Jornada Pantaneira
A Retirada da Laguna –Parte III
III
Nioaque. O Coronel Carlos de Morais Camisão. O Guia José Francisco Lopes.
Fora a Vila de Nioaque abandonada pelo inimigo a 02.08.1866. Por toda a parte ali se viam vestígios do incêndio. Poupadas, apenas, 2 casas e uma pequena igreja de pitoresca aparência. À primeira vista agrada o aspecto geral do lugar.
De um lado, o povoado e um Ribeirão chamado Orumbeva; do outro, o Rio Nioaque, cujas águas confluem cerca de 900 m, para trás da igreja, deixando livre, em torno desta, à direita e à esquerda, um espaço duas vezes maior. Pequena colina fica-lhe em frente, a pouca distância.
Ali chegamos, às 11h00 de 24.01.1867, acampando, em ordem de batalha, com a direita encostada à margem direita de Nioaque; e a esquerda à mata do Orumbeva. Instalaram-se o Quartel-General e o trem à retaguarda, no local da Vila, ocupando o hospital as pequenas casas salvas do fogo e um grande galpão que às pressas se construiu. Serviu a nave da igreja ‒ de onde se retirara tudo quanto ainda havia de símbolos do culto ‒ de depósito ao cartuchame e a todas as munições. Ergueram-se, de todos os lados, ranchos de palha, “gurbis” como lhes chamam na Argélia, e, dentro em pouco, oficiais e soldados ali se acharam tão bem instalados quanto as circunstancias o permitiam.
Um bem-estar, desde vários meses ausente, o renovamento da existência um sentimento de plenitude de vida a todos nós exaltava, e em todos se transmutava na ânsia de sobressair, graças a algum brilhante feito d’armas que chamasse a atenção do país para uma Expedição desde muito inativa.
Reinavam no acampamento a esperança e a alegria. Perigo havia, contudo, neste entusiasmo; e os que conheciam o Chefe, de si para si, indagavam, com secreto desassossego, qual lhe seria a demonstração da iniciativa. Ia-lhe no peito amarga lembrança que não conseguia remover da mente.
Ao abandonar o Cel Oliveira, Comandante das armas da Província, a Praça de Corumbá ([1]), embora estranho às primeiras deliberações motivadoras desta precipitada retirada, figurara neste triste episódio o Cel Camisão na qualidade de Comandante do 2° Batalhão de Artilharia; e, por tal motivo, vira-se acusado de solidariedade com este ato de fraqueza. Contra ele servira-se a malevolência destas vozes cruéis, circulando, em tal época, um soneto impresso, acerbo estigmatizador dos defensores de Mato Grosso. Dentre os nomes nele apontados, lera o próprio… Subsistia a dor da afronta, profundamente magoado como se lhe achava o pundonor militar.
Com verdadeira paixão aceitara o comando da Expedição. Seria, a seu ver, o modo de se reabilitar perante a opinião pública e, desde tal momento, concebera o projeto não de se manter na defensiva, como o critério o indicava, dada a exiguidade dos recursos de que podia dispor, e sim de levar a guerra ao território inimigo, fossem quais fossem as consequências.
Dia a dia, cada vez mais, tal ideia o empolgara. Sob, a influência de legítimo ressentimento, tomou a feição da fixidez, apesar da inata indecisão do caráter. Sinistro fadário o impelia ao infortúnio. Encontrava-se no arquivo da coluna um ofício do Ministro da Guerra recomendado a marcha sobre o Apa logo que as conjunturas a tanto se prestassem.
Ali enxergou, não o que exatamente havia, uma indicação facultativa, mas a ordem de avançar, forma peremptória. Por mais que se lhe fizessem observações: cego, graças a doentia suscetibilidade, levava a mal que de menos contestável se lhe objetasse. Uma frase depreciativa ao seu respeito pronunciada, imprudentemente repetida, ainda lhe acirrou a inflexibilidade, tornando-o surdo a quanto parecesse desviá-lo do projeto de invasão.
Não era que lhe não sopesasse as dificuldades; via, porém, os soldados cheios de entusiasmo e já aguerridos; embalava-se na esperança de, à sua testa, praticar grandes feitos; adestrava-os às manobras, por meio de frequentes exercícios, levava-os a empenhar combates simulados, em que a artilharia representava ruidoso papel; e desta agitação geral resultava uma animação de que ele próprio compartia.
Entretanto, algumas vezes também, percebia nitidamente que apenas dispunha de uma vanguarda de exército em campanha; e era obrigado a reconhecê-lo.
As hesitações lhe voltavam então, e, chegado o dia por ele próprio fixado para a arrancada das Forças, achava sempre motivo para o adiamento, embora precisasse invocar as razões na véspera repelidas.
Ora oficiava ao Ministro que nada podia empreender sem cavalaria, e ora pretendia poder dispensá-la; dolorosos embates entre a autoridade da razão clara e as inspirações do orgulho magoado.
Era-lhe a atitude, aliás, sempre digna e firme; em todas as questões administrativas trazia, sobretudo, o cunho de nobre integridade. Não admitia uma diminuição ao prestígio de Chefe e sabia mantê-lo tanto mais quanto lhe assistia real singeleza e amenidade.
Homem de quarenta e sete anos de idade, baixo e aparentemente robusto, feições regulares, tez moreno-escura, olhos negros e vivos, tinha larga testa e belo crânio, completamente calvo, que dos paraguaios lhe valeu injuriosa alcunha. Sempre sério e preocupado, era visto solitário, ou a conferenciar com o velho sertanista que nos servia de Guia, José Francisco Lopes.
Merece este ser apresentado ao leitor antes que o veja agir. Dentre nós, os que tinham presentes os romances de Fenimore Cooper, não podiam, à vista do sertanejo brasileiro, o homem das solidões, deixar de evocar a grande e singela figura de “Olho de Falcão” no “Último dos Moicanos” ([2]).
Tivera, desde a infância, o pendor pelas entradas nos sertões brutos. Contava-se também que um ato violento, da primeira mocidade, lhe impusera, durante algum tempo, este modo de vida.
Viera depois a idade desenvolver-lhe todas as aptidões. Prodigiosamente sóbrio, viajava dias inteiros sem beber, trazendo à garupa da cavalgadura pequeno saco de farinha de mandioca, amarrado ao pelego macio, que lhe forrava o selim. Jamais deixava o machado destinado a cortar palmitos.
Nascido na Vila de Pinmi, em Minas Gerais, dali, ao léu das aventuras, havia atingido todos os pontos da área que se estende das margens do Paraná às do Paraguai. A fundo conhecia as planícies que entestam com o Apa, divisa do Brasil e do Paraguai.
Numerosas localidades até então virgens do pé humano, até mesmo selvagem, percorrera e a várias batizara [Pedra de Cal, entre outras]. Tomara, em nome do Brasil, posse, ele só, de imensa floresta, no meio da qual fincara uma cruz, grosseiramente falquejada, onde esculpira a inscrição “P II” [Pedro Segundo], imponente madeiro, perdido no recesso dos desertos. Criava a iniciativa do sertanista domínios ao soberano.
Numa viagem para estudar a navegação do Rio Dourado, afluente do Paraná, gravemente ferira a planta do pé, acidente de que jamais pudera curar-se. Um dia, como lhe víssemos a chaga, semicicatrizada, sempre a sangrar, disse-nos:
Prometeu-me o governo dar-me, a título de recompensa, trezentos mil-réis, mas nunca os pagou. Perdoei-lhe a dívida; o que se me devia era uma condecoração; já a tenho e nada mais quero.
Durante sete anos, com a família, residira no Paraguai; mas no momento da invasão já estava de volta ao solo brasileiro, habitando, à margem do Rio Miranda, uma propriedade sua, que batizara Jardim, fertilizada por seu trabalho e o dos filhos já crescidos. Ele e a mulher, D. Senhorinha, generosamente hospedavam quantos ali fossem ter.
Quando, em 1865, irromperam os paraguaios em território brasileiro, conseguira escapar-lhes, mas único da família, que caíra toda em poder do inimigo e fora transportada para a aldeia paraguaia de Horcheta, a sete léguas da cidade de Concepción. Com ela vivia o coração do velho Guia. Por todas estas razões, nele encontrou o Coronel Camisão apaixonado adepto. Desde que, dando-lhe a conhecer os seus projetos, acenou a José Francisco Lopes com o ensejo de, como Guia da Expedição, ir ter com a família e vingar-lhe os agravos, empolgou o espírito do sertanista brasileiro, que, apesar de todo o ardor, jamais perdeu, contudo, a perfeita intuição das conveniências. Assim, nunca esquecendo a modéstia da posição, frequentemente dizia:
‒ Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram nos livros é que sabem.
Era-lhe o orgulho num único ponto irredutível, no que tocava ao conhecimento do terreno, legítima ambição, além do mais, pois dela nos proveio a salvação. Exclamava:
‒ Desafio todos os engenheiros com as suas agulhas [bússolas] e plantas. Nos campos da Pedra de Cal e Margarida sou Rei. Só eu e os índios Cadiueus conhecemos tudo isto.
Resolveu-se a partida de Nioaque, embora já com grandes dificuldades tivéssemos que lutar, sobretudo quanto ao abastecimento de gado. Comunicou-se a ordem às tropas sem que se soubesse para onde se ia marchar. Pensava a maioria que se tratava somente de alguma incursão a fazer em território inimigo. Levava a coluna apenas o material indispensável para um mês de ausência. Ficavam no acampamento as mulheres dos soldados, exceto duas ou três. (TAUNAY, 1874) (Continua)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.03.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. A Retirada da Laguna: Episódio da Guerra do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Americana, 1874.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Corumbá: em fins de dezembro de 1864, Corumbá tomada e devastada pelos paraguaios. Era a principal praça comerciante de Mato Grosso: e o inimigo ali realizou mui considerável presa. Haviam-se os habitantes refugiado nas matas vizinhas, mas Barrios os perseguiu. Saqueadas as casas, vários objetos roubados, e dos mais valiosos, remeteram-se a Lopez que não hesitou em os guardar, sobressaindo-se Barrios entre todos os que assim procederam. A um brasileiro rico, e sua filha, levaram a bordo do seu navio: e quando o pai recusou deixar a menina a sós com o Chefe paraguaio, arrastaram-no à força, ficando a infeliz criança no navio. Pôs Barrios em tratos todos os que lhe caíram nas mãos, quando queriam ou não podiam dar-lhe as informações pedidas, ordenando que os espancassem: foram vários lanceados como espiões. (TAUNAY)
[2] “O Último dos Moicanos”: romance histórico de James Fenimore Cooper, lançado em 1826, baseado nos eventos relacionados com a Guerra Franco-Indígena [1754-1763]. Nataniel Bumppo era um espião a serviço dos britânicos, mais conhecido como “Olho de Falcão” [em referência à sua precisão no tiro com armas].
“Olho de Falcão” era um homem que tinha aprendido a viver em harmonia com a natureza e estava desvinculado das modernizações e da cobiça da época. Embora fosse inculto, representava a perfeição moral e a sabedoria superior natural. Esse é um dos tipos centrais da mitologia do Oeste que continua a exercer influência na cultura norte-americana: o homem solitário e armado, sem grandes recursos, mas com sentimentos nobres e princípios morais, que vive em meio à natureza, sem os confortos da civilização (JUNQUEIRA)
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