Jornada Pantaneira

La Retraite de Laguna

A Mídia Pretérita e a Expedição
Parte V

La Retraite de Laguna – Taunay
Correio Paulistano n° 3.745
São Paulo, SP ‒ Terça-feira, 01.12.1868
Publicações

Sob o título “La Retraite de Laguna” principiou o Tenente Alfredo de D’Escragnolle Taunay a publicar em língua francesa uma narração da memorável Retirada das forças expedicionárias do Mato Grosso ao comando do Cel Camisão.

A descrição daquelas extraordinárias cenas a que assistiu o mesmo autor, a quem sobre elas já devemos algumas boas páginas escritas na nossa própria língua, será sem dúvida lida com interesse na Europa, onde a verdade talvez pareça romance. (CP N° 3.745)

Diário de S. Paulo n° 2.739
São Paulo, SP ‒ Terça-feira, 22.12.1874
Literatura – Carta de Lisboa

Lê-se em um dos folhetins do Diário do Rio de Janeiro, o seguinte:

Quando estudei com atenção, os documentos oficiais, e cotejando com todo o cuidado as versões contraditórias dos dois beligerantes na guerra do Paraguai, um dos episódios que mais me cativaram o espírito foi um dos que menos eco tiveram na Europa – a Expedição de Mato Grosso. Na Europa falava-se nas grandes batalhas, nos feitos de armas brilhantes, Uruguaiana, em Riachuelo, em Humaitá, em Lomas Valentinas, na Batalha do Campo Grande; seguia-se com ansiedade a perseguição das colunas cortadas do infatigável López, o “steeplechase” ([1]) infrene ([2]) em que o Visconde de Pelotas e o ditador do Paraguai procuravam à porfia alcançar mais depressa os vastos desertos de Mato Grosso. Mas quem sabia entre nós do martírio obscuro, da dedicação silenciosa e resignada dessa pequena coluna, que, comandada pelo Coronel Camisão, penetrou no território do Paraguai até Laguna, e teve de retirar-se, enfim, perseguida e dizimada, mais do que pelo ferro do inimigo, pela peste, pela fome, pelo incêndio, pelo desalento? Eu, pelo contrário, assim que o estudo dessas brilhantes campanhas me fez entrar no conhecimento desse episódio ignorado, senti uma profundíssima simpatia por esses heróis que afrontavam a morte, não nos campos de batalha gloriosos, que a luz da história têm de iluminar em cheio, mas nos desvios ignorados de Mato Grosso; nessas vastas solidões sem ecos, por esses mártires sublimes que morriam silenciosamente em torno da Bandeira Auriverde, não quando ela se desfraldava triunfante às auras da vitória, entre os clamores entusiásticos da luta, mas quando ela batia tristemente na haste escalavrada.

Quando simbolizava, não a Pátria triunfante, mas a Pátria chorosa e em luto; quando esse símbolo augusto fazia latejar nas veias dos soldados, não a febre dos grandes lances patrióticos; mas a cruel morbidez da nostalgia. Contribuíra decerto para esse sentimento de admiração profunda, de comoção simpática, o formoso livro que me narrara as peripécias dessa tragédia “La Retraite de Laguna”, escrito em francês pelo oficial brasileiro Alfredo D’Escragnolle Taunay, não é simplesmente a história militar da Expedição, é a narrativa comovida e palpitante das angústias e dos desalentos dessa marcha lúgubre. Com ele não se seguem unicamente os movimentos estratégicos de tropas sem individualidades, que não representam mais do que peças de xadrez movendose no tabuleiro vastíssimo do Teatro da Guerra; mas penetra-se na intimidade da coluna, conhece-se a fundo o valente Cel Camisão, tão cheio de brios, tão pundonoroso, mas não hesitante.

Como que assistimos às angústias que lhe dilaceram o espírito indeciso, como que o vemos a marchar, silencioso, triste e desalentado, no meio dos solda­dos, que todas as misérias acabrunham, a pensar na imensa responsabilidade que assumiu, e a pedir a Deus a morte, que seja para ele ao mesmo tempo expiação e alívio.

Desenrolam-se diante de nós as amplas e imponen­tes paisagens de Mato Grosso, vemos a coluna vaguear perseguida pelo fogo que devora as altas ervas, contemplamos a figura imponente do velho guia José Lopes, que o Sr. Taunay tão justamente compara com Nathaniel Poe, de Cooper ([3]).

Ouvimos os gritos dos enfermos abandonados, e como que sentimos também uma alegria imensa dilatar-nos o espírito, quando se divisa a fazenda do Jardim, o laranjal sombrio carregado com os frutos vermelhos, que é, para esses infelizes, terra de promissão, mais ainda, a salvação e a vida. O escritor que pintava com tão vigorosa e ao mesmo tempo dramática pena as paisagens, os caracteres e os episódios patéticos dessa desventurada tragédia, tinha por força altas qualidades de romancista, e esta minha suspeita confirmou-se plenamente, quando soube que era o Sr. Alfredo D’Escragnolle Taunay quem escreveu, com o pseudônimo, de certo já hoje transparente para os leitores brasileiros, de Sylvio Dinarte.

Um romance que em tempo lera com sumo prazer; a “Mocidade de Trajano”, e dois livros que acabo de ler agora, um recentíssimo – “Histórias Brasileiras”; outro, datado de 1872, “Inocência”. O romance, tal como hoje se entende, é o complemento indispensável da história, e o romancista, ao passo que proporciona aos seus leitores um prazer mais ou menos frívolo com os seus fantasiados enredos, tem também de cumprir mais alta missão, a de contribuir com elementos indispensáveis para o estudo de uma época ou de uma sociedade.

Ao passo que a história narra os acontecimentos políticos, as molas secretas da diplomacia, os planos das campanhas; o romance introduz-nos nos segre­dos da vida íntima, denuncia-nos as paixões os pre­conceitos que atuam nos caracteres. A história compendia as leis, o romance os costumes; a história narra os fatos que se desenrolam na praça pública, os romances os mistérios do lar doméstico; a história conta-nos as agitações da turba anônima, incons­tante e caprichosa, o romance dá um nome a cada um dos elementos da multidão, analisa-o e descreve-o, e assim contribui para nos explicar os caprichos que para a história são enigmas cuja chave não possui. […] Pois bem! Taunay escapou a este escolho, em que muitos naufragaram […]

Repetimos ainda hoje, contra os escritores brasileiros, a velha acusação de virem procurar na Europa os seus modelos e as inspirações, quando a cada instante aparecem agora nos jardins literários do Brasil flores nativas e opulentas, que têm na fragrância o hálito do solo inflamado em que nasceram, e no colorido o reflexo do céu brilhante que derramou sobre os seus cálices as suas torrentes de luz. O Brasil tem sem dúvida hoje uma literatura verdadeiramente nacional, mais ou menos abundante, mas em que imprime o cunho especialíssimo da Pátria. Os seus poetas bebem a inspiração nas torrentes natais; romancistas estudam o modo de ser da sociedade brasileira, e entre estes últimos ocupa sem dúvida um lugar importante o escritor que se esconde debaixo de pseudônimo de Sylvio Dinarte um nome já ilustrado por louros diversos dos que enramam a fronte dos filhos diletos da fantasia, mas louros não menos viçosos e perduráveis. [Pinheiro Chagas] (DSP N° 2.739)

Guerra
(Augusto dos Anjos)

Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte…
E a dramatização sangrenta e dura
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Da avidez com que o Espírito procura
É a Subconsciência que se transfigura
Em volição conflagradora… E a coorte
Das raças todas, que se entrega à morte
Para a felicidade da Criatura!

É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na ordem cósmica, descendo
A irracionalidade primitiva…
É a Natureza que, no seu arcano,
Precisa de encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos homens que está viva!

O Nadador II
(Castro Alves)

[…] Vagas! Curvai-vos tímidas!
Abri fileiras pávidas ([4])
Às mãos possantes, ávidas
Do nadador audaz!
Belo, de força olímpica
‒ Soltos cabelos úmidos ‒
Braços hercúleos, túmidos… ([5])
O rei dos vendavais!   

Mas ai! Lá ruge próxima
A correnteza hórrida,
Como da zona tórrida
A boicininga ([6]) a urrar…
É lá que o Rio indômito,
Como o corcel da Ucrânia,
Rincha a saltar de insânia,
Freme ([7]) e se atira ao mar. 

Tremeste? Não! Que importa-te
Da correnteza o estrídulo?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também…
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico…
‒ Novo Mazeppa ([8]) oceânico ‒
Além! Além! Além!

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 13.03.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

CP N° 3.745. Publicações – Brasil – São Paulo, SP ‒ Correio Paulistano n° 3.745, 01.12.1868.

DSP N° 2.739. Literatura – Carta de Lisboa – Brasil – São Paulo, SP ‒ Diário de S. Paulo n° 2.739, 22.12.1874.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Steeplechase: corrida de obstáculos. (Hiram Reis)

[2]    Infrene: desenfreada. (Hiram Reis)

[3]    James Fenimore Cooper, autor de “O Último dos Moicanos” e seu personagem Nathaniel “Olho de Águia” que fora criado pelos índios. (Hiram Reis)

[4]    Pávidas: tímidas. (Hiram Reis)

[5]    Túmidos: grossos. (Hiram Reis)

[6]    Boicininga: cascavel. (Hiram Reis)

[7]    Freme: brame. (Hiram Reis)

[8]    Mazeppa: título de um poema do Lorde George Gordon Byron que descreve a lenda do revolucionário ucraniano Ivan Mazeppa que, depois de seduzir uma nobre, foi amarrado nu a um cavalo xucro que disparou em selvagem galope. (Hiram Reis)

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