Jornada Pantaneira
A Retirada da Laguna –Parte XV
XV
Incerteza do Rumo. Novo Incêndio e Novo Ataque dos Paraguaios. Penúria da Coluna. Acertamos Novamente com o Caminho. Passagem do Rio das Cruzes. Recomeça a Marcha. Nova Travessia do Rio.
As Mulheres da Coluna.
Triste e pensativo, como antes do incêndio o víramos, marchava o nosso Guia à frente da coluna. Por vezes avançava demais, sem prestar atenção ao perigo que podia correr, pois as volutas de vapor e cinzas que, no campo, se levantavam, caprichosamente e não raro nos envolviam, nos impediam de ver os cavaleiros paraguaios fazendo menção de se aproximar.
Também impressionado com a atitude inquieta de Lopes, perguntou-lhe de chofre o Coronel se acaso seguíamos o caminho direito, e se corriam as coisas como ele desejava. Só obteve evasiva resposta, muito no caso de nos capacitar que ele, o Guia, perdera a firmeza, embora hesitasse em confessá-lo.
Os que por largo tempo comparticiparam da vida sertaneja têm um amor-próprio muito maior que os demais homens. Provém-lhes este sentimento do convívio com os selvagens, entre os quais, como se sabe, se revela veemente pela inabalável firmeza com que suportam os mais cruéis tormentos, infligidos pelo inimigo vencedor.
Cerca de duas léguas ainda, andamos assim, embora fatigados. Viera, confidencialmente, dizer-nos o filho de Lopes que, a seu ver, tínhamos de reconhecer volumoso caudal, chamado o Rio das Cruzes. Observaram-lhe que tais palavras davam como a entender que ao acaso caminhávamos.
Respondeu imediatamente que de fato não sabia para onde íamos; sobrava-lhe a consciência do erro cometido; não ousava, contudo, abrir-se com o pai. Fora significar-lhe que não mais sabia orientar-se em campo raso; e o respeito ao pai votado, ao Chefe da família, àquele que tantas vezes o guiara nas jornadas através das solidões, obrigava-o ao silêncio. Este traço da vida primitiva não poderíamos deixá-lo esquecido; fez-nos correr grande perigo.
Quando o velho percebeu que duvidávamos de seus conhecimentos do terreno, sobreveio-lhe grande desgosto, que não pôde ocultar. “Não fora a perturbação deste atraso, murmurava, a própria estrada por si nos guiaria; quando alguém, pelo campo, procura caminho nunca deve parar”. Não consentiu que seguíssemos as indicações do filho; fora a seu ver, uma infração às leis naturais e ao direito patriarcal. Impediu-nos a noite, felizmente a cair, prosseguirmos em rumo evidentemente incerto.
Apenas acampados, aliás, vimos que para nós o dia não acabara; grande provação ainda nos esperava. Os compridos alagadiços que, como dissemos, cortam esta campina haviam deixado a macega parcialmente a arder. Consideráveis áreas ainda havia intactas, principalmente em torno do ponto que atingíramos. O fogo que acabava de lhe ser ateado já nos cegava e vinha-nos ao encontro, desta vez, porém, precedido dos próprios paraguaios. Julgavam que um ataque cerrado obstaria à manobra pela qual até então nos tínhamos defendido do incêndio.
Desfilou sua infantaria ao longo de um brejo, em que se apoiava o nosso 21° Batalhão. Tendo pelas costas a fumaça, que nos açoitava em cheio o rosto, graças ao vento que reinava, lançaram-se sobre o flanco de nossa vanguarda.
Se esta no primeiro embate houvesse fraqueado e cedido, teríamos, provavelmente, sido todos devorados pelas chamas. Mas longe de recuar, graças a desesperado esforço, atirou com o inimigo, parte nos pântanos e parte sobre o seu terrível auxiliar, o fogo, que rapidamente se aproximava. Devem suas perdas ter sido grandes; pelo menos pôde o Cap Pisaflores perceber pelas passagens do vento, por entre vapores e chamas, cavaleiros a correr arrastando cadáveres e feridos. Quanto à nossa vanguarda fez ela um movimento de recuo, depois de nos ter dado, graças a sua dedicação, tempo de cortar a macega e transportá-la para longe.
E então, já no meio de nós outros, estes homens estafados, a quem poderíamos chamar nossos salvadores, caindo de cansaço e sofrimentos, com os rostos queimados, as goelas secas, ardentes, deixaram-se ficar largo tempo estirados ao chão sem voz nem movimentos. Três dentre eles nem se ergueram mais; e muitos outros para sempre ficaram enfermos e combalidos.
Tendo-se formado de novo, após o incêndio, acamparam os paraguaios numa colina, de onde nos dominavam; o repouso de que tanto carecíamos não nos seria possível antes que deles nos desvencilhássemos. Obrigou-os a nossa artilharia a ir procurar abrigo na vertente oposta.
Caíra a noite. Havia um luar estupendo, cuja calma contrastava com os clarões sinistros de alguns finais de incêndio, que ainda vagavam pelo campo.
Quando os nossos clarins deram afinal o toque de descansar, ao longe responderam os dos paraguaios como um eco de escárnio. Tudo parecia insultar-nos as misérias: reinava entre nós a fome, com todas as suas torturas e o seu triste prelúdio, esse desfalecimento que aniquila a coragem e a vontade.
De tudo carecíamos, oficiais e soldados. Vivíamos andrajosos, mas a privação do calçado era em geral muito menos sensível a estes do que àqueles, cujos pés estavam intumescidos e ensanguentados. Nesta noite enregelou-nos o vento Norte, e ao mesmo tempo nos achamos expostos a um desses orvalhos, que já nos haviam feito sofrer tanto e isto quando ainda nos podíamos precaver com algumas roupas de agasalho.
Como de costume, estávamos todos de pé, pela alvorada; mas como nosso Guia continuasse a mostrar-se irresoluto, a cada passo chamava o filho a confabularem. Parecia até querer abandonar o rumo de Leste, insinuando que só o seguira até agora para contornar um alagadiço. Afinal, de repente, tomou a direção do Nordeste.
Pelo que pudemos conjeturar, ficaram os paraguaios desnorteados com esta súbita inflexão. A galope subiram alguns a colina onde devia estar o seu Comandante. Não durou muito, aliás, para que percebêssemos haver tornado ao caminho verdadeiro. Daí a um quarto de légua atingimos a margem esquerda de volumoso caudal que não era outro senão o Rio das Cruzes. Já na véspera o teríamos alcançado não fora a excessiva deferência do filho e o orgulho do pai. Tivemos que parar, pois embora desse vau, eram-lhe as barrancas demais escarpadas para que as carretas pudessem passar sem prévio trabalho que nos devia tomar tempo.
Os Corpos da Vanguarda e do centro saíram, pois, de forma; e deixando a retaguarda em linha, começaram a trabalhar nas ribanceiras. Com muito vigor desempenhou o Batalhão de Voluntários tão importante trabalho [pressionados como estávamos pelo inimigo]; e um dos seus oficiais, José Maria Borges, muito estimado dos soldados pelo gênio alegre, nos mais críticos momentos, bem mereceu de toda a coluna nesta ocasião.
Muito grato nos é testemunhá-lo. Foi, graças a ele e à sua gente, que pelas 14h00, tornou-se a passagem praticável. Ali estiveram em sério perigo, sob as vistas dos paraguaios, que, durante esta parada forçada, teriam com real vantagem podido atacar-nos.
Felizmente, e contra qualquer expectativa mantiveram-se imóveis em ordem de marcha, prontos a nos seguir, enquanto procuravam alguns dentre eles um vau a montante e outro a jusante para, quando nos aproximássemos, incendiarem o campo. São habilíssimos, tanto como o sabíamos, neste gênero de manobras que entre eles chega a constituir uma arte, com regras baseadas nos conhecimentos dos ventos e lugares, arte, aliás, diabólica, quando empregada como arma de guerra.
Nós os provocávamos, contudo, e, de tempos a tempos, iam os nossos obuses cair no meio deles. É difícil compreender por que se haviam desfeito da artilharia com a qual poderiam responder à nossa; coisa que apenas faziam por meio de gritos e assuadas. Galgáramos, neste ínterim, a margem oposta do Rio, e ali, apenas chegados, precisamos tomar providências contra o incêndio que nos precedera e vinha ao nosso encontro. Apoiava-se a nossa esquerda ao mato que orlava o Rio e onde, felizmente, as árvores eram de natureza menos combustível que a macega.
Na ala direita, que também estacara, foi o capim cortado e acamado com terra, com mais vagar e cuidado desta vez, com mais ordem do que até então o fizéramos. Acercou-se o incêndio, envolvendo-nos como sempre, de horríveis rolos de fumo; mas as labaredas já não nos ofenderam tanto como das outras vezes. Podíamos, além de tudo, valer-nos do Rio onde, lavados em suor, cobertos de pó e cinzas, íamos beber e refrigerar-nos. Passado o fogo, limparam as nossas peças a planície de paraguaios, que ainda por ali se mostravam; e, conservando sempre a mata à esquerda, conseguimos avançar um pouco para ocupar melhor posição.
No dia seguinte, 17.05.1867, esteve o tempo nebuloso e frio. Soprou o vento com violentas rajadas. Tornou-se a marcha muito penosa, tivemos frequentemente de cortar a macega incendiada, o que a espaço nos forçava a paradas para limpar o chão. Procurávamos também alcançar uns bosques que, com trabalho, atravessamos, porque ali encontrávamos tocos e madeiras ainda de pé, que a custo podiam os machados entalhar. Víamo-nos ao mesmo tempo apertados pela cavalaria paraguaia à frente, nos flancos e pela retaguarda.
Sentia o Comandante a paciência esgotada. Acusava o Guia, atirando-lhe a responsabilidade de todos os atrasos; mas como tais exprobrações fossem ouvidas em respeitoso silêncio, acabava por acalmar-se. Vencia a bondade natural e com o tom conciliador de quem sofre e compartilha dos infortúnios alheios. “Não nos irritemos, dizia, estamos a pagar os nossos erros”. Todo este dia andamos sempre à matroca ([1]). Com o conhecimento do terreno perdera Lopes todo o espírito de iniciativa.
Deixava-lhe o filho transparecer crescente inquietação, sem proferir, contudo, um único comentário. Tornou-se tamanha a fadiga dos bois carreiros de nossa artilharia, que se negaram a ir além, deitando-se no chão.
Fizemos alto, pois, forçadamente, no meio de pequeno capão, onde apenas encontramos água insuficiente e má. Não deixou o inimigo de vir à noite acampar à pequena distância de nós; e o 21° Batalhão, que ainda constituía a nossa vanguarda, teve, desde então, de abrir tiroteio. Durante a noite toda ladrou a cachorrada dos paraguaios, que sempre andavam acompanhados de matilhas. Mal lhes responderam os nossos cães, míseros restos de uma malta a custo disputada à fome dos soldados.
A 18.05.1867, desde a madrugada, começou copiosa chuva que não tardou em ensopar nossas pobres roupas e nos predispôs mais tristemente para uma marcha ainda mais lenta que a dos dias precedentes. Nem sempre caía chuva com a mesma força, mas havia de vez em quando aguaceiros que não tardavam em encharcar o solo, de modo tal que a cada passo ficavam as carretas presas e retidas nos caldeirões ([2]) que abriam. Que espetáculo comovente o do grupo de nossos míseros enfermos, a quem, sob desabalados aguaceiros no meio dos regatos que elas formavam, tínhamos de deixar no chão! Precisamos logo atravessar um alagadiço muito extenso; e, durante esta longa travessia, não cessaram os paraguaios, que já haviam ocupado todas as alturas dominantes, de atirar, embora sem nos causar grande dano. As suas descargas de pelotão não tinham maior êxito que os estrepitosos hurras com que as acompanhavam.
Por vezes chegaram-nos os gracejos com que nos insultavam a miséria:
‒ Venham tomar-nos o gado e fartemse!
Algumas balas bem apontadas por homens ávidos de vingança castigaram tais ironias. Quase diariamente sucedia que o Sol, fraco de manhã, após as noites glaciais, tornava-se depois escaldante. Variação perene que acabava arruinando-nos a saúde. Neste mesmo dia. Acastelando-se a Oeste espessas nuvens, daí proveio cedo novo dilúvio, que transformou em furiosa torrente um Ribeirão já por si volumoso, que Lopes não nos assinalara; e nos forçara a uma terceira parada, tão cruel quanto as precedentes. Morríamos de frio; estávamos a jejuar, e só com muito trabalho, à meia-noite pudemos ter fogo, à custa de empilhar muita lenha verde que ardia quase sem labaredas.
Nauseante espetáculo revelou-nos, nesse lugar, quanto entre os nossos soldados era a fome tremenda. Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara-se um círculo em torno do animal, cada qual mais ansioso esperando o jato do sangue, uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo. Chegado o momento, atiraram-se todos a ele, os mais afastados e os mais próximos. E assim era diariamente. Mal tinha o açougueiro tempo de cortar a rês; era quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos a fim de levá-los ao local da distribuição.
Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido; repulsivo pasto de que não podia deixar de originar-se alguma epidemia.
Na manhã de 19.05.1867 lançou o Major Borges, sobre o Ribeirão, convertido em Rio estreito, mas profundo, improvisada ponte que, experimentada, não apresentou solidez bastante, obra que fora de operários mais debilitados pela fome do que, com efeito, desprovidos de ferramenta. Julgamos necessário reforçá-la com um tronco enorme de aroeira, encontrado pelas vizinhanças.
Foi só então que a artilharia pôde sem acidente atravessar. Uma carreta única a seguia: queimáramos as demais para entreter as fogueiras que nos preservaram de completo tolhimento; e esta mesmo só fora poupada porque podia prestar-se para o transporte dos feridos de uma para outra margem. Estava inundada a ribanceira que atingíramos e ainda várias vezes se ensoparam os desventurados inválidos levantados a braço antes de acomodados em padiolas ou cangalhas.
Eram as mulheres que nos acompanhavam setenta e uma, contadas à entrada da ponte. Iam todas a pé, exceto duas, montadas em bestas; carregavam quase todas crianças de peito ou pouco mais velhas. Por heroína passava uma e todas a apontavam.
Havendo-se encarniçado um paraguaio que tentava lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada no chão, e num ápice matara o assaltante. Mais infeliz vira outra o filhinho recém-nascido esquartejado por um inimigo, que pelas pernas lho arrancara do colo.
Traziam todas no rosto, aliás, os estigmas do sofrimento e da extrema miséria. Ainda vinham algumas carregadas de objetos provenientes do saque; mantas, ponchos, pesadas espadas paraguaias, baionetas e revólveres.
Caíra a noite; quando muito conseguíramos estabelecer-nos em frente ao nosso acampamento da véspera; mas já era imenso termos atravessado o Rio. (TAUNAY, 1874) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Matroca: sem rumo. (Hiram Reis)
[2] Caldeirões: buracos. (Hiram Reis)
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