Jornada Pantaneira
Mulheres Guerreiras – Parte XIV
Valquírias Americanas
A Constituição n° 115
Fortaleza, CE – Quinta-feira, 09.06.1870
Exterior – Paraguai
Por decreto de 4 de maio, o Governo Provisório declarou propriedade da nação os bens que pertenceram a Solano López, e embargados os de Elisa Lynch até a solução de quaisquer causas públicas e privadas, civis ou criminais que a respeito deles se instaurem. Um artigo dispõe que, para que não se apaguem os vestígios dos crimes que a consciência pública faz pesar sobre a mesma Lynch, seja esta quanto antes processada criminosamente e intimada a comparecer por si ou por procurador bastante. Na previsão de que ela não acuda à citação, mande-se-lhe nomear um advogado que a defenda “ex officio”. (A CONSTITUIÇÃO° 115)
Correio da Victória n° 47
Vitória, ES – Quarta-feira, 22.06.1870
Rio da Prata
Diário Oficial de 24 de maio findo noticia o seguinte:
O Governo Provisório do Paraguai expediu um decreto declarando propriedade da nação os bens do extinto ditador López, e embargando provisoriamente os bens adjudicados a Sr. Elisa Lynch. (CORREIO DA VICTÓRIA N° 47)
A Reforma n° 220
Rio de Janeiro, RJ – Sexta-feira, 30.09.1870
Variedades
Madame Lynch
Lynch é irlandesa de nascimento, e casou muito jovem com um médico francês. Pouco tempo depois de casada começou a ser infiel a seu marido, e este se separou dela. Moça, bonita, dotada do algum talento e de um gênio vivo e empreendedor, não lhe faltaram adoradores entre o mundo elegante que vive nessa Babilônia moderna chamada Paris, e em breve Lynch se tornou uma leoa de primeira força.
Foi nestas circunstâncias que F. S. López, a encontrou entre as deidades que povoam o mágico “Jardim de Mabille”, quando seu pai o mandou viajar à Europa. Lynch, com a fina penetração que a caracteriza, reconheceu logo que López era o homem que lhe convinha, e em pouco tempo o jovem paraguaio estava escravizado pelos lânguidos olhares da astuta inglesa que o dominou completamente até seus últimos momentos. Chamado por seu pai ao solo natal, López não quis separar-se de sua amante, esta mostrou os mesmos desejos, e ambos partiram para o Paraguai.
Ali chegados, López que desde sua infância tivera costumes dissolutos, quis introduzir sua amásia na sociedade paraguaia, e ligá-la à sua família. Como os costumes não estavam ainda corrompidos, todos lhes deram as costas e fugiram da concubina inglesa que vinha tentar fortuna em um país da América. Lynch não pode reagir, e sujeitou-se a viver obscuramente em companhia do seu amante, mas, mulher de maus instintos, abrigou em seu coração os desejos de vingança, e aproveitou o tempo para cada vez mais ir ganhando influência sobre o espírito do homem quem estava ligada, até o dominar completamente.
Com a morte do velho López, subiu López filho ao poder. Não havia mais barreira nenhuma para a realização dos planos de Lynch; o senhor dos destinos do Paraguai, o ditador de um povo por excelência obediente, era escravo de Lynch! Esta mulher astuta e sem o pudor inerente a seu sexo, apresenta-se como quem é, isto é, como a amante do ditador.
Este quer e ordena que todos a respeitem e considerem, e assim se faz. Vive em um Palácio perto do Palácio de López, aparece com este em toda a parte, quer sejam atos públicos quer particulares o dedo delicado da inglesa divisa-se em todos os negócios da República. Em pouco tempo Lynch é dona de vastos terrenos, possui casas e quintas, criados e equipagens, etc., etc.
López, não podendo casar-se com sua amante por esta ter ainda o marido vivo, faz com que seus íntimos o imitem, e em poucos amigos se vê que quase todos os mais altos funcionários públicos vivem amancebados com moças das primeiras famílias que aceitavam essa degradante posição com toda a resignação desde que “El Supremo” assim o queria o assim o praticava.
Lynch relacionou-se com todas as boas famílias paraguaias, e já ninguém lhe fechava as portas. Começava a exercer sua vingança. O Bispo atraiu o ódio de Lynch, por que foi o único, creio, que desaprovou o modo de viver de López e quis opor-se à torrente desmoralizadora que ia invadindo seu País. Teve, porém, de recuar, reconhecendo que desgostava a López e havia caído no desagrado da valida ([1]).
Lynch é ambiciosa, o pequeno teatro do Paraguai não lhe bastava, concebeu a ideia de formar uma grande monarquia no Rio da Prata, que contrabalançasse o poder brasileiro e a incutiu no ânimo de López. Lynch bem sabia que não podia ser rainha de direito, mas o seria de fato, além disso tinha filhos e toda a sua ambição era que seu filho fosse rei. A República Oriental do Uruguai e a nossa Província de Mato Grosso unidas ao Paraguai, formariam o território do novo reino!
López começou pois a preparar-se para levar a efeito seu plano; militarizou o Paraguai, formou grandes depósitos, comprou numerosa artilharia e começou mesmo a dar-se ares de soberano coroado nas cerimônias oficiais e na sua vida doméstica.
Lynch era demasiado inteligente para deixar que López se atirasse às tontas a uma guerra de conquista; era mister um pretexto para encetar a guerra, e esperavam por ele. A nossa questão com a República ao Paraguai e o bombardeamento e tomada de Paysandú lhe sugeriam e López o aproveitou.
Começada a guerra, não tardou muito que Lynch reconhecesse que não podia realizar seu sonho dourado, e que o sonhado reino se evaporava.
Concebeu então um novo plano, passar para a Europa uma fortuna que lhe garantisse seu futuro e o de seus filhos, e perseguir até o extermínio todos aqueles que tinham desairado ou haviam recusado admiti-la em sua chegada ao Paraguai. Abusando da preponderância que tinha, sobre o tirano e dotada do instintos mais ferozes do que ele, denunciando uns, intrigando outros, fez que todos os seus inimigos ou desafetos, fossem fuzilados ou terminassem nas pontas das lanças dos verdugos de López, muitos depois de terem sofrido horríveis tormentos!
A vingança dessa pantera de saia e lindos olhos azuis, foi até à própria família de seu amante! Depois de haver feito fuzilar o Bispo, tendo-o denunciado como conspirador contra a vida de López, trama terrível em que também foram vítimas os próprios irmãos do tirano, ainda essa mulher não se achou satisfeita. Não achando mais homens em quem se vingar, começou sua vingança pelas mulheres.
As filhas ou esposas dos supliciados eram mandadas chamar à sua presença e obrigadas a servi-la como criadas e costureiras. Em poucos dias, essas desgraçadas caiam no desagrado da favorita que mandava açoitar a umas e lancear a outras, sempre sob o pretexto de traição! Novas vítimas eram chamadas, para em pouco terem igual fim. Com todo esse quadro de horrores, com tanto sangue derramado, ainda Lynch não estava satisfeita em sua sede de vingança. A velha mãe do tirano suas duas filhas ainda estavam vivas, ainda choravam a morte de seus filhos e maridos fuzilados para satisfazer os caprichos da favorita. Lynch não desanimou, já tinha feito de seu amante um fratricida, era mister torná-lo também matricida! A respeitável matrona e suas duas filhas foram acusadas por Lynch de haverem envenenado um mingau que ela e López deviam comer…
Repugna escrever fatos desta ordem, que creio não tem exemplo na história! Todos sabem, é notório porque todos os correspondentes o escreveram, que a mãe do ditador devia ser fuzilada no mesmo dia em que ele caiu morto aos golpes dos nossos soldados; ninguém ignora, porque todos os que caíram prisioneiros nesse dia são contestes ([2]) em o afirmar, que a mãe e irmãs de López eram açoitadas logo que ficavam melhores das feridas resultantes dos açoites anteriores!
Depois que Lynch caiu em nosso poder, estudou um meio de viver bem com seus aprisionadores, conseguindo sempre dominar os que se lhe aproximassem. Dócil, amável, conversação variada e interessante, patenteando espírito e instrução, mas sempre altiva e incisiva. A bordo do vapor “Princesa”, onde se demorou bastante tempo, foi à princípio completamente desprezada pelos oficiais, que nem a ela se chegavam, afinal tinha ela conseguido com suas delicadas e elegantes maneiras desvanecer esse ódio que a princípio inspirara, porque os nossos jovens oficiais se acostumaram a ver nela só uma mulher e uma mãe rodeada de filhos órfãos.
O Sr. Conselheiro Paranhos, nas frequentes visitas que fazia a bordo a fim de conferenciar ou conversar com ela sobre muita coisa que ela podia esclarecer como íntima do tirano, dava-lhe a honra de a conduzir pelo braço para cima da tolda, e aí passavam juntos por muito tempo. A amabilidade dos oficiais, e a consideração que lhe despendia o nosso Ministro, tornaram essa mulher atrevida e insolente, de um modo quase insuportável. Em um dos últimos dias que passou a bordo, conversando com alguns oficiais sobre vários fatos da guerra, disse de repente:
‒ S. Exª o Sr. presidente [como sempre chama a López] se tivesse tomado o meu conselho teria mudado a face da Guerra por ocasião da passagem de Humaitá, era isso questão de mais quinhentas ou seiscentas onças de ouro.
‒ Como?
Perguntou-lhe um dos oficiais.
‒ Comprando o Delfim ([3]).
Respondeu ela.
‒ Com o que teria S. Exª encouraçados para destruir o resto da esquadra brasileira.
O Sr. Capitão-tenente Eduardo Wandenkolk, indignado com tal insulto atirado à nossa Marinha de Guerra por uma mulher que só tinha recebido favores dos mesmos, a quem tão grosseiramente insultava, achando-se, de mais a mais, sob a proteção da nossa bandeira, rompeu com ela e disse-lhe verdades amargas que a fizeram empalidecer; todos a abandonaram, e ela se viu na necessidade de acelerar sua viagem.
Chegada a Humaitá, ainda aí encontrou um brasileiro tão benévolo que a foi buscar a bordo em um escaler, e a conduziu pelo braço para a sua casa, onde; ficou hospedada o tempo que ali se demorou; refiro-me ao Brigadeiro Salustiano, comandante militar daquele ponto.
No Rosário, Lynch foi recebida pelo governador com todas as distinções, pelo que foi fustigado por toda a imprensa argentina.
Em Buenos Aires ninguém fez caso de Lynch, e isso a picou ([4]). Mulher que se não deixa vencer por qualquer coisa, imaginou logo um meio de fazer com que essa grande capital se ocupasse com seu nome por alguns dias. Sabedora de que o Dr. Varella ([5]) havia sido encarregado por um editor de Buenos Aires, de escrever um livro intitulado “Elisa Lynch” dirigiu-se à casa desse senhor e pediu uma conferência. Nessa entrevista Lynch mostrou-se extraordinariamente amável e delicada, não pronunciando a mais insignificante palavra ou alusão que de leve ofendesse aos aliados. No correr da conversação ela contou como tinha sido aprisionada e que havia sido muito bem tratada pelo General Câmara e que só lamentava a perda de dois objetos a que ligava grande interesse, um álbum e uma joia de uso pessoal.
‒ Talvez lhos roubaram.
Disse Varella, ao que ela respondeu logo:
‒ Não, senhor, não acuso ninguém, extraviaram-se.
Lynch enquanto esteve em Buenos Aires, fez todo o possível para ver se podia tomar conta em nome de seus filhos de todos os bens que López possuiu naquela cidade. Muitas vezes foi vista passeando em carruagem, sempre rodeada de seus filhos. Estes apareceram duas vezes no Teatro Lírico ocupando um camarote de segunda categoria. Trajavam todos uniformes militares, isto é, calças e blusas escarlates e fumo ([6]) no braço e eram acompanhados por uma criada e um criado.
Na véspera de sua partida, teve uma nova entrevista com Varella, durando desde as 21:00 até a 01:00 hora da noite! Ao despedir-se, disse a Varella:
‒ Não creio, Sr. Varella, que o seu livro tenha grande popularidade se me não insultar bastante, hoje todos me atribuem todo o mal, sem se recordarem do bem que fiz.
A imprensa periódica referiu todos estes atos, e por conseguinte obteve o que desejava ‒ não passar desapercebida em Buenos Aires.
Segundo os documentos e mais papeis que lhe foram encontrados e suas próprias declarações, tem essa mulher hoje na Europa uma fortuna maior de 500 contos passada toda por intermédio dos cônsules italiano e francês em Assunção, pelo célebre Ministro Mac-Mahon ([7]). Diz que vai educar seus filhos e pô-los em estado de um dia poderem vingar seu pai.
Se o Governo Provisório não tivesse tido cuidado de sequestrar todos os bens dessa mulher, ela poderia chamar-se hoje dona de meio Paraguai. Há quem diga que ela vai tentar fazer com que o governo inglês entabule reclamações diplomáticas a esse respeito e que talvez consiga alguma coisa. [Extraído] (A REFORMA N° 220)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 12.07.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
A CONSTITUIÇÃO N° 115. Exterior – Paraguai – Brasil – Fortaleza, CE – A Constituição n° 115, 09.06.1870.
A REFORMA N° 220. Variedades – Madame Lynch – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – A Reforma n° 220, 30.09.1870.
CORREIO DA VICTÓRIA N° 47. Rio da Prata – Brasil – Vitória, ES – Correio da Victória n° 4, 22.06.1870
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
[1] Valida: favorita, protegida. (Hiram Reis)
[2] Contestes: estão de acordo, concordes, unânimes. (Hiram Reis)
[3] Delfim Carlos de Carvalho foi comandante da 3ª Divisão Naval na Guerra do Paraguai onde recebeu o título de “Barão de Passagem” pelo memorável feito de transpor Humaitá. (Hiram Reis)
[4] Picou: angustiou. (Hiram Reis)
[5] Varella: refere-se ao escritor uruguaio Héctor Florencio Varella, de pseudônimo Orion, que escreveu o livro “Elisa Lynch” publicado pela “Imprenta de La Tribuna”, em 1870. (Hiram Reis)
[6] Fumo: faixa de tecido preto indicativo de luto. (Hiram Reis)
[7] Martin Thomas McMahon: General norte-americano Ministro Residente no Paraguai durante a Guerra, não só apoiou as ações bélicas contra a Tríplice Aliança, como também acompanhou López em sua fuga pelo interior do Paraguai. (Hiram Reis)
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