Em entrevista, professora Primavera Borelli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, explicou que o quadro atual das crianças indígenas é grave e terá recuperação lenta

Yanomamis aguardam nos arredores do hospital que presta atendimento aos indígenas em situação de emergência em Boa Vista, Roraima – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Cerca de 570 crianças yanomamis com menos de cinco anos morreram por causas evitáveis nos últimos quatro anos, conforme divulgou o site Sumaúma, que atua na região amazônica. A situação de desnutrição severa enfrentada pelos povos originários foi classificada como genocídio pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em carta enviada ao Congresso Nacional na última quinta-feira, 2 de fevereiro.

Em entrevista ao projeto Ciclo22, a professora Primavera Borelli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, em São Paulo, explicou os fatores que levam a quadros de desnutrição e indicou que a patologia provoca sequelas visíveis e internas. Confira abaixo.

A desnutrição é uma complicação patológica da má nutrição. A senhora pode explicar, resumidamente,  como se chega a esse quadro?

Desnutrição ou subnutrição humana são sinônimos, mas aqui no Brasil, e particularmente por conta da tradução do inglês, se usa o termo desnutrição mesmo. Temos pelo menos duas grandes causas: a primeira vem de dietas inadequadas, que podem ser tanto por causa das chamadas “dietas da moda”, em que as pessoas resolvem restringir e modificar os alimentos, ou pela ausência de alimentos.

Essa ausência pode ser causada por epidemias, por exemplo, e na questão da covid-19, quando a insegurança alimentar e a fome aumentaram no mundo inteiro. Também pode ser causada por eventos climáticos, como as grandes secas e inundações, e por meio de guerras, principalmente quando esses conflitos afetam fornecedores mundiais ou mesmo distúrbios locais que podem levar a uma alteração na disponibilidade de alimentos.

Já as causas secundárias são aquelas em que a pessoa ou o animal tem uma comorbidade. Por exemplo, uma dificuldade de absorção de alimentos de determinados tipos ou há uma expressão aumentada, por exemplo, de diarreias, de alterações intestinais. Pode também ser consequência de neoplasias [tumores que podem ser malignos ou benignos].

No caso dos yanomamis, até onde sabemos, há ausência de alimentos, e pelo que estamos vendo por meio da imprensa, isso decorre da alteração do meio ambiente, na qual os garimpos na região do entorno degradam a mata e com isso afastam a possibilidade de caça e pesca dos peixes.

Aparentemente não houve ações do governo anterior para resolver a questão do garimpo e dar uma suplementação alimentar associada ao caso deles, pois houve aumento de malária por conta do desmatamento.

Esse quadro de desnutrição altera diversos componentes sanguíneos, como demonstra o artigo Hematological alterations in protein malnutrition, assinado pela senhora. Como ocorre essa alteração hematológica causada pela má nutrição?

Classificamente em desnutrição há dois tipos: o Kwashiorkor, que foi inicialmente descrito em 1934 e define quando há principalmente carência de proteína, mas também de carboidratos. A outra definição é o Marasmus, no qual há deficiência de proteínas, carboidratos e gorduras. Ou seja, quando há restrição total de macronutrientes.

O caso dos yanomamis é um quadro marasmático, que na área da nutrição chamamos de Kwashiorkor marasmatico, no qual há deficiência tanto de proteínas, como de carboidratos e micronutrientes. Todos, principalmente as proteínas, são necessários para a constituição das nossas células. Sem eles, todas as células do organismo podem ser comprometidas: primeiro são aquelas de alta renovação, como a pele, que sabemos estar constantemente sendo renovada. Outro tecido de alta renovação é o sangue, responsável pela produção de células vermelhas, que dão cor e chamamos de hemácias, leucócitos e plaquetas.

Se a pessoa tem anemia, uma alteração no transporte de oxigênio por conta da diminuição de hemácias, a função dos órgãos começa a se comprometer. Também inicia-se diminuição das alterações dos leucócitos, os glóbulos brancos. Temos diferentes tipos: granulócitos, neutrófilos, eosinófilos, basófilos e monócitos, que são células fagocíticas, ou seja, que ingerem material estranho, como o resto celular. Há também os linfócitos, que são os principais responsáveis pela resposta imune, tanto aquela que produz anticorpos, como a que usa a imunidade celular.

No caso da desnutrição modelar [realizada em animais, demonstrada no artigo], conseguimos ver que quando há cerca de 5% a 10% de perda de peso por desnutrição proteica, os animais começam a ter alteração no órgão produtor, que é a medula óssea. Se o próprio órgão produtor começa a se alterar, ele não produz adequadamente. A consequência é a redução no número dessas células, levando à anemia. No caso dos leucócitos, há alteração na resposta de defesa. Ou seja, o indivíduo fica suscetível a infecções e a substâncias, micróbios e bactérias que um indivíduo saudável não ficaria. Aumenta o risco de infecções e aumenta a morbidade.

Outros tecidos também vão se alterando a longo prazo. Se não houver o aporte adequado de nutrientes, o catabolismo começa a se alterar e a degradar gordura, a pessoa emagrece. Altera-se a musculatura esquelética, há perda de músculo, e em um estado mais grave, até os órgãos internos. Isso, associado às infecções e à anemia, leva ao colapso final. À morte. Houve um caso, inclusive, em que um indivíduo adulto teve um caso severo de desnutrição, caquético, no qual houve uma redução na calota craniana do cérebro.

Quais são, então, as consequências da desnutrição? Depende da idade em que a desnutrição se instala, do tipo, da intensidade, do período e se a pessoa tem ou não comorbidade. Esses fatores levam a diferentes graus de desnutrição. O que nós estamos vendo sobre os yanomamis é um caso crônico, eu diria que de um período no mínimo de seis meses a um ano, de diminuição dos nutrientes. Uma desnutrição severa.

Como a desnutrição afeta crianças, em comparação com indivíduos adultos?

A desnutrição, de maneira geral, afeta mais as crianças, principalmente abaixo de cinco anos, idade na qual a taxa de mortalidade é maior. Idosos também, por várias razões. No caso dos yanomamis, vemos que atingiu toda a população porque há uma ausência total de alimentos e ainda, aparentemente, contaminação de mercúrio. Vão ter que fazer exames para descobrir.

A desnutrição também pode afetar embrião e feto dentro de um útero. Há cerca de 15 anos achava-se que o feto era preservado, mas hoje sabemos que ele também é afetado, ainda que nasça com um peso adequado. Mas, geralmente, nasce abaixo do peso e com menor estatura.

Dependendo da intensidade da desnutrição materna e do período em que ela se instalou na gestação, pode haver consequências futuras, sem recuperação, e isso é extremamente preocupante. Vemos isso tanto em humanos, como em casos depois da Segunda Guerra Mundial, como também em animais. Trabalhos em camundongos e ratos demonstraram que animais jovens ou adultos que passaram por uma desnutrição proteica permaneceram com alterações hematológicas quando foram realimentados.

A professora Lydia Sawaya, da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], trabalha muito com adolescência aqui em São Paulo e tem vários trabalhos mostrando que crianças desnutridas tornam-se adolescentes com obesidade, hipertensão e alterações no crescimento. Dependendo da faixa etária que acomete a população, às vezes é possível recuperar a curva de crescimento, mas algumas funções são comprometidas.

Além das funções hematológica, inflamatória e de imunidade, sabe-se que a desnutrição de longo tempo causa alteração no crescimento, no desenvolvimento psicomotor, alterações cognitivas, além de alterações na imunidade. Por isso, a desnutrição é considerada um gravíssimo problema de saúde pública.

Embora muita coisa se saiba sobre a desnutrição, as alterações moleculares estão começando a ser vistas agora. É o que estudamos: os efeitos moleculares da desnutrição no caso da hematologia, da célula-tronco. Há uma dificuldade em estudar alguns aspectos moleculares em humanos porque, por exemplo, procedimentos em medula óssea são altamente invasivos. Por questões éticas, é preciso haver justificativas, que não a experimental para acontecer, por isso trabalhamos com animais para fazer similaridade com o que ocorre em humanos.

Esse tipo de estudo molecular não é para resolver o problema da fome, mas para entender o que está acontecendo. As questões sobre fome e insegurança alimentar resolvem-se com uma nutrição adequada.

É possível reverter quadros de desnutrição? Quanto tempo leva para reverter, ainda que vá deixar sequelas?

A Organização Mundial da Saúde [OMS] e a FAO têm protocolos que começam desde o início da vida, como no caso da hidratação, do tratamento das morbidades e da nutrição. A reversão depende de cada caso e da gravidade. O processo pode se iniciar por meio de uma alimentação oral ou parenteral, por exemplo, com uma concentração específica de proteína para não ter sobrecarga renal.

Os protocolos são padronizados, principalmente nos casos hospitalares em que há alimentação parenteral, com hidratação, tratamento das comorbidades e recuperação nutricional com proteínas, macro e micronutrientes. Esse processo tem etapas que podem levar meses porque a recuperação do organismo leva tempo e as consequências dessas sequelas terão que ser avaliadas, pois podem ser duradouras, como a baixa estatura. Outras, como alterações funcionais, talvez não tão evidentes, podem levar a alterações cognitivas, cardiopatias, nefropatias e alterações de imunidade.

Vemos frequentemente a diarreia e pneumonia, que são as principais causas ou as mais comuns na população. No caso dos povos originários, há outras infecções porque eles não tinham contato com as nossas doenças, com os nossos vermes.

Como a imunidade está alterada, a produção de anticorpos e de células T, a resposta desses organismos à vacinação também é menor, o que agrava o quadro no curto, médio e longo prazo. Isso é muito descrito desde a década de 1950, embora não se soubesse os mecanismos, com a vacina BCG [imunizante Bacilo de Calmette e Guérin] na África, região muito afetada pela fome. As consequências são muito sérias, não só do ponto de vista da saúde do indivíduo e da sua prole, mas também sociais, como proliferação de doenças e problemas de aprendizado. Há também repercussões econômicas, pelo aumento do gasto com o tratamento das doenças e dificuldade de trabalho.

Para dar um dado recente, após a pandemia, a desnutrição mundial era em torno de 700 milhões, uma porcentagem mundial de cerca de 29%. Houve um aumento aproximado de 350 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, que é quando a pessoa não sabe se vai ter a próxima refeição. Desses, aproximadamente 140 ou 150 milhões enfrentam fome, ou seja, não têm alimento de nenhuma natureza. Esse quadro, no âmbito mundial, pode agravar-se por conta das consequências da guerra na Ucrânia, dependendo de cada país e da autocapacidade de produzir e distribuir alimentos próprios. Além disso, as mudanças climáticas, com a alteração do ciclo de chuvas, afetam a agricultura, o que pode levar a desequilíbrios na produção dos alimentos.

O Brasil, infelizmente, voltou para o mapa da fome e agora tem essa situação que, pelo que estamos vendo, beira o genocídio, pois houve omissão das autoridades responsáveis. Essa desnutrição não é de uma semana ou um mês, é de longo prazo.

A fome, hoje, não existe por carência de alimentos, mas por má distribuição, por não chegar ou por problema de acesso. A situação socioeconômica é uma das principais causas para as pessoas não terem acesso ao alimento de boa qualidade, com proteínas.

Mas e a epidemia de obesidade? Há em determinadas populações grande ingestão de carboidratos e gorduras associada ao sedentarismo e, dependendo, a obesidade pode ser encarada como uma má nutrição. Temos pesquisas em laboratório em que animais conduzidos à obesidade por excesso de gordura desenvolvem uma alteração funcional na imunidade. Então é preciso avaliar, e a FAO sabe disso, que as cestas alimentares precisam ser equilibradas Não adianta só haver carboidratos: arroz, farinha, óleo, gordura. É preciso haver proteína de boa qualidade, como leite. Em situações emergenciais tenta-se suprir o imediato, mas, em resumo, não só no caso dos yanomamis, em toda situação de fome, a recuperação da desnutrição é lenta.

Crisley Santana

PUBLICADO POR: Jornal da USP – Desnutrição pode deixar graves sequelas em crianças yanomamis – Jornal da USP 

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