Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

Decisiva Batalha – Parte III

Na beira do rio batiam-se os últimos pregos das jangadas que deviam servir ao transporte, nos acampamentos dos corpos dava-se a última de mão aos cestões e salsichões, que se estavam preparando havia dias; no Quartel Mestre recebiam-se milhares de sacos entregues pelos fornecedores, e na Comissão de Engenheiros reuniam-se pás, enxadas e picaretas.

À tarde, estava tudo pronto e, em jangadas, canoas e pequenos vapores, foram embarcados cestões, sacos, salsichões, utensílios de sapa, munições de boca e de fogo, 4 canhões e outros tantos morteiros; os primeiros, pertencentes à 1ª Bateria do 16° Batalhão de Artilharia a pé, sob o comando do Capitão Francisco Antonio de Moura, os segundos, constituindo uma Bateria Especial, sob o comando do Capitão Antonio Tibúrcio Ferreira de Souza.

Depois, chegou a vez de embarcarem-se o 14° de Infantaria, formado em grande parte por guardas nacionais do município neutro e comandado pelo Major José Martini; o 7° de voluntários, organizado em S. Paulo e comandado pelo Tenente-coronel Francisco Joaquim Pinto Pacca; um contingente do Batalhão de Engenheiros, sob o comandado do Capitão Brazílio de Amorim Bezerra.

O embarque de todo esse pessoal, 900 homens, e sobretudo de tão pesado material, consumiu toda a tarde e os primeiros momentos da noite.

Concluído ele, jangadas e canoas, a reboque dos pequenos vapores, puseram-se a caminho para a ilha, e a ela aportaram já a hora avançada, sem terem sido incomodados pelo inimigo, a quem, de certo, não haviam escapado os preparativos da expedição, mas que ignorava o seu destino. A ilha como já dissemos, é um simples banco de areia, completamente submergido nas grandes cheias do Paraná.

Tem uma forma um tanto oval e o seu maior diâmetro fica paralelo às margens do rio. Está muito mais próxima do território paraguaio, a que pertence do que do correntino, mas á ainda separada daquele por um canal assaz largo e, como depois se soube, bastante profundo.

Quando nela desembarcou a expedição estava em grande parte coberta de, alta e espessa macega. Dominava-a o fortim do Itapiru, ao alcance de um tiro de carabina. A bateria desse fortim, e as que os paraguaios colocassem na margem do rio, poderiam facilmente varrê-la. A posição seria, pois, insustentável, se os ocupantes não tratassem logo na mesma noite de seu desembarque, de levantar seguras trincheiras que os abrigassem na manhã seguinte das balas, que, era de esperar, choveriam sobre eles. Foi esse o primeiro cuidado do Tenente-coronel João Carlos de Villagran Cabrita, comandante da Força, Expedicionária. Com uma atividade digna dos maiores encômios traçou logo a linha das trincheiras e distribuiu o trabalho entre os seus subordinados, que com ardor puseram mãos à obra.

Os cestões e os salsichões estavam preparados; não faltava areia para encher os sacos; sobravam enxadas e pás para cavar um terreno pouco consistente; os braços eram robustos e diligentes.

Estes preparam o fosso, aqueles enchem os sacos, outros os empilham e colocam cestões e salsichões.

Durante toda a noite estes novecentos homens trabalharam sem cessar, mas quando o dia surgiu uma forte linha de trincheiras, guarnecida por oito bocas de fogo, os protegia da artilharia inimiga; estavam desde então solidamente estabelecidos em um pedaço do solo paraguaio.

As trincheiras, eram duas, mas formavam uma única linha defensiva, desenvolvida pouco mais ou menos no sentido longitudinal da ilha. A da direita era um pouco oblíqua à direção das margens do rio.

Mais aproximada na sua extrema direita da margem correntina do que da paraguaia, formava depois na esquerda um angulo obtuso, cujo vértice era dirigido para o Itapiru. A parte dessa trincheira que, vindo da direita, precedia o ângulo, abrigava o 7° de Volun­tários e o 14° de Infantaria; a parte que sucedia ao ângulo estava guarnecida por dois canhões.

No prolongamento dessa parte artilhada, em uma direção paralela às margens do rio, erguia-se a trincheira da esquerda, mais cuidadosamente feita do que a da direita, e guarnecida por dois canhões e quatro morteiros.

A trincheira da direita não chegava ao rio, havia ai um pequeno espaço limpo de fortificação por onde se podia passar com facilidade.

Entre a trincheira da direita e a da esquerda ficava também uma abertura, no centro da qual foi plantado o mastro da bandeira; entre a trincheira da esquerda e o rio permanecia um extenso trato de terreno sem nenhuma obra de arte, oferecendo portanto a máxima facilidade a quem quisesse contornar a fortificação e entrar nela por um flanco.

Desta tão sucinta descrição vê-se que, se essas trincheiras abrigavam a guarnição dos canhões inimigos, mal a resguardariam se ela fosse assaltada.

Mas não se temia um assalto: de dia seria ele impossível, à noite deveria ser considerado altamente temerário, pois quando mesmo os assaltantes conseguissem tomar a ilha, seriam despedaçados pelas metralhas dos grossos canhões da esquadra.

Começava-se a guerra, não se sabia até que ponto de audácia, mesmo de loucura, chegariam as agressões paraguaias e podia-se pensar assim. Mais tarde, Cabrita não confiaria nesse raciocínio: a esquadra guardaria a retaguarda da fortificação, e esta formaria um recinto fechado.

No dia 7, pela manhã, viram os paraguaios, natural­mente com pasmo, o pavilhão brasileiro hasteado na ilha. O Itapiru abriu logo fogo, a resposta não se fez esperar.

Começou um combate de canhão e de um ou outro tiro de carabina. Nessa luta realmente improfícua de lado a lado, ora vigorosa, ora fracamente susten­tada, escoaram-se os dias 7, 8 e 9, e assim se es­coariam provavelmente todos os que lhes sucedes­sem, se López não fosse o Diretor Supremo do Exér­cito Paraguaio. Era López um General excepcio­nalíssimo. Fugindo pessoalmente do perigo, cautelo­so da própria individualidade até o ridículo, só lhe apraziam, entretanto, as operações arriscadas.

Não o intimidava o plano mais audaz, contanto que outros que não ele o executassem. Cheio de estulta vaidade, desprezava os mais positivos princípios da arte militar.

Se uma operação tinha dez probabilidades a favor e noventa contra, por isso mesmo a preferia; é dotado de um profundo desprezo pela vida dos homens que derramavam seu sangue para satisfazer-lhe a ambição, empenhava-os em tentativas arriscadíssi­mas, mandando-os à morte com implacável sereni­dade.

O Coronel José Eduvigis Díaz, seu favorito então, lhe suscitou a ideia de expelir da ilha os brasileiros, tomando-lhes os primeiros canhões que nessa guerra haviam rolado sobre o solo paraguaio. Si tivesse bom êxito, esse golpe desmoralizaria o Exército Aliado, se corresse mal, perder-se-iam algumas centenas de vidas, coisa para López de mínima importância.

A ideia era atrevida, por isso mesmo agradou, e entre o Ditador, Madame Lynch e o Coronel Diaz foi logo concertado o Plano da Operação. Mil e duzentos homens, escolhidos entre as melhores praças do exército paraguaio, seriam divididos em três colunas de 400 homens cada uma. O comando da primeira caberia ao Major Romero, homem astuto e refalsado ([1]).

Essa coluna embarcar-se-ia em canoas um pouco acima da ilha e, deixando-se levar pala correnteza, a favor das sombras da noite a deveria alcançar, desembarcar sem ser pressentida, atacar a trincheira, tomá-la de surpresa, aproveitando-se da estupefacção de seus defensores.

As outras duas partiriam, uma após outra do ponto mais vizinho da ilha, e ganhá-la-iam à força de remos, logo que a primeira tivesse desembarcado: constituiriam as reservas e deviam decidir da vitória, caso esta fosse disputada.

Na noite do dia 9, estava tudo preparado para realização, desse plano. Grande número de canoas, cercadas de aguapés amarrados às bordas, para ocultar-lhes as formas sob uma capa de verdura, esperavam os soldados que deviam transportar. Estes estavam reunidos na margem, armados e municiados. Ia dar-se a ordem de embarcar, quando ouviu-se tropel de cavalos. Pouco depois estacou em frente da tropa uma amazona montada em soberbo ginete, tendo a seu lado um menino é atrás um numeroso Estado-Maior.

Se a noite não fosse tão escura, ver-se-ia que essa amazona era uma mulher de trinta anos, de porte elevado e de formas amplas e acentuadas. Bastos cabelos castanhos, quase louros, emolduravam-lhe a testa elevada e lisa. Suas feições regulares podiam passar por belas, se já não estivessem como que empastadas por uma camada demasiadamente abundante de tecido adiposo, que alterava a pureza das linhas.

Seus olhos azuis, com reflexos amarelados quando a ira os acendia, tinham o brilho incomodo e frio do aço polido, se ela intencionalmente os não ameigava. Era de certo pujante a natureza daquela mulher. Brunehaut ([2]) e Fredegunda ([3]) foram sem dúvida assim. Naquela fronte que sabia vergar-se com a mais perfeita humildade, erguer-se com soberba Im­perial, e iluminar-se de uma aureola seráfica ([4]), conforme as necessidades de momento, assentava bem a coroa que cingiram aquelas duas rainhas francas.

Como elas ambiciosa, hipócrita, inteligente, perversa e lasciva, era capaz de passar ainda palpitante de volúpia da misteriosa recâmara votada a Vênus ao severo gabinete do conselho, onde, inspirada pela sede do poder, ninguém se mostrava mais calmo, mais friamente calculista, mais hábil em forjar intrigas, em formular planos, em preparar vinganças.

Essa amazona era Madame Lynch, a amásia ([5]) de López, o mau gênio do Paraguai, apanhada pelo ditador nos prostíbulos de Paris, para vir com seus pés, que pareciam destinados somente a levantar o pó das bodegas da grande capital, pisar sobre a cabeça de um povo americano, cujas donzelas prostituiu, cujas matronas chicoteou, cujos homens fez matar ou envileceu sem dó nem compaixão! (O GLOBO N° 97) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 07.06.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

O GLOBO N° 97. Aniversário do Ataque da Ilha do Cabrita ou Da Redenção – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – O Globo n° 97, 10.04.1875.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Refalsado: traiçoeiro. (Hiram Reis)

[2]    Brunehaut, Brünnhilde, Brünnhild ou ainda Brunilda: na mitologia nórdica, é uma valquíria, que na Saga dos Volsungos foi encarregada de decidir a batalha entre os reis Hjalmgunnar e Agnar. (Hiram Reis)

[3]    Fredegunda: foi rainha cônjuge de Quilperico I, rei franco, envolvida em inúmeros assassinatos. (Hiram Reis)

[4]    Seráfica: mítica. (Hiram Reis)

[5]    Amásia: concubina (Elisabet Alícia Lynch). (Hiram Reis)

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