Jornada Pantaneira
A Retirada da Laguna –Parte IV
IV
Marcha Sobre a Fronteira Paraguaia. Conselho de Guerra.
Arrancou a coluna a 25.02.1867, indo acampar a uma légua da Vila, à margem do Rio Nioaque. Logo que pudemos, visitamos o Comandante. Tinha a barraca sobre um montículo pedregoso, a meio abrigado por palmeiras que tornavam aprazível aquele local. Estava agitado: já para o rancho da tarde faltava gado.
A 26.02.1867 estávamos no Canindé; a 27.02.1867 no Desbarrancado.
Dois dias demorou a coluna neste lugar, 28.02.1867 a 01.03.1867. A 02.03.1867 marchava até o Feio, Rio da vizinhança, onde, devido ao mau tempo, passou o dia 3. Nesse mesmo dia voltou José Francisco Lopes de sua estância do Jardim trazendo-nos, mais ou menos, duzentos e cinquenta cabeças de gado, circunstância que naturalmente veio aumentar a grande confiança que nele e em sua palavra já depositávamos.
A 04.03.1867, à uma hora da tarde, ocupamos o lugar onde fora a colônia de Miranda, distante 80 km S.S.O. de Nioaque. Apenas ali restavam alguns vestígios de construções incendiadas.
Principiou o Coronel Camisão por fazer explorar os diversos pontos que se ligavam à nossa posição e ordenou que, em todas as direções, se abrissem picadas através das matas, mandando ocupar as estradas do Apa e da colônia por piquetes.
Ao mesmo tempo eram as trincheiras da frente e da retaguarda resguardados por destacamentos consideráveis.
O que teria convindo seria investir com as fortificações paraguaias e tomá-las. Na primeira confusão desta surpresa, poderíamos devastar o Norte da República antes que o governo de Assunção soubesse de nossa marcha. Deu-se inteiramente o contrário: teve o inimigo tempo de perceber a diretriz e o alcance da empresa.
Continuava sempre iminente a fome. Segundo rebanho de duzentas cabeças, que Lopes ainda trouxera de suas terras, estava a acabar. Nenhuma remessa nova se anunciava e a Intendência em ofício, datado de Nioaque, declarava achar-se incapaz de prover, daí em diante, ao abastecimento de gado.
Nesta contingência acentuaram-se as hesitações do Coronel com maior frequência. Deixou mesmo pressentir a necessidade que talvez o compelisse a recuar até Nioaque e abandonar provisoriamente os projetos de ofensiva. Como fazia praça em observar, tal ideia, aliás, jamais fora favoravelmente acolhida. Quis em todo o caso pôr a salvo a responsabilidade, por meio de documento oficial com que, oportunamente, pudesse justificar-se, quer perante o governo, quer perante o público.
Assim, pois, a 23.03.1867, oficiou ao presidente da Comissão de engenheiros, determinando-lhe que convocasse os colegas para deliberarem sobre a possibilidade de um movimento ofensivo e os meios de o executarmos.
A tarde desse mesmo dia, graças a um contraste, cuja recordação nos ficará inapagável à mente, reuniu-se este Conselho carregado de tantas desgraças, quando a luz crepuscular enchia os espaços de paz e alegria. A princípio solene, acabou por violências nascidas da exaltação conscienciosa.
Por diversas vezes esforçaram-se três dos membros da Comissão em pintar a posição do Corpo do Exército tal qual realmente era; a insuficiência de víveres; a penúria absoluta dos meios de transporte; a ausência da cavalaria e a escassez das munições; a impossibilidade de angariar reforços ou socorros para um punhado de homens internados em terra inimiga.
Daí a eventualidade infalivelmente próxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados, e sob condições em que as tentativas só podiam conduzir a um desastre, e isto com a deplorável consequência de atrair novamente para o território brasileiro, a ocupação paraguaia, acompanhada de todos os horrores.
Razão, mais que sobeja, assistia incontestavelmente aos que assim pensavam. Dois dos colegas, porém, encarando a questão sob um ponto de vista diverso, e buscando argumentos em mais elevada esfera, pretenderam que ao Corpo de Exército assistia uma missão que, a todo o transe, devia cumprir.
Tornara-se-lhe a marcha para o Norte do Paraguai absolutamente indispensável no plano de conjunto da guerra. Era sem dúvida a coluna mais fraca e talvez sucumbisse, mas útil e gloriosamente. Dir-se-ia, pelo menos, que se compunha de valentes brasileiros.
Éramos todos moços; tais pensamentos, tais modos de sentir invocados a propósito de opiniões contrárias, trouxeram troca de palavras ásperas e afinal recriminações pessoais.
Até então mantivera-se calado o Tenente-Coronel Juvêncio ([1]), Chefe da Comissão de engenheiros, sem contudo conseguir dominar a comoção que de vez em quando o agitava. De seu voto, preponderante, devia depender, o desfecho do debate. Resumiu o parecer, colocando-se exclusivamente no terreno prático: “Não podia a coluna avançar sem víveres e já não dispunha de mais gado”. Exatamente em tal momento ocorreu um destes incidentes que nas combinações das coisas humanas surgem para lhes encaminhar o curso.
Um rebanho que o infatigável Lopes, a instâncias do nosso Comandante, juntara nos campos de sua estância do Jardim e tangera para o acampamento, ali entrava tumultuosamente, respondendo os mugidos dos animais aos clamores dos vaqueiros e peões.
Desde então tudo se decidiu, como outrora em Roma expedições militares se detiveram ou precipitaram-se segundo os gemidos das vítimas ou os gritos dos frangos sagrados. Levantou-se o Presidente do Conselho e, voltando-se para o secretário encarregado de redigir a ata da sessão, o próprio autor desta narrativa, encarregou-o de comunicar ao Comandante que a Comissão unânime reconhecia a possibilidade da marcha para a frente, sobre a fronteira inimiga, apressando-se em oferecer toda a sua boa vontade para a execução deste plano. Em seguida, exclamou:
‒ Deixo viúva e seis órfãos. Terão como única herança um nome honrado.
Assim se encerrou este conselho sobre o qual se fixara a atenção de toda a oficialidade e cujo resultado; todos surpreendeu; a ninguém tanto, contudo, quanto ao Comandante, por se ver arrastado pelo obstáculo que acreditara anteceder à sua pessoa e os riscos do primitivo projeto.
O sentimento do decoro pessoal, nele poderoso desde o despertar, preservou-o, contudo, de outros testemunhos da impressão, além de alguns gestos, inopinados e involuntários. Esforçou-se desde então em bem realizar o que fatalmente se tornara impossível deixar de empreender. (TAUNAY, 1874) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.03.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Juvêncio: Juvêncio Manoel Cabral de Menezes. (Hiram Reis)
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