A emigração de jovens indígenas da Amazônia para a Turquia e sua doutrinação religiosa foi tema de debate em audiência pública na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (10), que contou com a participação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Na capital amazonense, crianças e adolescentes vivem em um sobrado transformado em internato, onde ganham nomes em árabe. Lá, ficam diariamente em contato com o idioma turco e árabe, são ensinados sobre o Alcorão e seguem uma rotina religiosa, que inclui cinco orações diárias e respeito ao jejum do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos.

Foto: Matheus Araújo/Funai     

De autoria do deputado Alfredo Gaspar (União-AL), a audiência teve a presença da diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, Lucia Alberta Andrade, representando a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas; do repórter do jornal Metrópole, Thalys Alcântara; da delegada da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas, Letícia Prado; dentre outras autoridades e parlamentares.

O jornalista do Metrópoles Thalys Alcântara, responsável pela reportagem, foi ouvido na audiência. O repórter foi até São Gabriel da Cachoeira, Manaus e São Paulo, conversou com 18 pessoas e andou mais de 6 mil quilômetros para entender melhor a história e revelar o funcionamento dessa nova forma de catequização. Durante a audiência, Thalys destacou que “as crianças indígenas tinham de fazer orações e até aprendiam a ler parte do Alcorão em árabe” e que também havia imposições contra os costumes indígenas, como nadar no Rio Amazonas. “As crianças não podiam se banhar no rio para não mostrar as partes íntimas”, afirmou. Confira a matéria do jornal Metrópoles.

Lucia Alberta afirmou que, a partir de uma visita técnica ao munícipio de São Gabriel da Cachoeira, em setembro de 2022, a Coordenação de Gênero, Assuntos Geracionais e Participação Social (Cogen/DPDS) da Funai recebeu uma denúncia verbal do conselho tutelar local acerca de jovens que se encontravam, em Manaus, sob os cuidados da Associação Solidária Humanitária do Amazonas – Asham. O Conselho Tutelar local tomou conhecimento da situação por meio de um comunicado da gestora escolar de Manaus, responsável pela escola onde os jovens estavam anteriormente matriculados.

A associação, de origem turca, é dirigida por Abdulhakim Tokdemir e Tugrul Metin e, segundo os dados de consulta à Receita Federal, teria por atividade principal “atividades de organizações associativas ligadas à cultura e à arte” e, como secundária, “serviços de assistência social sem alojamento”, o que contraria as práticas executadas pelos responsáveis da associação.

Para a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, “nos casos de direito à convivência familiar e comunitária, cabe mencionar que o papel da Funai se restringe à articulação do Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes, tendo como princípio garantir os direitos humanos e étnicos de crianças e jovens indígenas, assegurando políticas que atendam às especificidades étnicas, bem como o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”.

Durante a audiência, foi mencionado que os pais dos alunos doutrinados assinaram uma autorização informal para a entrada dos filhos nesse grupo islâmico, com a promessa de fazerem faculdade. Para famílias em situação de vulnerabilidade, em uma das cidades mais remotas do Brasil, a possibilidade de uma vida com mais oportunidades para seus filhos é um grande atrativo.

Sobre o assunto, o deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM) frisou que não adianta se fazer uma audiência pública para debater o tráfico de indígenas sem se debater problemas mais profundos da sociedade, “O abandono do estado brasileiro para a região de São Gabriel da Cachoeira não é apenas na falta de iniciativas pra resolver o problema mas na falta de se concretizar essa iniciativas. É uma pena que, por um lado, queiram que a população local preserve a floresta e que, por outro, não deem alternativas para que se sustentem. Que as pessoas pobres não tenham outra alternativa para comer senão vender os seus filhos, desmatar as florestas, recorrer à criminalidade, ao tráfico de drogas. Essas pessoas precisam se alimentar, precisam de dignidade. Precisam não só de renda mas de saúde, alimentação e segurança. E elas não têm nada disso. Então, falar sobre o problema do tráfico de crianças nesses municípios é também falar sobre todos esses problemas sociais”, relatou.

Diante do assunto, a Funai informou que tomou uma série de medidas, dentre elas o acionamento da Coordenação Regional de Manaus para o acompanhamento in loco do tema, tendo sido realizada uma visita técnica em conjunto com Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), em outubro de 2022, em que se identificou a presença de oito jovens, do sexo masculino, com idade entre 13 e 16 anos, dos povos Tariano, Tukano, Dessano e Baniwa.

Os jovens relataram que a ida para a instituição foi mediada por um parente, e eram oferecidas melhores oportunidades de vida. Também havia a promessa de viagem para a Turquia com o objetivo de concluir a formação escolar, e retornar ao Brasil, principalmente, na condição de “professor de religião”. É importante frisar que três jovens já foram enviados ao país e, aparentemente, se converteram ao islamismo.

No decorrer do processo, o CMDCA não tomou nenhuma providência e os jovens permaneceram na casa em situação de vulnerabilidade e possível violação de direitos, momento em que a Funai acionou a CR Manaus para que encaminhasse um ofício ao Conselho Tutelar da capital para que visitasse a associação e retirasse os jovens, imediatamente, do local, tendo em visita a flagrante violação dos direitos das crianças e adolescentes.

Diante da realização da visita, sem êxito, a Funai apresentou o caso para o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda) e iniciou articulações interinstitucionais. Como resultado desse trabalho, em fevereiro de 2023, o Conselho Tutelar e a Polícia Federal de Manaus realizaram uma diligência à associação, em que encontraram 14 jovens e uma criança, todas indígenas, oriundas de São Gabriel da Cachoeira. Os jovens e a criança indígena foram encaminhados à uma instituição regularizada e, posteriormente, às famílias na região de origem.

Após a experiência deste caso, a Funai avalia a urgente necessidade de realizar, para os povos indígenas, ações de conscientização sobre os riscos de práticas desta natureza, alertando para o possível tráfico humano, exploração sexual e do trabalho. Também se faz necessário articular com os atores do Sistema de Garantia de Direitos Local, a fim de construir uma rede proteção para as famílias e os jovens.

A fundação também solicitou à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a criação de um Grupo de Trabalho para atenção psicossocial e está idealizando, junto à Secretaria Nacional de Juventude (SNJ/SG/PR) um Centro de Referência da Juventude, em São Gabriel da Cachoeira. O órgão indigenista também realizará uma visita à região, na qual realizará, junto a outros órgãos governamentais, um evento de caráter informativo sobre os direitos, políticas públicas e perspectivas interculturais de atendimento a crianças, adolescentes e jovens indígenas.

Também presente na audiência, a delegada da Polícia Federal (PF), Letícia Prado, não se aprofundou no assunto, alegando que o tema segue em investigação mas afirmou que a PF efetuou uma varredura na Asham, em que apurou possíveis irregularidades. “Cumprimos diligências sigilosas”, afirmou.

Como conclusão da audiência, foi reforçado que o caso siga sendo investigado pelos órgãos responsáveis e que o embaixador da Turquia no Brasil seja convidado a prestar esclarecimentos sobre o assunto.

A rotina dos jovens indígenas doutrinados

Os jovens indígenas que vivem no internato informaram que a rotina na casa se baseava no cumprimento dos afazeres domésticos, ida para a escola formal (os que frequentavam a escola estudavam pelo período da tarde), estudos de árabe, educação moral e religiosa e a realização de rezas.

As crianças e jovens indígenas também comunicaram que dormiam no mesmo quarto, em camas individuais, que eram impedidos de sair da casa fora do horário escolar e que estavam autorizados a utilizar celular somente às sextas e sábados. A maioria relatou que mantinham contato com a família, seja por celular ou, em alguns casos, por visitas realizadas por parentes.

Eles também relataram que a limpeza da casa e o preparo dos alimentos eram realizados por eles mesmos. Os “Abi” (turcos responsáveis pela casa), por vezes, faziam a comida, mas as tarefas de limpeza da casa, dos utensílios de cozinha e das roupas eram de exclusividade das crianças e jovens residentes, que se revezavam para execução das tarefas. A alimentação se restringiam à arroz e feijão (e, em algumas vezes, macarrão), sem qualquer presença de proteínas de origem animal.

Não havia outros adultos trabalhando na casa, seja para monitoramento dos residentes (o que, segundo as conselheiras, seria obrigatório), seja para cuidar da limpeza e alimentação dos jovens. Ficavam apenas as crianças e os jovens indígenas e os dois turcos, responsáveis pela instituição. As condições da casa eram precárias, insalubridade do quarto dos jovens, presença de forte odor, bem como a falta de higiene do banheiro que eles utilizavam.

As autorizações assinadas pelos pais dos alunos não têm validade, pois a instituição islâmica não tem cadastro para funcionar como abrigo nem a guarda das crianças e dos adolescentes.

Assessoria de Comunicação / Funai – Em audiência pública na Câmara, Funai debate doutrinação islâmica de indígenas — Fundação Nacional dos Povos Indígenas (www.gov.br) 

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