Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Pereira do Lago ‒ Um Herói Anônimo Parte II

A têmpera dos heróis anônimos da Retirada da Laguna forjada na caserna e aperfeiçoada nos desafios impostos pela carreira das armas aproxima estes seres dos deuses das guerras e povoa o imaginário dos pueris mortais. Os heróis são homens de coragem, homens capazes de se imolar por uma causa; não são homens comuns. Vamos reproduzir, a seguir, a biografia de um deles publicada na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda, editada em 1893, de autoria do Visconde de Taunay.

Apontamentos Biográficos

II

Declarada a Guerra do Paraguai, não podia o brioso militar conservar-se retraído e em Comissão civil, quando tudo o impelia a ir servir a pátria nos pontos de mais perigo e assim pagar-lhe com juros todos os benefícios que dela havia recebido em proteção, auxílios e principalmente instrução, desde a primária até à superior.

Quebrando, pois, sem vacilação a doçura da vida de família, já com dois filhinhos a lhe alegrarem o lar doméstico, foi ao encontro de qualquer chamado e, apresentando-se ao Quartel General, teve a 09.03.1865, ordem de se pôr à disposição do Presidente Comandante das Armas da Província de Mato Grosso, então nomeado, Cel Manoel Pedro Drago, a fim de seguir para aquela parte do Brasil invadida e ocupada em sua Zona Meridional pelos inimigos.

Já no caráter de Ajudante da Comissão de Engenheiros, dirigida e cuidadosamente organizada pelo seu antigo Chefe no Rio de Janeiro e amigo, então Tenente-Coronel José de Miranda da Silva Reis. Anteriormente fora já, por decreto de 28.11.1863, promovido a Capitão, dois anos depois de concluído, com aprovações plenas, o Curso de Engenharia Civil, em 1861.

A 01.04.1865 partiu Pereira do Lago para a Expedição de Mato Grosso, que tantas inclemências teve que suportar, mal se afasta do litoral, internando-se no sertão.

Após penosas e dilatadas marchas em que muito padeceu a coluna, já pela carência de víveres apura­da até à fome, já por várias e mortíferas epidemias, viu todos os seus sofrimentos coroados pela terrível Retirada da Laguna hoje bem conhecida na história e citada com honra e como prova frisante do quanto podem, nas mais tremendas conjunturas, a constân­cia, a coragem e o pundonor militar.

Durante interminável viagem pelo interior do Brasil baldo de recursos [dois anos para se chegar à Zona de Operações!] na economia interna das forças expe­dicionárias, no serviço diário dos acampamentos, nas explorações e, sobretudo, passagens de Rios vadeá­veis ou não, nos reconhecimentos e combates e, acima de tudo, nos mais horrorosos trechos da Retirada, foi o Capitão Pereira do Lago inexcedível em resolução, sangue frio e serenidade, exemplo contínuo, sem o menor desfalecimento, a quantos quisessem dar cumprimento inteiro a deveres torna­dos então sacrifícios quase sobre-humanos.

Assistente do Ajudante-General, cargo de importân­cia capital naquelas circunstâncias, pronto, além dis­so, para todos os serviços e para as mais arriscadas comissões, superior às maiores intempéries, a repre­sentarem legítima subversão da natureza mato-grossense, já de si áspera e selvática, sempre na frente de todos, nos postos mais perigosos, não houve elogios que dos Chefes e camaradas não alcançasse e não merecesse.

Por vezes foi a verdadeira alma, o “Braço Forte” da infeliz coluna em seu Movimento Retrógrado da linha do Apa a Nioaque, principalmente quando, em fins de junho de 1867, depois dos medonhos estragos do “cholera morbus”, o acúmulo e a agravação das mi­sérias e desastres a quase todos haviam alquebrado o ânimo e a vontade de lutar e resistir. Simples Capitão patenteou, nesses crudelíssimos e inesquecíveis dias, qualidades e temperamento de legítimo e prestigioso General, dependendo, em não poucas ocasiões, a salvação geral da sua pertinácia e inquebrantável calma.

Se é preciso morrer ‒ costumava bradar aos tímidos e desconsolados ‒, pois bem morramos todos! Neste mundo ninguém fica para semente; disto podem ter certeza.

Verdade é, que a responsabilidade da marcha até à fronteira paraguaia e da invasão do território inimigo sobre ele cabia quase inteira, pois fora o seu voto preponderante no Conselho de Guerra em que se decidira a temerária aventura, era temerária, de fato; pois de 1.600 homens de guerra que trans­puseram o Apa, só voltaram, trinta e cinco dias depois, 720! Dessas angustiosíssimas semanas, em que a coluna brasileira se arrastava por impenetráveis e imensos campos, tangida pelo desespero, cercada de incên­dios diariamente renovados por ferozes persegui­dores, buscando só e só salvar as suas bandeiras e os seus canhões ‒ isto é, a sua honra ‒ entregue a todas as contingências imagináveis da morte pela fome, pela peste e pelas balas, daquele período tão extraordinário diz concisamente a Fé de Ofício de Pereira do Lago o seguinte:

Na parte que o Comandante do 17° de Voluntários da Pátria deu ao Comando das forças a 6 de maio, foi declarado que, tendo pedido para acompanhar aquele Batalhão, muito o coadjuvou, dando provas da maior coragem e marchando sempre na frente. Tomou parte na retirada das Forças para o Forte paraguaio de Bela Vista a 8 e daí para Nioaque, onde chegou a 11 de junho. Assistiu aos combates de 6, 8, 9, saindo as forças do acampamento da Invernada e ao geral de 11, tudo do mês de maio, à margem direita do Rio Apa, e bem assim aos tiroteios contínuos de 14, 16, 18, 19, 23, 25 e 26 do dito mês de maio. Em virtude da nova organização dada, em Ordem do Dia do comando a 1° de Junho, à Comissão de Engenheiros, reduzindo-a a três mem­bros e estes pertencentes à arma especial, deixou por isso o exercício da mesma Comissão. Na Ordem do dia do Comando em Chefe, n° 3, de 8 do mesmo mês, relatando as ocorrências nas marchas, contramarchas e combates foi seu nome contem­plado várias vezes por ter-se portado sempre com bizarria e sangue frio, dignos de muito particular menção.

Com mais especificação e naturalmente menos frieza oficial, diz a história da Retirada da Laguna em suas páginas 86 e 87, resumindo em breves traços o caráter do notável militar e mostrando a participação que tivera nas imprudências da coluna expedicionária e no resgate de todos os heroicos confrontos:

À testa dos mais entusiastas se via o Capitão Pereira do Lago, oficial tão atilado, quanto positivo e pertinaz, com uma coragem que facilmente se exalta e nunca desce do nível a que uma vez sobe. Cabe-lhe certamente o maior quinhão nas nossas temerida­des; mas também, mais tarde, soube sempre nas jornadas mais difíceis da nossa retirada fazer frente a todas as necessidades do momento com a sua atividade, com a sua poderosa iniciativa e com a perspicácia do seu lance de vista, grandes dotes, ainda de mais a mais realçados pela sua lisura, amenidade e simplicidade de caráter.

E, aludindo a fatos anteriores, acrescenta aquela narrativa:

Há muito conhecíamos quanto dele se podia esperar. Mais de um ano antes, quando o desventurado General Galvão se viu em risco de morrer à fome com toda a sua gente no Coxim, coube à Comissão de Engenheiros ir reconhecer a possibilidade de passagem para o Sul, e os perigos dessa exploração, a caminhar-se para frente sem guia através das planícies inundadas que nos cercavam, eram tais e tão evidentes, que os Engenheiros, com autorização do seu Chefe, confiaram à sorte de apontar entre eles os dois oficiais que assim deviam arriscar-se. O primeiro nome que saiu da urna foi o de Taunay: a única probabilidade de salvação para ele em semelhante incumbência era ter por companheiro um homem como o Lago, e felizmente o segundo bilhete continha essa indicação. A satisfação foi geral; homenagem prestada ao mérito em uma dessas ocasiões em que só a verdade se manifesta.

Acampadas afinal as forças expedicionárias no Porto Canuto, junto ao Rio Aquidauana, objetivo de todos os seus esforços durante a Retirada da Laguna pelo apoio que lhe davam os contrafortes da serra de Amambaí, também chamada Maracaju, e terminadas assim as operações de guerra, gloriosas de certo, mas totalmente infrutíferas, teve a coluna ordem de seguir, depois de conveniente descanso e reparação, para a capital Cuiabá. Com muita ordem e rapidez fez-se essa longa marcha de concentração, desenvolvendo nela o Capitão Lago, segundo reza a Ordem do dia de 19.10.1867:

Constantes e nunca suficientemente louvados zelo e inteligência e concorrendo para que tudo caminhasse sempre com a máxima regularidade e disciplina.

Concluídas todas essas afanosas obrigações, pediu então para se reunir ao seu Corpo do Estado-Maior de 1ª Classe e partir para o Rio de Janeiro e na Ordem do dia de 21 de Novembro, ao deixar as funções de Assistente do Ajudante General, em que tanto se distinguira e tão alto se levantara no conceito de todos, colheu ainda os mais estrondosos elogios. Fez-se de viagem e, no dia 20.02.1868, apresentou-se na Corte ao seu Corpo.

Já então, pelos extraordinários feitos de Mato Grosso lhe brilhava no largo e leal peito o oficialato da Ordem da Rosa, além do hábito de Aviz conquistado por 20 anos de irrepreensíveis serviços e compa­nheiro da medalha da campanha do Uruguai, que ganhara como simples Praça de Pret. (Taunay, 1893) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 31.07.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda – Companhia Tipografia do Brasil, 1893.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

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