Tradição e contemporaneidade orientam a vida de três sábias especialistas – patrimônios vivos da memória e do imaginário, portadoras de conhecimentos individuais, coletivos e ancestrais. Essa história de biocultura e religião é foco de um dos artigos da última edição do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas.
Agência Museu Goeldi – Rumo ao oceano Atlântico, braços de rios amazônicos banham as ilhas de Murutucum e do Combu, em frente a Belém do Pará, e nos trazem histórias, crenças e práticas de três mulheres do universo de cura, prevenção de doenças e proteção contra males diversos. Dona Catarina, Dona Mariquinha e Dona Eliana são ribeirinhas e integram um diversificado grupo de especialistas no uso religioso das plantas e que, ao longo da vida, curaram e curam com terapias envoltas na fé religiosa e nos remédios naturais.
O artigo, “A medicina tradicional ribeirinha em vozes femininas”, publicado na edição corrente do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, foi produzido pelos pesquisadores Leonardo Silveira Santos, Manoel Ribeiro de Moraes Junior e Flávia Cristina Araújo Lucas, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Ronize da Silva Santos, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).
Os autores contam sobre pajelanças, crenças católicas e pentecostais unidas por tradições culturais, fé e conhecimento na criação e preparo de medicamentos caseiros e orações de cura, utilizados pelas especialistas e coautoras, Catarina Custódio, Ladide de Souza Passsos e Eliana Nascimento – das comunidades Igarapé do Combu e do Boa Esperança, na ilha do Combu, e do Furo do Benedito, na ilha de Murucutum, respectivamente.
Nessas duas ilhas próximas à capital paraense, escolhidas como área de estudo, os modos de vida mais tradicionais convivem com a ocupação e avanços de modos urbanos, onde, do ponto de vista religioso, predominam as igrejas evangélicas. Entre os anos de 2018 e 2019, os laços entre pesquisadores e comunidades foram estreitados e o reconhecimento do ambiente foi feito com a utilização do método “bola de neve”, usado nas entrevistas indicadas por pessoas reconhecidas pela íntima relação com os elementos bioculturais e com a religião.
A seleção das especialistas aconteceu nesse cenário social e partiu da referência no cuidar do outro e da disponibilidade voluntária de participação na pesquisa “Natureza, cura e práticas religiosas: um estudo sobre a medicina popular na ilha do Combu, Belém, Pará”, que investiga um grupo muito específico dentro das comunidades com amostragem probabilística.
Foram as biografias dessas três mulheres e seus papéis sociais com as medicinas tradicionais que nortearam a investigação durante os dois anos de entrevistas, realizadas de duas formas: a primeira, sem roteiro prévio – com uma conotação informal, não dirigida -, e a outra, seguindo um roteiro pré-estabelecido, priorizando diálogos conduzidos por elas mesmas, com protagonismo para as suas práticas de cura.
Integraram a metodologia adotada pela pesquisa a definição da área de estudo, a seleção das colaboradoras; os cuidados e procedimentos éticos; o apanhado e a análise de dados; as indicações e a observação não-participante. O estudo foi documentado e organizado com o uso de cadernos e diários de campo; gravações de áudio e vídeo, e produção de imagens. As transcrições e conversas seguiram as etapas de pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados; interferência e interpretação.
A redação biográfica foi pautada nos pressupostos do historiador e sociólogo, François Dosse, para quem: “Longe de contar uma vida, o relato biográfico mostra uma interação que ocorre por intermédio de uma vida”. E os autores ressaltam: “o desafio de escrever a existência de uma pessoa não se ocupa apenas em retraçar a vida, mas também em recontar a maneira de viver do biografado”.
Assim, as biografias das “artesãs de uma arte curativa e exemplos de bondade e respeito ao próximo”, como as identificam os pesquisadores, versam sobre aquelas que se autorreconhecem como “rezadeira e benzedeira” – Dona Catarina, referência no cuidar de crianças; “herdeira dos conhecimentos da pajelança” – Dona Mariquinha, que também ressalta sua “vocação” e “gosta de experimentar novos tratamentos terapêuticos”; e a “garrafeira” – Dona Eliana, que obtém a cura pela produção de remédios que envolvem diversos materiais, com o predomínio botânico e de orações.
As três são capazes de criar e institucionalizar novos ritos e medicamentos, diante de novos desafios, com autonomia curandeira que também pode acontecer quando falta algum ingrediente necessário às práticas curativas. Elas são verdadeiros institutos coletivos de saberes e ações e regem a dinâmica cultural de suas casas e de seus próximos, com maestria, pois, mesmo estando em um mesmo ambiente estuarino, suas medicinas são singulares a si mesmas e às suas comunidades.
No entanto, as tradições dessas ilhas vêm sendo ameaçadas por tensões de ondas turísticas e práticas religiosas que passam a reconstruir e transmitir suas interpretações das culturas e saberes locais – notadamente, as congregações pentecostais, que vem exercendo uma ação não uniforme, mas impactando com suas doutrinas de não aceitação das práticas ancestrais e das dinâmicas das congregações católicas locais.
O preconceito religioso acaba invisibilizando e desfazendo do papel social dessas mulheres sábias, mesmo que ainda aceitas por organizações religiosas mais antigas e ainda procuradas por seus trabalhos reconhecidos através de incontáveis êxitos na cura. Algumas igrejas chegam a repudiar suas presenças, pregando que “a cura só pode ser atingida dentro da igreja”. O preconceito e as perseguições têm levado inclusive ao desaparecimento de plantas sagradas para as especialistas e para a cultura local, arrancadas sob o pretexto de serem “plantas que fedem”. A chegada de moradores urbanos às ilhas também é outro fator a dificultar o acesso a lugares onde antes havia a coleta livre e farta de plantas para remédios e benzimentos.
Na disputa entre elementos religiosos que negam entes locais e as terapias que carregam forte intimidade botânica religiosa tradicional, não deixa de haver pontos comuns de entrelaçamentos, como na benzeção, na proteção contra seres malignos ou no exorcismo, praticado no pentecostalismo, com as plantas em seus rituais.
Apesar dos preconceitos religiosos e do desinteresse dos mais jovens – apontado por Dona Mariquinha e observado entre os Arara Koro, em Rondônia, por exemplo, que evitam repassar seus conhecimentos às novas gerações que desacreditam, em parte, na ciência indígena -, a fé e a prática das especialistas nunca se opuseram ao encantamento da magia ou às preces cristãs (católicas ou evangélicas), na interlocução dos ditos das tradições e os desafios da contemporaneidade.
Como lideranças ‘culturais’ das suas comunidades, Dona Catarina, Dona Mariquinha e Dona Eliana seguem estabelecendo diversas formas de comunicação entre os sagrados, pois no mundo em que vivem nunca houve distinções radicais entre as confissões e as suas crenças ancestrais, convergindo, sempre, em uma certeza: “o que cura é a fé”.
Referências
- Dosse, F. (2015). O desafio biográfico: escrever uma vida (2. ed.). Edusp
- Gavião, S., & Nunes, R. O. (2019). Conhecimento tradicional e construção de material didático específico para o ensino de ciências na escola indígena do povo Arara Karo. Revista Cocar, 13(27), 986-1004.
- Santos, L. S., Moraes Junior, M. R., & Lucas, F. C. A. (2020). Plantas e religiosidades na região insular de Belém, Pará. Revista Etnologia, 18(3), 3-23
- Shiva, V. (2003). Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Gaya.
Para ler o artigo, acesse
A íntegra do artigo está disponível em http://editora.museu-goeldi.br/bh/artigos/chv18n1_2023/medicina(santos).pdf
E também em https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0068
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Texto: Luiza Bastos – PUBLICADO POR: MUSEU GOELDI – Mulheres sábias praticam curas sagradas no estuário amazônico — Museu Paraense Emílio Goeldi (www.gov.br)