Jornada Pantaneira

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

A Retirada da Laguna –Parte XX

XX

Marcha Sobre Nioaque, que Apenas Dista Duas Léguas. O Inimigo Rodeia Continuamente a Coluna.
O Mascate Italiano Saraco.

À vista do cadáver estendido à margem do Canindé, não tivemos mais dúvida a respeito da perda do comboio todo, da morte dos mascates e o saque das provisões que traziam, além dos objetos que se propunham comercializar por conta própria. O que houvera sido necessário fazer, fora chegar dois dias mais cedo ao Canindé.

Teríamos, então, encontrado e protegido estes via­jantes desarmados, que regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera sempre grande parte do nosso abastecimento; enfim, e, sobretudo, preserva­ríamos de triste fado a Vila de Nioaque que, eviden­temente, ia ser completamente arrasada. Tudo isto compensaria, bastante, um pouco de diligência, se para tanto fôssemos capazes.

A observação maligna que daí decorreu, formulada a modo de acusação, como sói sempre acontecer na adversidade, provocou entre os oficiais, naquele mesmo local, discussão bastante azeda.

Não foi, porém, difícil daí deduzir-se uma justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada a Machorra do desastrado com­boio.

Para apenas falar dos últimos dias: acaso fora exequível mais rápida marcha? Não estava de sobra provada a fadiga excessiva que ela nos valera?

Não devêra­mos à obrigação de salvar os canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a morte do Cel Camisão e a partida da estância do Jardim?

E se quiséssemos ir além, até o momento em que preferíramos o atalho proposto por Lopes, convinha não esquecer que, para tal escala, entre diversas vantagens, preponderara a consideração do interesse dos mercadores que era deles desviar o inimigo, atraindo-o sobre nós.

Tomássemos a estrada batida para ir ao seu encon­tro, e protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável houvéssemos todos sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não os te­ria a cólera poupado menos do que a nós no itine­rário então escolhido, fosse porque já lhes transpor­tássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem contaminado.

Quanto aos contínuos ataques com que nos haviam atormentado, muito maior número de ensejos lhes teríamos proporcionado se precisássemos atravessar tantos Rios: o Feio, o Santo Antônio, o Desbarran­cado. Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não estaríamos em condições de defendê-lo.

Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates, quando ao passarem pela Colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela Vista. Propusera-lhes este homem, Tenente da Guarda Nacional de Goiás, nortear a marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da Colônia.

Ali tratariam de se emboscar na mata do Rio, à espera de nossa coluna, que não podia deixar de lá chegar. E, com efeito, sua marcha para o Norte assi­nalava-a no horizonte a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir detê-la. Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas carretas de mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o embate, quando muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não podíamos, de modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira Resende fazer ainda valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores; acenara-lhes com o ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente no momento em que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo fogo.

Nada pudera persuadi-los. O lado militar de tal proj­eto, muito de acordo com as tendências aventurosas de quem o advogava ‒ era esta a opinião geral – as­sustou aquela gente cujos sobressaltos cresciam na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a parte propalavam os nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioaque, pelo Canindé. Ali os alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga; depois, saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários donos, atrapalhados como muitos deles estavam pe­los objetos mais preciosos de suas cargas, que se não haviam disposto a abandonar.

Inexoravelmente perseguidos fácil lhes fora, no en­tanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se sob a nossa salvaguarda. Ao chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a espécie, juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e arroz, amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d’água do solo.

Ninguém jamais imaginara que este horrível amon­toado de gêneros, quase irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria colisão, quase de um motim. Tal, porém, o império do organismo debilitado, tais os reclamos dos estômagos desde muito privados de alimento, que os soldados nele procuravam repasto com a avidez das feras que devoram uma presa.

Todos para ali quiseram precipitar-se; romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto ensurdecedor de queixas, ameaças, vocifera­ções e risadas idiotas, à vista daquele pasto imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a prin­cípio os oficiais interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o Tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles, derrubou-o e o dominou com o re­vólver.

A surpresa causada por este ato de energia começou por conter a multidão. Passado este primeiro mo­mento apaziguara-se geralmente, quando súbito ir­rompeu o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido realmente divisado, quer se tratasse de expediente empregado, graças à feliz inspiração, para que sur­gisse uma diversão, ficou o asqueroso repasto es­quecido. Não teve esta desordem consequências. Fingiu o Comandante ignorá-la como provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe, esta marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças, ordenou logo que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.

Foram as disposições tomadas pelo novo Ajudante do Quartel-Mestre, Tenente Catão Roxo, nomeado subs­tituto do Ten Cel Juvêncio. Passara o Cap Lago a exercer o cargo de Assistente do Ajudante General, o Tenente Escragnolle Taunay o de Secretário-Geral adido ao comando.

Ficara o Tenente Barbosa o único representante da Comissão de Engenheiros recém-dissolvida. Duas léguas, apenas, nos separavam de Nioaque e o Comandante, para avisar a nossa chega­da, fez disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças, acompanhadas de um fogo rolante ([1]) de todos os Batalhões.

Nesta ocasião percebeu nossa gente a irregularidade do tiro pelo fato de que muito haviam as últimas chuvas deteriorado o armamento. Assim, pôs-se lo­go, e por si, a repará-lo e experimentá-lo várias ve­zes, a apostar quem atiraria melhor e mais depressa: luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando, aos últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto.

A esperança de melhores dias está sempre pronta a renascer no coração dos homens. Nova fase de existência, realmente, como despontara; despertara a vida e o nosso horrível passado da véspera a fome, a morte, sob todos os aspectos já não nos apareciam mais senão como as alucinações de um pesadelo.

Não é que os pensamentos tristes não nos assaltas­sem mais, após as realidades que presenciáramos. Contássemos quantos agora éramos! Quantos fal­tavam! Soavam os clarins e folgávamos em ouvi-los; mas que era feito das músicas de nossos Batalhões?

Companheiras das primeiras provações da Expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadir­mos o solo paraguaio, não demorara que as dizimas­se o fogo inimigo. Logo depois, à medida que as nos­sas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas re­crutar soldados. Viera a cólera acabar a obra destrui­dora, prostrando quatorze músicos dos que haviam pertencido ao Batalhão de Voluntários de Minas.

Rapidamente percorremos, no dia seguinte, a distân­cia até Nioaque, observando com rigor a formatura adotada para atravessar os campos; e o inimigo que nos perseguia a retaguarda não ousou empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo contrário, muito afoito em bater em retirada, sempre que lhe aconte­ceu ficar ao nosso alcance.

Costeávamos a margem esquerda do Nioaque, e como estivessem a pastar uns bois de tiro, que os carreiros do comboio de mascates haviam abando­nado, puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a persegui-los. Uma companhia do nosso 21° e uma peça foram então mandadas contra eles.

Voltaram rédeas incontinentes e com tanta precipi­tação que provocaram o riso geral e as vaias de nos­sa gente. Era o vau bom; e sem mais demora o atra­vessamos. À margem direita encontramos o rasto ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande quantidade de papéis rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que evidentemente pro­vinham do saque de alguma carreta brasileira, apri­sionada naquele ponto pelo inimigo e destruída, ou por ele levada.

Algumas fumaças no horizonte ainda nos revelavam a presença do adversário e, pelo conhecimento que da permanência naquelas localidades obtivéramos, supusemos que os paraguaios acabavam de incen­diar uma espécie de aldeia, de palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto apressar o passo e ao primeiro relance reconhecemos que não nos enganáramos.

As 15h00, estávamos no meio dessas ruínas abrasa­das que habitáramos e a que deitamos último e me­lancólico olhar; o soldado e o viajante interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.

Muito a propósito veio um incidente de ópera-bufa distrair-nos desta impressão tristonha: a reaparição daquele italiano que, já no acampamento da Laguna, nos divertira com as suas jogralices ([2]). Contara-se, mas inexatamente, que morrera, com os outros mascates que, por assim dizer, haviam desertado das nossas fileiras ao atravessarmos o Rio Miranda.

Deles, habilmente se separara, vagara entre Canindé e Nioaque, sem noção do ponto para onde devia ru­mar, indo de moita em moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confian­ça. Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que, naquele mesmo dia, pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.

O vestuário estrambótico e a precipitação dos movi­mentos fizeram-no passar por paraguaio. Nossos ati­radores da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se, então, cair como morto, na macega. Após um lapso de prudente imobilidade começou a levantar deva­garzinho, no ar, na ponta de uma varinha, o cache­col; e depois, vendo que as balas não vinham, um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo, que não era senão o do nosso amigo e velho conhecido Saraco. Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados de abraços, cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase, vendo-se escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e ainda barato, à custa da trouxa e de tantos momentos de pavor. Quanto ao inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez, embora lhe tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.05.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Fogo rolante: disparo sucessivo e contínuo. (Hiram Reis)

[2]    As suas jogralices: a sua falta de seriedade; as suas palhaçadas; as suas zombarias. (Hiram Reis)

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