Jornada Pantaneira

Um Tipo de Pelota

A Retirada da Laguna –Parte XVIII

XVIII

Chegada às margens do Miranda. Mantém-se o inimigo afastado para evitar o contágio da cólera. O Miranda não dá vau. Alguns homens o atravessam, entretanto, a nado, trazendo a boa notícia da existência de grande laranjal, coberto de pomos maduros. Os caçadores recebem a ordem de tentar, em corpo, a passagem e conseguem-no. Morte do Ten-Cel Juvêncio. Morte do coronel Camisão. Substitui-o, no comando, o major José Tomás Gonçalves. Instala-se um vaivém sobre o rio. Chegam abundantes as laranjas. Seu efeito benéfico sobre os esfaimados e coléricos.

Irremediável se afigurava a nossa situação. Os paraguaios, em torno de nós, de observação, pareciam, como bem disse “El Semanario de Asunción”, anexo a esta narrativa, gozar sem perigo, e tranquilamente, do espetáculo de nosso aniquila­mento pela fome e a peste. Tínhamos, com efeito, diante de nós um grande Rio transbordado a nos cortar a única via de salvação. A estação de abril a setembro não é a das águas; mas como se toda a natureza se houvesse contra nós coligado, tais, desde 13.05.1867, haviam sido as chuvaradas que o Miranda intumescera de modo assustador, bramindo e espumando sobre as raízes desnudadas das árvores da barranca, não dando esperanças de permitir vau antes de alguns dias.

Era, no entanto, para a coluna, o único meio de transpô-lo. Não podíamos pensar em alçar uma ponte quando mal dispúnhamos de gente suficiente para o serviço das guardas: homens, no entanto, bem capazes ainda de ardor e energia num combate, mas não de contínuo trabalho manual, como este que exige uma construção de vulto.

Estávamos, pois, sob os olhos dos paraguaios, seg­undo uma expressão destes peões, como gado encurralado e destinado ao corte. Malgrado, entretanto, o aspecto ameaçador do Rio, lançaram-se à água alguns nadadores intrépidos, impelidos pela fome, e, contra a expectativa geral, após muitos esforços, atingiram a outra margem, onde não encontraram vestígio algum do inimigo. O que descobriram foi a tranquila morada de nosso valoroso Guia rodeada de belo laranjal, cumprimento, tão agradável quanto completo, das promessas do velho e de todas as maravilhas que do seu pomar nos referira.

Não tardou que um dos primeiros exploradores dessa terra de promissão, lembrando dos companheiros de miséria, tivesse a audácia e o mérito de, sem deten­ça, atravessar de novo o caudal.

Com a descrição animada de tudo o que defrontávamos – veio inflamar a mente daqueles que ainda haviam conservado algum resquício de iniciativa. Como a ausência, já muito sensível, do Chefe nos deixasse larga autonomia, muitos foram os que, em tropel, correram à beira do Rio, para tentar a passagem.

Muitos a experimentaram: os mais fracos ou os me­nos favorecidos, traídos pelo desfalecimento, desa­pareceram na correnteza; outros dali, contemplando os felizes ocupantes da margem fronteira, tomaram-se como de desespero que quase desfechou supremo golpe nos restos da disciplina, sobrevivente a tantos desastres.

Do próprio couro em que jazia quase agonizante ainda dava ordens o Coronel, umas, por vezes, incoerentes e inexequíveis, mas outras lúcidas, e práticas. Mandou que o corpo de caçadores a pé, o único ainda não contaminado pelo espírito de desor­ganização, atravessasse, quanto antes, o Rio. Guar­necendo a outra margem, devia impedir o saque do pomar até que ele, Comandante, ali pudesse ir ter a fim de proceder à justa distribuição de quanto lá havia.

De acordo com esta prudente determinação, teve o Capitão José Rufino de fazer passar toda a sua gente junta. Pensou, a princípio, na construção de uma jangada, mas faltavam-lhe materiais e, sobretudo, operários. Tomou-se de impaciência; podia contar com toda a sua tropa afeita a hábitos de austera disciplina e, em absoluto, obediente às suas ordens. Viu os soldados porfiarem entre si, no afã de facilitar a passagem dos oficiais. Foi ele próprio o primeiro a entrar dentro do couro, com as quatro pontas levantadas e amarradas em forma de saco [o que se chama pelota], a que um nadador puxa por uma corda presa entre os dentes.

Assim se pôs à frente daquela massa tumultuosa de homens. Não os perdíamos de vista. Quando atingiram o meio da torrente, ainda os ouvíamos, entre o marulho dos cachões ([1]), incitarem-se uns aos outros. Houve, segundo nos pareceu, então, a todos, um momento de luta e hesitação que nos fez por eles temer, mas não tardaram a reaparecer, descambando para a outra margem, embora com grande descaída.

Vimo-los, enfim, sãos e salvos chegar à fazenda do Jardim: era um consolo e uma esperança. Longe de amortecer, redobrara a cólera de violência. Crescia o número dos enfermos e receávamos que, quando o Rio baixasse, a ponto de nos dar vau, não tivés­semos remédio senão abandonar segundo grupo de moribundos, à mercê do inimigo inexorável; e só esta ideia nos causava a angústia de um pesadelo. Acabara o Corpo de Artilharia de se extinguir. Depois dos mais fracos tombados nos primeiros dias, tocara a vez aos mais robustos; caíam como para se aniquilar a arma a que devêramos a salvação. Nada, entretanto, do que pudesse evitar ou combater o mal haviam poupado os seus chefes. Dava o Ten Nobre de Gusmão, constantemente o exemplo da dedicação pelos enfermos, e os soldados imitando-o, entrega­vam-se à prática de socorros mútuos que os demais Corpos ignoravam. Tal o estado, cada vez mais deplorável, em que veio o dia 28.05.1867 encontrar-nos.

De tempos a tempos íamos examinar o nível das águas para ver se baixava; pois seria isto a nossa única via de salvação. Nada tínhamos que comer e a custo conseguíramos, a peso de ouro, arranjar algu­mas laranjas que os nadadores mais ousados traziam com largos intervalos. Foi este, aliás, o único confor­to a que se não mostraram insensíveis o Cel Camisão e o Ten-Cel Juvêncio, na sede da agonia exasperada pela água. Após a passagem do Corpo de Caçadores, cada vez mais considerável se tornara o ajuntamento à beira do Rio.

Todos os movimentos daquele Batalhão, na outra margem, acompanhados pelas nossas vistas alonga­das, nós os comentávamos. De tempos a tempos precipitava-se alguém a nado ou arriscava passar em pelota para procurar reunir-se aos camaradas, ape­sar das ordens em contrário.

A morte de vários soldados, afogados, mostrara a urgência de se manter, mais rigorosa ainda, a proibição. Não houve, entretanto, ameaças nem objeções capazes de dissuadir um Capitão do 20° que, todo vestido, entrou numa pelota, conduzida por dois nadadores. Cria poder com eles contar, mas, no meio do Rio, como as forças lhes faltassem, entregaram-no à correnteza. Vimo-lo envidar longos esforços para se manter à tona e depois submergir-se, pouco a pouco a desaparecer, com gritos de desespero a que, à míngua de socorro, respondiam os da multidão reunida no lugar de onde partira.

Pouco depois um nadador, chegando da margem oposta, declarou ter escapado de morrer, graças à impetuosidade da correnteza, que, no centro, era quase irresistível, fazendo-nos assim perder a espe­rança que nos trouxera súbito abaixamento das águas. Tornamos a nos capacitar de que, tão cedo, não haveria vau praticável; e, então, não teve mais limites o desalento dos soldados.

Era o receio infundado, porém; pois é coincidência comum a todos os caudais – depois de demorados nos transvasamentos pela própria expansão – adqui­rirem, quando voltam ao leito, maior velocidade, embora transitória, que progressivamente diminui, se não se renovam as chuvas, até o momento em que as águas voltam ao regime normal. Neste ínterim, e por causa da afluência dos soldados à beira do Rio, foi o nosso pouso ficando deserto.

Em busca de lugar fresco haviam os doentes trans­posto algumas braças de um pântano que nos en­volvia o acampamento e corrido mais longe arrumar-se num bosque, bastante espesso, de ambos os lados de uma estrada aberta que era a de Miranda. Haviam-nos seguido parentes e amigos e ali todos se instalavam, como para ficar.

Já vários soldados se tinham metido no mato, a procura de caça, ouvindo-se os tiros que ao longe disparavam. Supusemos a princípio fosse o inimigo, que não sabíamos onde parava. Desaparecera, ou para procurar passagem que lhe permitisse preceder-nos na outra margem, ou para se preservar do contágio da epidemia que conosco arrastávamos.

Neste mesmo dia 28 morreram algumas mulheres, mais desvalidas ainda que os demais doentes, mais desprovidas de recursos e, por motivo de sua natural fraqueza, mais ferreteadas pelos estigmas da miséria absoluta. Quase não existia mais entre nós a autori­dade. Fora, desde o começo, frouxa às mãos do Cel Camisão, sempre que se tornara precisa e iniciativa de uma decisão ou proceder a uma escolha entre diversos alvitres e alternativas. Tornara-se, é certo, mais firme quando os reveses nos acabrunhavam, uns sobre outros; para o fim atingira o heroísmo quando, com uma abnegação, cujo esforço indubita­velmente lhe arrancara a vida, abandonara os enfer­mos para a salvação da coluna.

Desde, porém, que a cólera o atacara ia tudo ao Deus-dará; sentíamos todos quanto nos era indis­pensável novo Chefe.

A 29.05.1867 tornou-se evidente que o Coronel mor­reria. Por vezes, vencera o sofrimento aquela digni­dade que tanto zelara: “Dizem que a água mata, exclamava, deem-ma; quero morrer!” Caiu num es­tado de torpor e sonolência e o corpo cobriu-se-lhe de manchas violáceas.

Às sete e meia fez supremo esforço; levantou-se do couro em que estava deita­do, apoiou-se sobre o Capitão Lago, perguntou-lhe onde estava a coluna, repetindo ainda que a salvara. Depois, voltando os olhos, já vidrados, para o seu ordenança, exclamou em tom de comando:

‒  Salvador! Dê-me a espada e o revólver.

Procurou afivelar o talim e exatamente nesta ocasião deixou-se rolar no chão murmurando:

‒  Façam seguir as forças, que vou descansar.

E assim expirou.

A alguns passos dali, numa barraca a todos os ven­tos aberta, achava-se o Tenente-Coronel Juvêncio. Recobrara um fio de voz e livrara-se da horrível tor­tura das câimbras, queixando-se, todavia, de forte dor no fígado. O Tenente Catão, a quem do melhor modo auxiliávamos fazia-lhe continuamente aplica­ções novas, que, contudo, não o aliviavam. Tinha, constantemente, os nossos nomes nos lábios para nos recomendar à família. Ao meio-dia acalmou-se, caiu numa letargia entrecortada de sobressaltos, e, às três horas, expirou depois de nos entregar, para a mulher e os filhos, uma bolsinha de couro contendo algumas economias de campanha. Numa cova aberta, sob grande árvore, no meio da mata, enterrou-se o Coronel com o seu uniforme e insígnias. Em outra cova, imediata, e à direita, foi o corpo do Ten Cel Juvêncio colocado pelos seus com­panheiros da Comissão de Engenheiros e alguns ofi­ciais do Corpo de Artilharia. Jamais se nos varrerá da memória esta lúgubre cerimônia a que a escuridão da noite e da mata ainda mais soturna tornavam.

Eram quase sete horas quando de lá voltamos. Descansam os nossos infelizes chefes à esquerda do Miranda, a alguma distância da entrada do bosque e em altura correspondente à estância do Jardim, à margem direita. Se lhes não profanarem os túmulos é de esperar que, um dia ou outro, alguma cruz de material duradouro, com uma inscrição, aponte à memória dos brasileiros o lugar que recebeu os despojos destas nobres vítimas do dever.

Providências sabiamente combinadas seguiram de perto a morte do Cel Camisão. Cumpria não surgisse alguma rivalidade que mantivesse a autoridade in­certa. Fora, era certo, já prejulgada a questão dos postos em Comissão, por dois ofícios do Ministro da Guerra, datados do ano anterior. Neles declarara o governo não ter aprovado que o Ten-Cel em Comis­são, Enéias Galvão, simples Tenente nos quadros do Exército, comandasse, como Chefe interino de uma Brigada, oficiais mais antigos que ele e até Capitães. O posto efetivo na primeira linha era evidentemente, pois, uma condição de preferência e o mais antigo Capitão, de todo o Corpo ex­pedicionário, vinha a ser José Tomás Gonçalves, aliás, Major em Comissão.

Parecia assim o único que, de acordo com as instru­ções ministeriais, estava nos casos de suceder ao Ten-Cel Juvêncio, substituto legal do Cel Camisão, mas que também desaparecera. Para evitar qualquer dissídio na eleição foram os Tenentes Napoleão Freire e Marques da Cruz, a pedido de todos, ter com o Tenente-Coronel, em Comissão, Enéias, convencendo-o da conveniência que, nas nossas circunstâncias, havia, para se evitar maior demora, de alegar ele moléstia que o forçasse a passar a outro oficial, momentaneamente, o co­mando do seu Batalhão. A boa vontade com que abriu mão de pretensões, pelo menos especiosas, que nos poderiam ter criado embaraços, valeu-lhe a bem merecida gratidão de todos os camaradas.

Reuniu-se, ao meio-dia, o conselho dos Coman­dantes. Sem o menor preâmbulo, para firmar os seus direitos, e com este tom de confiança que subjuga, este ar de superioridade indiscutida, a que se prestava a sua fisionomia vivaz e inteligente, anun­ciou o Major José Tomás Gonçalves a morte do Cel Camisão e a do Tenente-Coronel Juvêncio, seu imediato legal.

Daí lhe resultara a obrigação de assumir o comando, como o Capitão mais graduado em antiguidade. Nada lhe foi objetado. Deu-se parte da moléstia do Tenente-Coronel em Comissão, Enéias, assim como se notificou a entrega do comando do seu Corpo a seu imediato: o Major em comissão José Maria Borges. Esta transmissão de poderes, regulada pela razão e o direito, e habilmente subtraída ao jogo das paixões que podiam despertar, obteve completa sanção na aprovação de todo o Corpo do Exército.

Havia, neste ínterim, baixado o Rio, já oferecendo contínuo vau, embora muito difícil ainda, devido à rapidez das águas. Teve o novo Comandante a ideia de assegurar a comunicação de uma para outra margem por meio de cabo fortemente amarrado às árvores de ambas as barrancas.

Desde o momento em que funcionou este vaivém chegaram as laranjas, copiosamente. Teve a sua abundância este primeiro efeito de distender estômagos desde muito vazios. Eram, por vezes, devoradas com casca e tudo, no ardor da fome e da sede que nos consumia. Sua maturidade e doçura convidava-nos, aliás, ao abuso, mas os princípios medicinais que residem na essência da casca agiram mais eficazmente ainda: diminuiu a epidemia, e quase cessou.

Haveria nisto mera coincidência? Já Lopes, contudo, nos predissera esta melhoria do estado geral. Certo é que foram coléricos vistos – a mor parte dos quais se curaram – passar longas horas a devorar montes de laranjas de que mal deixavam alguns restos.

Ainda neste dia vimos chegar ao acampamento, qua­se nu, e semelhante a um cadáver, um dos desva­lidos abandonados de 26.05.1867, que, no próprio excesso do terror encontrara restos de vitalidade que o salvaram.

Caminhara de noite arrastando-se pelos mais espes­sos cerrados, e seguindo-nos as pegadas. Nem sem­pre conseguira, contudo, evitar os paraguaios, que, vendo o estado em que o pusera a moléstia, se con­tentavam por divertimento com o moerem de panca­das. Como lhes pedisse que o não matassem respondiam:

‒  Não matamos defuntos, queremos é o teu Comandante.

E atiravam o mísero ao solo com o conto ([2]) das lanças. Assim pôde o pobre homem voltar ao nosso grêmio, após sofrimento a que poucos organismos teriam podido resistir. (TAUNAY,1874) 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 01.05.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Cachões: impedimento causado por uma espécie de “fervura” ou cachão, causado pelas pedras, ou penhascos que o Rio tem em seu álveo; ou quando um desnível maior que o ordinário produz corrente mais rápida. (REVISTA LITTERARIA, 1839)

[2]    Conto: parte inferior. (Hiram Reis) 

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