Jornada Pantaneira

Cel Hiram em seu caiaque

Mulheres Guerreiras – Parte V

Valquírias Americanas

Antônia (Jovita) Alves Feitosa – Parte II

Sobre o mesmo assunto lê-se na “Liga e Progresso” da mesma cidade:

Liga e Progresso n° 10? ([1])
Teresina, Piauí – ??.07.1865

Voluntária da Pátria – Em um destes últimos dias apareceu no Palácio da Presidência, pedindo para ser alistado “Voluntário da Pátria”, um jovem de 17 anos de idade, pouco mais ou menos, estatura regular, vestido simplesmente de camisa e calça, e trazendo na mão um chapéu de couro, S. Exª o Sr. Dr. Francklin Dória, aceitando-o como tal, lhe ordenara que no dia seguinte se apresentasse para ser aquartelado.

Algumas pessoas, porém, notaram e ficaram prevenidas sobre os sinais característicos desse jovem Voluntário, que mais lhes indicavam ser uma mulher do que um homem, e não o perderam mais de vista.

Às 5 horas da tarde do dia designado para o aquartelamento do jovem Voluntário, uma multidão imensa o acompanhava para a casa do Sr. Dr. Chefe de Polícia, onde chegando declararam algumas pessoas que esse indivíduo, que se dizia “Voluntário da Pátria”, era uma mulher disfarçada em homem. O Sr. Dr. Freitas mandou entrar o suposto voluntário, e procedeu-lhe ao interrogatório que aqui damos publicidade.

« Interrogatório »

Auto de perguntas a um “Voluntário da Pátria”, que foi conhecido ser mulher.

Aos nove dias do mês de julho do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta e cinco, nesta cidade de Teresina em casa da morada do meritíssimo Dr. Chefe de Polícia José Manoel de Freitas, comigo escrivão do seu cargo, abaixo nomeado, ai achando-se presente Antônio Alves Feitosa, livre de ferro e sem coação, por ele Dr. Chefe de Polícia da Província, “ex officio” ([2]), lhe foram feitas as seguintes perguntas:

Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade, filiação, meios de vida e residência.

Respondeu chamar-se Antônia Alves Feitosa, conhecida desde menina pelo apelido de Jovita com dezessete anos de idade, solteira, natural dos Inhamuns, da Província do Ceará, ser filha de Simeão Bispo de Oliveira e de Maria Rodrigues de Oliveira, viver de suas costuras, ser moradora no Brejo Seco, no Inhamuns, e somente de sete meses para cá na Vila de Jaicós, desta Província.

Perguntado quando saiu da Vila de Jaicós para esta capital, que destino tinha?

Respondeu que saiu a vinte do mês passado, diretamente para esta capital, com o único fim de ver se podia ser aceita para a guerra no Paraguai.

Perguntado em companhia de quem veio?

Respondeu que veio para aqui com os Voluntários que trouxe o Sr. Capitão Cordeiro, tendo declarado aos mesmos qual sua intenção.

Perguntado se não era amazia de algum dos voluntários com quem veio?

Respondeu que não tinha relações com esses ho­mens, e que os acompanhou somente porque vi­nham também para a capital, tendo por muitas vezes declarado-lhes, quando indagaram da sua viagem ‒ que se ia apresentar como, “Voluntária da Pátria”.

Perguntado porque tomou, roupa de homem, mu­dando assim o seu traje natural?

Respondeu que tomou roupa de homem, porque as pessoas a quem declarava sua intenção, diziam-lhe ‒ que, como mulher, não poderia ser aceita no Exército. E então como fosse grande o desejo, que tem de seguir para a Guerra cortou seus cabelos com, uma faca, pedindo depois a uma mulher que os aparasse bem rente, e tomando roupas de homem; foi assim apresentar-se ao Exm° Sr. Presidente da Província, e rogou-lhe que a mandasse alistar como “Voluntária da Pátria”.

Perguntado como descobriu-se ser mulher?

Respondeu que estando na casa da feira, hoje pelas quatro horas da tarde, uma mulher vendo-a com as orelhas furadas, dirigiu-se a ela respondente ([3]) e a palpando-lhe os peitos, apesar de sua oposição, e de ter atados os seios com uma cinta, a referida mulher pôde conhecer o seu sexo, e imediatamente descobriu-a, dando parte ao inspetor do quarteirão, que mandou-a conduzir à polícia por dois soldados.

Perguntado porque chorava quando se viu na presença da autoridade?

Respondeu que chorava porque se via em trajes de homem em presença de muitas pessoas, e teve vergonha disso; e mais chorava também porque supunha que sendo descoberta não seria aceita para a guerra.

Perguntado se sabia atirar, e se tem disposição para sofrer os trabalhos da guerra? Respondeu que não sabia carregar a arma, mas que sabe atirar, e tinha disposição para aprender o necessário e também para suportar os trabalhos da Guerra, e até para matar o inimigo.

Perguntado se o governo a não aceitasse como soldado, se está disposta a seguir sempre para o Sul, afim de ocupar-se em trabalhos próprios do seu sexo?

Respondeu que em último caso aceitará isso, porém que o seu desejo era seguir como soldado, e tomar parte nos combates, como “Voluntária da Pátria”.

Perguntado se seus pais são vivos ou mortos, e se conhece alguns de seus parentes, e quem sejam eles?

Respondeu que não tem mais mãe; que seu irmão mais velho de nome Jesuíno Rodrigues da Silva já seguiu para o Sul; que seu pai ainda vive, tendo consigo irmãos menores dela respondente, no lugar Brejo Seco, já referido.

Perguntado se sabia ler e escrever? Respondeu que sabe, mas tudo mal.

E nada mais respondeu e nem lhe foi perguntado: deu-se por findo este auto de perguntas, depois de lido e o achando conforme, assina com o Juiz, e rubricado pelo mesmo; do que dou fé.

Eu Raymundo Dias de Macedo, escrivão, o escrevi e assina ‒ Antônia Alves Feitosa.

É sobre modo notável que no sexo feminino, onde naturalmente se aninham o medo e o pavor, apareça esta exceção à regra geral, encarando com verdadeiro denodo e coragem os rigores de uma Guerra! Do interrogatório que se acaba de ver e diversas interpelações que particularmente se tem feito à esta brava jovem, ainda se não pôde coligir que outro desígnio, a não ser o nobre fim de pugnar pela defesa da pátria, a tivesse trazido da Vila de Jaicós a 70 léguas distantes desta cidade. É um heroísmo a toda aprova.

Este mesmo depoimento nos foi feito por Jovita em uma das salas do Quartel do Campo da Aclamação, no Rio de Janeiro, onde ela se achava. Só um devotamento supremo podia ter tocado o coração desta mulher cuja resolução inabalável perde-se nos véus de um mistério, que não nos é dado perscrutar, e que só o futuro nos poderá esclarecer.

Na frase de um grande escritor, talvez que o demônio da solidão a inspirasse!

III

Aí em Teresina encontrou-se com seu pai, que vinha de Caxias, o qual, com dificuldade aquiescendo aos desejos patrióticos de sua filha, deitou-lhe sua benção, e seguiu…

Jovita já não era uma mulher! Era um “Voluntário da Pátria”, graduado com o posto de Sargento! No dia 10 de agosto embarcou Jovita com 460 praças com destino a Parnaíba. Daí embarcou no Gurupi para o Maranhão, e do Maranhão veio no Tocantins para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 9 de setembro.

Imediatamente despertou-se a curiosidade pública. Todos corriam para vê-la. As fotografias se reprodu­ziam todos os dias, e é raro quem não possua um retrato da voluntária do Piauí.

Vimo-la também: ‒ É um tipo índio. Tem uma estatura mediana, maneiras simples, e sem afetação, despida daquela gravidade, que impõe um respeito profundo, bem proporcionada, rosto redondo, uma cútis amarelada, cabelos curtos, crespos, e de um negro acaboclado, mãos de homem e secas, pés grandes.

Seus olhos negros, cheios de luz, tornam-na simpática, seus lábios fechados com alguma graça ocultam dentes alvos, limados e pontiagudos.

Uma serenidade d’alma estende-se pelo seu todo, e mesmo lhe assegura uma confiança, que a tranquiliza. De onde se vê que devia zombar das seduções que a rodeiam. Sua voz cantada e de um timbre agradável conserva sempre uma firmeza imperturbável.

Procurando-a no seu aquartelamento tivemos por fim estudá-la, e mesmo ver se conseguíamos o segredo que a moveu nessa resolução inabalável. Surpreen­deu-nos a sua singeleza e a tranquilidade que con­servava vivendo entre soldados.

Nessa ocasião trajava calças brancas, com uma blusa de chita mal afogada, num desalinho desgostoso, deixando ver, através do colarinho de homem, um rosário de contas escuras, e uma corrente de ouro, cingidos ao pescoço.

Encostada a uma mesa com a cabeça apoiada sobre a mão esquerda, respondia-nos, brincando com bo­necas, e uma caixinha de brinquedos de criança. Como se conciliar esta natureza enigmática? Enigma talvez para ela mesmo, enigma ficou para nós! Seria fraqueza? ‒ Não! ‒ O Heliotropo ([4]) também se volta para o Sol. Entre as muitas perguntas que lhe fize­mos respondeu-nos contrariada do seguinte modo:

‒  Eu tenho muita raiva dos Paraguaios, queria ir para a guerra para matar essa gente; mas não me querem, enjeitaram-me.

Como assim? retorquimos nós.

‒  O governo não permite que eu siga. Já me destituirão do posto.

Mas, dissemos nós, a Sr.ª mesmo não podia ir por ser mulher; porque razão não segue prestando os serviços próprios do seu sexo?

‒  Não, nesse caso não vinha, podia ficar na minha terra, onde faria tudo isso, e de mais,

Continuou ela num tom apaixonado…

‒  O Imperador também já foi para a guerra…

A Sr.ª estima o nosso Monarca!

‒  Se eu não estimá-lo, a quem mais devo estimar?

Respondeu-nos com uma inflexão de voz decisiva. De fato, notava-se que um sentimento de contrariedade dominava toda a sua figura. Já não possuía aquela majestade dos seus dias de triunfo popular. Tinha no olhar uma indiferença sarcástica para todos que se aproximavam.

Havia seu fundamento: Jovita, uma vez prestado o juramento de fidelidade à sua Pátria, e depois alistada no Exército com as honras de 2° Sargento de Voluntários, nunca suspeitou que mais tarde a destituíssem do seu posto. Uma ordem, porém, baixou da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, em data de 16 de setembro, concebida nes­tes termos:

Ilm° Sr.

Não havendo disposição alguma nas Leis e Regulamentos Militares que permitia à mulheres terem praça nos Corpos do Exército, nem nos da Guarda Nacional, ou de Voluntários da Pátria; não pode acompanhar o Corpo sob o comando de V.S. com o qual veio da Província da Piauí a Voluntária Jovita Alves Feitosa na qualidade de praça do mesmo Corpo, mas sim como qualquer outra mulher das que se admitem a prestar junto aos Corpos em Campanha os serviços compatíveis com a natureza do seu sexo, serviços cuja importância podem tornar a referida Voluntária tão digna de consideração, como de louvores o tem sido: pelo seu patriótico oferecimento: a que declaro a V.S. para seu conhecimento, e governo.

Deus guarde a V.S.

Jovita, entretanto, apelou para os sentimentos generosos do nobre Ministro da Guerra, solicitando para que revogasse a ordem do Quartel General. Era bem difícil o que ela pedia. O Exm° Ministro, cujos desejos eram ardentes em conferir-lhe essa graça, de modo nenhum podia aquiescer, visto como a lei é muito expressa a tal respeito.

Não obstante, dignou-se responder-lhe em uma carta que lhe dirigiu, concebida nos termos os mais dóceis e convincentes, mostrando-lhe o preceito da lei. Aí revelou o seu pesar, manifestando que a sua compleição e o seu sexo era razão para não poder suportar as fadigas de uma campanha, e que o seu sacrifício em bem do País seria inútil, visto haverem numerosos defensores. Com tudo, não deixava de apreciar e louvar a viva prova que dava do seu patriotismo, oferecendo-lhe os meios de que necessitasse para que, recolhendo-se a sua família, tivesse a felicidade de que é digna. (COARACY) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 21.06.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

COARACY, José Alves Visconti. Traços Biográficos da Heroína Brasileira Jovita Alves Feitosa – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Imparcial de Brito & Irmão, 1865.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Não foi possível identificar, na Biblioteca Nacional Digital, o número e a data do referido jornal, posso, porém, garantir que deve se tratar do n° 102 ou 103. (Hiram Reis)

[2]    “Ex officio”: em razão do cargo ocupado. (Hiram Reis)

[3]    Respondente: a inquirida. (Hiram Reis)

[4]    Heliotropo: vegetal que orienta sua haste, folhas e flores para a luz solar. (Hiram Reis)

Nota – A equipe do EcoAmazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias