Jornada Pantaneira

Cavalaria Paraguaia

A Retirada da Laguna –Parte IX

IX

Ordem de Marcha. Formatura do Corpo Expedicionário. O Mascate Italiano. O Major José Tomás Gonçalves. Surpresa e Tomada do Acampamento Paraguaio da Laguna.

Acabara o Cel Camisão de determinar que mar­charíamos sobre a Laguna. A 30.04.1867, le­vantamos acampamento para estacar à mar­gem do Apa-Mí, Ribeirão que dista uma légua do Forte da Bela Vista. Pareciam os Soldados ressentir-se da insuficiência do rancho. Corria a marcha silenciosa e como ensombrecida pela tristeza. Para a animar ordenou-se que os cornetas de todos os Corpos alternadamente tocassem; e a tropa gostou disto. Era como uma provocação lançada aos paraguaios, que de longe viam seguir a coluna. Avançavam os nossos diferentes Corpos em quatro Divisões distintas, formadas na previsão dos ataques de cavalaria que, com efeito, deveríamos esperar. Em Conselho de Guerra, anterior à nossa ocupação de Bela Vista, fizera o Coronel adotar uma ordem de marcha apropriada à feição da zona atravessada e da campanha. Propusera, ao mesmo tempo, duas disposições de defensiva para duas hipóteses: de planície descam­pada, ou coberta de capões de mato, combinações de grande simplicidade que, na prática, nos presta­ram grandes serviços, obstando qualquer confusão ao se travarem os combates.

Se, realmente, foram em geral as cargas da cavalaria inimiga frouxas e inconstantes, é de se supor, contudo, que o seu único fito não vinha a ser simplesmente avaliar-nos a resistência. Poderia um primeiro momento de hesita­ção, ser sempre decisivo e trazer-nos o completo destroço.

No caso, pois, em que estivéssemos pelas proximi­dades de alguma moita, ou cerrado, ou ainda de algum Ribeiro, devíamos convergir para este amparo natural, nele apoiar as carretas de munições e de feridos, com as bagagens, e cobrir-lhes a testa com uma curva formada pelas quatro divisões da coluna, levando cada uma a sua boca de fogo.

Em campo raso e desabrigado formariam estes Corpos, sempre alternados com as peças, quadrado em volta do nosso material.

Em todo o caso deviam os Comandantes ser avisados pelos Ajudantes-de-Campo ou por mensageiros, da formatura escolhida, de acordo com as circuns­tâncias.

Primeiro de maio [01.05.1867]. Após uma noite tran­quila recomeçamos a marcha, e sem incidente, até a Fazenda da Laguna, a localidade designada pelos nossos refugiados do Paraguai. Ali havia, então, apenas uma choupana de palha que o inimigo, retirando-se, desdenhara incendiar. Ao chegarmos vimos um dos nossos soldados dirigir-se ao nosso encontro trazendo um papel que achara pregado, com um espinho, ao tronco de uma macaubeira; variante da primeira ameaça em verso. Dirigida ao Comandante, assim dizia:

‒  Malfadado o General que aqui vem procurar o tú­mulo; o Leão do Paraguai, altivo e sedento de sangue, rugirá contra qualquer invasor.

Domina este planalto vasta extensão de terras, como que convidava o Coronel a que ali acampasse; mas ainda desta vez fizeram os refugiados preponderar a sua opinião que era a seguinte: sem mais demora, nos dirigíssemos exatamente para o centro do esta­belecimento, onde, mais facilmente, poderia o gado ser rodeado e cercado. A vista disto resolveu-se que a marcha prosseguiria, indo-se, sem que daí provies­se nenhum dos resultados acenados, acampar a meia légua dali, num terreno triangular de marga ([1]) nitrosa, entre dois Regatos que confluem antes de se lançar no Apa-Mí; e onde os rebanhos, atraídos pelas propriedades salinas do solo, costumam geral­mente concentrar-se na estação das grandes cheias: lugar denominado Invernada da Laguna.

Mostrou-nos o primeiro relance de olhos que, tanto ali como em qualquer parte, o inimigo nos cerceava, sobretudo, os víveres. Ao colocarmos guardas avan­çadas pudemos, a certa distância, divisar um acam­pamento paraguaio dispondo de grande boiada e ca­valhada tangida para o Sul, enquanto a sua van­guarda nos vigiava os movimentos.

Que podíamos fazer sem cavalaria. No entanto os dias 02 e 03.05.1867 se empregaram em diversas tentativas para a obtenção de gado ou pelo menos para surpre­ender algumas sentinelas de quem se pudesse obter informações sobre o estado do interior da República. Malogrou-se-nos, contudo, o duplo intuito. Quanto à grande boiada que avistáramos, desaparecera. Fize­mos ainda algumas avançadas em busca dos animais tresmalhados ([2]) em tais pastagens, mas ainda nos falhou este expediente precário.

No dia da chegada, tivera o 21° Batalhão a sorte de apanhar apenas umas cinquenta cabeças, malgrado os esforços dos cavaleiros inimigos, que nada pouparam para lhas retomar. Nenhuma outra batida pelos arredores teve resultados; muito embora para tal serviço partissem os demais Corpos, uns após outros. O que deste trabalho penoso lucramos foi que levando nossos soldados sempre vantagens nas escaramuças parciais que daí provieram, completou-se-lhes a educação militar no fogo, sem demasiados sacrifícios. Não só ganharam confiança em si como nos chefes.

A 04.05.1867 vimos chegar ao acampamento um mascate italiano, Miguel Arcanjo Saraco, que de Nioaque viera, seguindo-nos as pegadas, com duas carretas de provisões, recurso para nós insuficiente. Passara o Apa, atravessando as três e meia léguas que nos separavam, acompanhado de um único camarada que o ajudava a conduzir os veículos.

O maior terror o perseguira durante todo o trajeto; mas a ele contrapusera o inato pendor para o cômico. Por uma fantasia armada para se incutir coragem, rodeara-se, contava-nos, de imaginários Batalhões a quem, de tempo em tempo, dava ordens em voz alta, simulando manobras. Entre outras cenas deste gênero relatava que às dez horas de uma noite trevosa, ao transpor o Apa-Mí mandara, com todo o fôlego dos pulmões, cruzar baionetas, à vista de um capão de mato que lhe inspirava receios.

No meio da alegria da chegada, e das emoções de toda a natureza, não esqueceu, contudo, a notícia positiva, afirmava, da aproximação de longa fila de comboios a que se adiantara, e rodava pela estrada de Nioaque ao Apa, apesar de todos os perigos de uma linha de perto de trinta léguas a percorrer em completo descampado.

Seja-nos relevada esta diversão cômica no momento de encetarmos a narração de cenas sempre doloro­sas. Traria esta mesma noite sério motivo de inquie­tação.

Verificara-se a ausência de um soldado do Batalhão de Voluntários. Este miserável, de índole viciosa e semi-imbecil, havendo roubado a um dos camaradas, furtara-se ao castigo desertando. E sobejas razões tínhamos de recear que o Comandante paraguaio por ele viesse a ter informações, as mais completas, sobre a nossa falta de víveres e a necessidade em que já nos achávamos de bater em retirada.

E efetivamente tivera o Coronel de dar neste sentido ordens impostas pela necessidade. Não sabemos se ainda tentava engodar a si próprio como procurava fazê-lo em relação a nós outros, ao qualificar o movimento retrógrado de contramarcha sobre a fronteira do Apa, para ali ocuparmos forte base antes de prosseguir na invasão do Paraguai.

Não houve, porém, quem se iludisse. Principiava a Retirada. Pretendeu pelo menos disfarçá-la com algum brilhante feito d’armas, pois punha empenho em demonstrar aos inimigos, aos do Brasil e aos pessoais, que se retrocedíamos não era porque a tanto estivéssemos forçados pela superioridade do adversário.

Conhecendo a excelente disposição de nossa gente, resolveu apossar-se do acampamento paraguaio; e para a execução deste assalto designou o 21° de Linha e o Corpo Desmontado de Caçadores. Fixara-se a manhã de 05.05.1867 para esta ação; no entan­to só se realizou um pouco mais tarde. A causa de tal demora foi que, exatamente nesta mesma noite, às nove horas, tremendo ciclone se desencadeou sobre o acampamento.

Torrentes de chuva transformaram logo o solo em lamacento pan­tanal. Não são raros no Paraguai estes terríveis fenômenos; jamais viramos, porém, coisa igual. Os relâmpagos que continuamente se cruzavam, os raios que por todos os lados caíam; o vendaval a arrebatar tendas e barracas, formaram um caos a cujo horror se uniam, de tempos a tempos, os disparos de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos que, apesar de tudo, não cessavam de aferroar-nos: interminável noite em que para nós tudo representava a imagem da destruição.

A mercê de todas as cóleras da natureza, sem abrigo nem refúgio, quase nus, escorrendo água, mergu­lhados até a cinta em correntezas capazes de nos arrebatar, ainda precisavam os nossos soldados preocupar-se em subtrair da umidade os cartuchos. Veio a manhã encontrar-nos em tal situação. Dois dias mais tarde, contudo, antes dos primeiros albo­res, e apesar de se haver renovado a tormenta daquela noite, puseram-se em movimento os dois corpos designados.

Era o Comandante do 21° um Major em Comissão, de nome José Tomás Gonçalves, homem resoluto e audaz, além de tudo popular, tanto pelo mérito como pela estima que facilmente conquista uma fisionomia aberta e simpática. Haveremos de vê-lo à testa da nossa Expedição, após a morte do Coronel Camisão, guiando-a ao termo desejado. Gozava o Comandante do Corpo de Caçadores, Capi­tão Pedro José Rufino, de grande reputação de bravura e atividade. Se alguma coisa devêssemos recear, era o excesso de ardor por parte de ambos, a comprometer a empresa; e assim deitar a perder toda a coluna. Foi, pelo contrário, a reunião de tais qualidades que facilitou o êxito de uma combinação a que o Comandante, com razão, ligara o maior apreço.

Ignorávamos com que forças iam eles medir-se. Fornece o Paraguai menos espiões ainda do que gui­as; e por falta de cavalos não pudéramos efetuar reconhecimentos.

Nada víramos ou ouvíramos, ruído, poeira ou fuma­ça, que nos permitisse presumir da chegada de reforços inimigos. Nós lhes reconhecíamos, contudo, a habilidade em encobrir os movimentos considerá­veis de tropas. Assim, pois, deu o Coronel ordens para que os oficiais, comandando a coluna de ata­que, só entrassem em fogo quando o corpo de voluntários estivesse em condições de os sustentar.

À hora aprazada, destacou este Corpo com uma das peças de nosso parque em direção ao acampamento inimigo. Neste meio tempo, após grande rodeio, e a travessia de uma légua de banhado, chegara a tropa do Major Gonçalves às posições dos paraguaios. Era noite ainda, uma hora antes do nascer do Sol; e tudo se fizera no maior silêncio.

Verificou-se, então, que a bateria inimiga fora ali assestada para defender a passagem do fosso. Na posição que lhe fora marcada, teria José Tomás Gonçalves, desde o romper da aurora, de sofrer o fogo do inimigo.

Assim, pois, compreendendo que não havia um mo­mento a perder, mandou calar baionetas sobre os canhões; investida favorecida pela negligência do inimigo. E, realmente, de toda a cavalaria acumulada por trás do entrincheiramento não havia uma só patrulha para a guarda das peças. A toque-toque ([3]) chegou nossa infantaria sobre os canhões, sem deixar tempo aos seus animais de tiro de nô-los subtrair.

Forçou-se num ápice a entrada do acampamento, mal defendido contra a impe­tuosidade desta surpresa, havendo o Capitão José Rufino e os seus caçadores também entrado em ação.

Penetraram todos de roldão no recinto, levando e derribando quanto pela frente encontravam, no acanhado recinto em que oficiais e soldados, homens e cavalos, mutuamente se embaraçavam, tratando muito menos de resistir do que de escapar para o campo. Tudo o que não foi morto ou ferido, salvou-se pela fuga.

Estas boas notícias, trazidas por um mensageiro, encontraram-nos no alto de um monte que domina a planície e para onde se encaminhara o Comandante, com o seu Estado-Maior, a fim de poder fazer entrar em fogo toda a sua gente, se assim se tornasse necessário.

Iluminados por uma aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os nossos soldados correndo pelo campo, para o local do combate; mais longe, os índios Terenas e Guaicurus, que depois de se have­rem comportado nesta refrega como bravos auxilia­res, carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados aos paraguaios.

Haviam os Comandantes deixado sua gente tomar um pouco de fôlego e como não recebessem, aliás, a ordem de ocupar as posições e vissem, ainda, que o Coronel, sabedor do triunfo, não deixava a elevação para vir ao encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto recém-conquistado.

Começavam a mover-se em nossa direção, quando os paraguaios, rápidos como cossacos, trouxeram a todo o galope a sua artilharia, então sustentada por numerosa cavalaria.

Abriram o fogo até que de nosso lado, entrando em linha todo o nosso Parque, com as boas pontarias feitas pelos nossos oficiais, tivessem de calar-se, após alguns disparos.

O pequeno número de baixas que tivemos, as perdas consideráveis dos paraguaios, sua inferioridade no combate em relação a nós, demonstrada pelos fatos, restabeleceram a calma, incutindo ao espírito do Coronel uma apreciação mais exata das circunstân­cias e das coisas.

‒  Estes selvagens, exclamou, que a tanta gente as­sassinaram e tanto assolaram esta região, quando indefesa, não mais dirão que os tememos.

    Sabem que dentro do próprio território, podemos obrigá-los a pagar o mal que nos fizeram. Vamos à fron­teira aguardar algumas probabilidades de nos abastecer e gozar de pequeno repouso que me não poderá ser exprobrado. (TAUNAY, 1874) (Continua…)

Esquema do Quadrado

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.04.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;    

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Marga: solo argiloso calcário. (Hiram Reis)

[2]    Tresmalhados: debandados. (Hiram Reis)

[3]    Toque-toque: marcha acelerada. (Hiram Reis) 

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