteceu com o funeral do Cáceres, de que me lembro ainda hoje, pois já era molecote.

Quantas vezes não indaguei do Cardoso Guaporé a respeito desse tio? Então, rememorando as conver­sas e descrições de meu pai, também o levava a recordar as grandezas de Vila Bela. E aí o velho preto, na dorida expansão do seu bairrismo e a endi­reitar tremulo de comoção os grandes óculos de pra­ta que lhe escorregavam das orelhas e do nariz, tornava-se quase eloquente.

–  Cuiabá, dizia-me ele todo abespinhado e exagerando naturalmente, tem e pôde ter muita coisa boa; mas nunca, nunca lá vi palácios tão ricos e casas tão bem acabadas com lavores [pinturas] pelas paredes e quadrarias [painéis] nas salas, como na minha cidade natal. Era coisa de pôr pasmos até os que vinham das “Europas”. E a igreja de Santo Antônio, toda cheia de riquíssimas alfaias e de imagens cobertas de ouro e prata? Dizem que S. Antônio, o orago, levantou o braço, quando se falou na mudança da capital, excomungando quem disso se lembrara!

–  Nem se calcula o valor das riquezas que contém ainda, embora já lhe tenham sonegado não poucas preciosidades para enriquecer Cuiabá, que tudo nos tirou! E a casa da Câmara, com grandes retratos de El-Rei D. João VI e da senhora D. Carlota? E o sobrado, que metia inveja ao mesmo palácio? E o cais?

–  Parece que era a obra de mais vulto, feita por portugueses no Brasil; coisa muito bem planejada e que costeava o Rio todo, dando um passeio como ainda não e fez igual, todo ombreado de frondosas gameleiras e indo acabar em um laranjal imenso, plantado por ordem dos senhores Governadores Gerais, em que estava metida a capela de S. Antônio, laranjal limpo todas as semana pelos apenados e em que se reuniam nuvens de graúnas e todos os pássaros possíveis. De manhã e à tarde cantavam tanto, que ainda tenho na cabeça o barulho que faziam!

–  E os passeios em torno da cidade? Que lugares lindos e que arraiais magníficos, pontos de fonço­natas [festas] e consoadas [Festas e refeições, depois de jejuns], em que se davam desafios de poetas e cururus [batuques], a que acudiam as pessoas de mais consideração da terra.

–  Casalvasco, com o seu Rio Barbados, era uma delí­cia, com umas ruas muito direitinhas e seu palácio e igreja de boa cantaria, com um lampadário, como não há outro em toda a Província e talvez em todo o Brasil. E o Passo do Rio Alegre? Que ponto de bons regabofes ([2]) e que sítio tão formoso! Ah! Havia em Vila Bela muita alegria.

–  Cuiabá tudo levou, tudo tomou! Nunca se fiem em cuiabanos! São todos imbicioneiros [ambiciosos] e trabucadores [que trabalham de má fé]. Falam muito na sua Serra de Guimarães ([3]), onde cai geada e há uma pedreira que parece encantada; mas ela não se compara com a serra da Vila que se avista da cidade, com o seu Chapéu de Sol.

–  Acusavam aqueles lugares todos de muito doentios, sezonáticos e empestados. De certo, quando o Guaporé enchia demais, havia suas maleitas; mas muitos e muitos anos se passavam sem febre algu­ma e não faltavam velhos e velhas que contavam histó­rias dos primeiros governadores, de Rolim de Moura, depois Conde de Azambuja, Pedro da Câmara e dos dois Cáceres, tanto tempo já haviam vivido.

–  Se há por aí povoação caluniada, é a minha pobre cidade natal, que mataram de uma vez e mataram por simples inveja. Quanta exageração! Quando falavam então no forte do Príncipe da Beira, parece que era lugar excomungado. Meu filho entretanto lá está, há muito tempo!

No meio de todos esses queixumes e encarecimento, em que transparecia a rivalidade ainda hoje persistente entre as cidades de Mato Grosso e Cuiabá, rivalidade repassada de compaixão por parte desta na sua vitória para sempre indiscutível, e por parte daquela que entranhado desespero e quase ódio, via eu, na confirmação de muitos sentimentos de meu pai em relação ao irmão Adriano, reaparecer aquelas pinturas a fresco e manifestações artísticas, que no fundo dos sertões haviam merecido lisonjeiro reparo crítico de quem percorrera o mundo inteiro à pesquisa e na contemplação do belo. Era uma espécie de orangotango.

Rábula, não pouco inteligente e sagaz, exercia na Vila de Miranda o cargo de coletor das rendas gerais e provinciais e fugiu para os Morros com a velha mulher, ambos chegados a mais de oitenta anos. Dotado de não pequeno bócio, ostentava Guaporé os sinais característicos dos grandes antropoformos, prognatismo ([4]) pronunciadíssimo, dentes valentes e saídos para fora da boca, exageradamente enormes, nariz chato com enormes ventas em cujo topo mal podiam aguentar-se uns óculos de grossos aros de prata, olhinhos piscos, protegidos por sobrancelhas em matagal e fronte minúscula e fugidia. Entretanto, contra tantos e tão claros prenúncios de absoluta estupidez, dispunha de bastante agudeza de espírito e passava até por capacidade na Vila, em que chegou a gozar de não pouca influência, já pelos recursos intelectuais de que dispunha e empregava ativamente no mexerico e na intriga, já pela amizade que o ligava ao Tenente-Coronel Albuquerque.

Era um dos nossos vizinhos mais chegados nos Morros e não pouca graça e interesse achava eu em sua conversa, pois se referia, com um sem número de historietas e anedotas, à vida da antiga capital da Capitania do Cuiabá e Mato Grosso e à popularidade, ao prestígio e às façanhas do meu tio, Amadeu Adriano Taunay, que ali estivera em fins de 1827 e de lá nunca mais saiu, afogando-se no Rio Guaporé a 05.01.1828. Metia-se a falar corretamente e dava boas gafes, de que nos ríamos a valer depois em conciliábulo íntimo, eu, Lago e Pacheco. Quando já saíramos dos Morros, morreu-lhe a velha e simiesca esposa de modo bem singular. Em noite de forte ventania, possante árvore, ao cair, rachou a meio o rancho de palha e literalmente esborrachou a pobre que dormia ao lado do importante esposo.

Coisa curiosa e que aqui menciono como engraçado assinalamento histórico, nos anais do casamento civil, Cardoso Guaporé quis estabelecer naquele lu­gar de refúgio, em que não havia Padres, essa útil instituição por cuja promulgação tanto trabalhei nas Câmaras e na Imprensa, incorrendo em muitos ódios e insultos, e que o Governo Provisório, nos primeiros dias da República, a 24.01.1890, decretou, sem pro­testo nem relutância de ninguém, como lei do país.

A ideia de Cardoso Guaporé veio do seguinte modo: um médico, cirurgião do Exército e notável pelas excentricidades e reconhecida ignorância, que fora ter também aos Morros, enamorou-se, embora idoso, de certa moça, filha de pobre velho chamado Cadete, morador no acampamento do Chico Dias. A este pro­pôs tomar por conta, e em casa, o objeto da paixão, até aparecer por ali sacerdote que regularizasse a sumária união.

Teve o pai escrúpulos e foi consultar o oráculo do lugar – o nosso Cardoso Guaporé, ainda que a mãe se mostrasse muito mais fácil e condes­cendente:

–  Ora, Sr. Cadete…

Dizia filosoficamente.

–  Pois não comecei a vida amasiada e por muito favor? Quanto não rolei por aí, até me casar com o Sr.?”

O marido porém não concordava e a tudo resistia. Achou o rábula o caso muito sério e pediu logo 2 mil réis, ou então meio alqueire de feijão, para pensar na dificuldade e buscar resolvê-la. No dia seguinte, apresentou o desenlace: era proceder-se a uma ceri­mônia civil, presidida por ele, de que se lavraria auto, dizia com muita gravidade, segundo as formas do Direito e assinado por três testemunhas, compro­metendo-se o médico, em nome de Deus, do Filho e do Espírito Santo a casar-se perante os altares no primeiro ensejo possível. A princípio concordou o es­culápio ([5]), mas depois se desdisse ([6]), de modo flagrante e afinal rompeu qualquer acordo, tudo isto no meio de muita agitação das famílias e de toda a gente dos Morros. Não se falava noutra coisa e não havia quem desse razão ao velho doutor. “Não passa de rufião”, berrava o Cadete, enquanto a mãe da pretendida observava com e bom senso especial de uma Madame Cardinal [o grotesco tipo literário criado por Ludovic Halevy]:

‒  Vocês o que fazem é espantar a caça. O tal méco ([7]) é muito burro, mas convinha bem à Antônia. A menina já está com os seus dezoito anos e precisa estabelecer-se.

Tive ocasião de ver o original do documento redigido pelo Cardoso Guaporé e apresentado à assinatura recalcitrante do pretendente e dei bem boas gargalhadas.

O mais desapontado de todos foi o autor do expe­diente, que viu fenecer ao nascedouro uma fonte de possíveis reditos. Também sabia vingar-se, “metendo as botas” no desconfiado médico. “Não”, afirmava, enrugando de modo muito cerrado e compungido o feiíssimo rosto de octogenário macacão, “não era ho­mem sério!” E acrescentava com lisonjeira gravida­de: “Dos nossos!

Parece, aliás, que o Sr. Cardoso Guaporé não podia pretender foros de modelo, apontado como useiro e vezeiro em muitas e muitas irregularidades e até falcatruas no exercício do cargo de coletor.

Pacheco acusava-o, quase cara a cara, de ter trazido da coletoria, como seu, grande saco de moedas de cobre, o que parecia pouco provável pelo peso da incomodativa moeda. Certo é que pagava tudo quanto com­prava – e tornara-se um dos melhores fregueses dos índios – com vinténs.

Pobre Cardoso Guaporé! Para que sermos rigorosos para com ele? Em extremo bajulador, frequentemen­te descia ao acampamento dos Buritis para intrigar-nos com o Comandante, levando-lhe um sem-núme­ro de bisbilhotices e mexericos.

A cada momento estranhava que os dois engenhei­ros, um Capitão e outro, simples Alferes, não pres­tassem mais obediência a tão elevada patente da Guarda Nacional. E tanto insistia nisto que o velho mandão da roça, ainda que astucioso e prático na vida, afinal se impressionara com a pretendida falta de disciplina e conosco armou aberto conflito.

Cardoso Guaporé faleceu uns dez ou doze anos depois da nossa estada nos Morros, em 1876 ou 1878. Voltara à Vila de Miranda, onde fora reintegra­do nas funções de coletor. (TAUNAY, 1948) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.08.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Memórias do V. de Taunay ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Instituto Progresso Editorial, 1948.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Panegírico: elogio. (Hiram Reis)

[2]    Regabofes: festa em que se bebe e come à farta. (Hiram Reis)

[3]    Guimarães: Chapada dos Guimarães. (Hiram Reis)

[4]    Prognatismo: crescimento excessivo da mandíbula. (Hiram Reis)

[5]    Esculápio: médico. (Hiram Reis)

[6]    Desdisse: negou. (Hiram Reis)

[7]    Méco: médico. (Hiram Reis)

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