Descendo o Rio Branco
S. M. do Boiaçu – Moura
(20 a 21.08.2019) – Parte I
Há cerca de 30 anos, a psicologia passou a empregar o termo “Resiliência Humana” para descrever indivíduos que têm a capacidade de enfrentar problemas, aprender com as derrotas e crescer emocionalmente.
Assim, entendemos que a resiliência é uma habilidade e pode ser treinada e desenvolvida em qualquer fase da vida.
Então, mesmo que não se considere resiliente, é possível, a partir de agora, começar a fortalecer esta capacidade. (Érika Stancolovich)
20.08.2019 (Santa Maria do Boiaçu / AC 05)
Levantei às 03h40, carreguei as poucas tralhas para o caiaque que deixara na véspera estacionado junto à embarcação do “I COPAM 2019”, aprontei o “Argo I” e auxiliado pelo sentinela nos deslocamos até a rampa de concreto à margem do Rio Branco.
Parti às 04h18, a Lua minguante iluminava meu destino apenas o suficiente para que eu pudesse compará-lo com as cartas. A saída de madrugada tinha 2 motivações:
1ª Como não choveu no dia anterior consequentemente a névoa que normalmente se formava ao alvorecer não ia acontecer;
2ª A noite clara prenunciava uma canícula terrível.
Precisava aproveitar, ao máximo, esta temperatura, ainda razoavelmente agradável, antes que o Astro Rei surgisse no horizonte. Tinha decidido alcançar o Rio Negro num tiro de uns 110 km e lá, orientado pelo pessoal da Polícia Ambiental, deveria procurar o flutuante do Toninho que me daria total apoio. As margens tomadas pelas águas e a necessidade de ultrapassar meus limites ([1]) embalavam minha determinação. Quanto mais me aproximava do Rio Negro menor a velocidade das águas do Rio Branco. Numa das paradas, sem sair do caiaque, controlei a velocidade de arrasto do caiaque e o GPS marcou apenas 1,0 km/h. A aproximação da foz do Rio Negro dava um novo alento a este velho marujo, o Sol abrasador tentava minar minha resiliência, as costas doíam e a musculatura do braço direito se ressentia do esforço prolongado.
Não achei o flutuante do Toninho, e não estava em condições de navegar mais 30 km para aportar na praia do Destacamento de Apoio da COMARA. Fui acostando na margem direita Rio Negro procurando um local para pousar e ao avistar uma prainha, depois de remar 12 horas sem descer do caiaque resolvi estacionar, às 16h20. Mantive minha rotina costumeira me hidratando, montando a barraca, lavando as roupas e comendo mais uma castanha, apenas 5 no dia de hoje.
A primeira vez que ouvi o termo “resiliência” foi através de meu caro amigo e mentor de longa data Cristian Mairesse Cavalheiro. O Mairesse foi meu Tenente, na derradeira década do século XX, no então Centro de Informática N° 3, em Porto Alegre, RS. Além de excepcional profissional é uma figura humana modelar e pedi-lhe, então, para falar um pouco sobre o tema:
RESILIÊNCIA
Por Cristian Mairesse Cavalheiro
O que faz alguém salvar mais de 70 companheiros arriscando sua vida no campo de batalha, retratado no filme “Até o último homem”, sem pegar numa única arma, usando apenas de sua fé moral e bradando “Just one more”? O que faz alguém estudar a vida toda para ter a possível e remota chance de ir ao espaço um dia e talvez jamais voltar?
O que faz um médico enfrentar 48h de turnos em Hospitais abarrotados de doentes, chegar em casa para o sono dos justos e receber uma ligação de um caso urgente que seu colega não está conseguindo solucionar e ter que voltar para ajudar? O que faz alguém suportar 4 anos de holocausto, a poucos passos entre os campos de concentração e as salas de tortura ou extermínio e ainda encontrar esperança de viver?
O que faz alguém atravessar o oceano em um bote sem água potável ou mantimentos para provar sua teoria que é possível sobreviver tomando água salgada em doses pequenas sem ter nefrite? Dizem que quando se está à deriva no oceano, a metade do tempo se passa temendo a morte. A outra metade, a desejando-a.
O que faz alguém estudar durante 10 anos para concursos públicos extremamente difíceis e concorridos, com disputas na segunda casa decimal, rodar em uma dezena deles e ainda ter a determinação de tentar novamente até passar?
O que faz alguém cruzar a nado o Canal da mancha ou a subir o Everest até o topo do mundo?
O que faz um empreendedor enfrentar a árdua missão de crescer sua empresa, atravessando por gerações de adversidades internas e externas, empregando milhares de pessoas, sendo justo e ao mesmo tempo ousado?
O que faz uma pessoa de origem humilde, morando em uma favela acordar as 5h todo o dia, 3h de deslocamento para ir e mais 3h para voltar de seu trabalho, ganhando uma remuneração digna, mas insuficiente para o sustento de sua família e ainda assim não sucumbir ao crime?
O que faz uma mãe perder seus dois filhos e marido em um acidente e ter que seguir sua vida?
O que faz alguém navegar em uma canoa por 15 mil km neste Brasil, passando por toda forma de perigo a sua vida, longe de sua família e, mesmo assim, todo ano enfrentar um novo desafio pessoal que hora estamos tendo a oportunidade de conhecer pelos seus livros? Qual a bússola interna que ele possui que diariamente o faz querer mais e melhor de si mesmo?
São heróis? Possuem necessidade de aventuras, adrenalina ou de querer se sentir vivos? Talvez, mas todas carregam em sua essência uma característica, são pessoas altamente resilientes, preocupadas que o “End” é tão importante quanto o “Start”.
Vemos muitos sempre começarem alguma coisa, mas poucos vão além do que inicialmente planejaram, a despeito das dificuldades que se apresentam. Uma vez um líder me disse: Cristian, somos pagos para resolver problemas, o dia que não tivermos um, somos dispensáveis. Então, vamos enfrentá-los.
Aprende-se muito com os acertos, mas muito mais ainda com os erros. Existem escolas que ensinam o planejamento ao extremo, nos mínimos detalhes. Mas o inusitado te apresenta situações que somente sairá delas se estudar o que já deu errado em outras vezes com os outros.
A certeza da punição que o erro provoca é altamente educativa. Dias atrás, participando de um grupo de WhatsApp que buscava a meditação por mantras e reflexões, fui convidado a escolher 50 pessoas que de alguma forma influenciaram em minha formação e vida e, ao lado de cada nome informar o porquê.
Foi fácil, pois havia feito uma lista de convidados para os meus 50 anos recentemente, sobrando nomes. Obviamente o Cel Hiram estava nesta lista, é um dos meus mentores e uma grande referência não só de resiliência, mas de liderança. Contudo, resolvi ao final, retirar 5 nomes dos que havia influenciado por bons motivos, por outros 5 nomes que foram meus maiores desafetos em termos de relacionamento pessoal ou profissional e dois que me assaltaram em momentos de distração.
E foram estes enfim os que mais provocaram minha resiliência. Resiliência significa que você enfrenta estressores e desafios da vida e ao cometer erros na sua evolução, terá se recuperado e voltado ainda mais confiante para o próximo desafio. Lidar com relacionamentos tóxicos, ambientes de trabalho, familiar ou de estudo oprimentes pode prejudicar inclusive sua saúde física, além da mental.
O estresse está associado a diminuição do sistema imunológico, a problemas de raciocínio e até cardiológicos. Agora, tentar suprimir o stress que atrapalha sua convicção de seguir em frente é uma tarefa inglória.
Imagine agora que ao ler esse texto eu digo que vocês não devem pensar no Covid19, mas como não pensar, está inserido na vida, e na morte também, de cada indivíduo dos 4 cantos do mundo neste momento. E imagine que precisamos resolver isso primeiro para seguir em frente.
Todos nós conhecemos algumas pessoas que são mais propensas a enfrentar experiências adversas e, por normalmente serem pessoas mais preparadas para lidar com a ansiedade e a incerteza, possuem taxas superiores de sucesso.
Por quê? Pelo simples fato que elas estão dispostas a mudar seu comportamento, a sair da zona de conforto e a entender que a grande vitória é uma sucessão de pequenas vitórias. Não se vira um maratonista de um dia para o outro, são meses e anos de treino dedicado para qualquer simples mortal.
Não se vira um médico com um ou dois livros ou poucas provas bem-sucedidas, são centenas, milhares. É preciso ter compaixão consigo, te dar o direito de errar, se recuperar dos fracassos e aprender. Mas mais do que isso, qual é o real significado para o que está se propondo. A alegria de viver o caminho e se divertir com a jornada é o que motiva a seguir em frente.
Meu amigo Mr. Walker, parceiro do Caminho de Compostela e amigo há 30 anos, me falava que os 800 km que nos separava do destino, entre os Pirineus na França e a famosa igreja de Santiago na Espanha, seria um passeio.
Ver a leveza e a forma que ele encarava este desafio, para mim quase sobre-humano, me deu a energia que precisava para superar minhas dores e cumprir nosso propósito. Ao fim não foi propriamente um passeio, mas foi a maior prova de resiliência de nossas vidas, senão física, mental ou espiritual.
Não conheço nenhuma destas pessoas fictícias ou reais acima citados que tenham realizado seus feitos de forma fortuita. Todas acordam muito cedo, enfrentam uma jornada de muito sacrifício pessoal, se cuidam de forma especial, derramam muitas lágrimas, sangue e suor em busca do seu sonho.
Normalmente são pessoas que na busca incansável de seu objetivo, arriscam mais que os outros, pois possuem uma psique admiravelmente elevada para superar os obstáculos.
A convivência com o que dá errado faz dar certo quando realmente se precisa, através da constante visão do contexto se empenhando ao máximo possível para aproveitar o êxito das situações que se apresentam, negociando com o medo e com os meios disponíveis.
Essas pessoas se concentram, no que conseguem mudar e aceitam o que não é possível. Sabem diferenciar bem os pontos negativos dos positivos, mas de certa forma olham para os negativos não conhecidos ainda como neutros. Ser mais cooperativo, avaliar quais as outras dificuldades que teve na vida e foram superadas, procurar apoio e intensificar seus pontos fortes ao invés dos fracos são outras Na solidão do seu caminho, não há como não encarar seus demônios internos. Coragem, determinação, sacrifícios, visão obstinada? O fracasso não é uma opção, você ir até o extremo, ao limite do impensado, com a força de Deus até seu último suspiro, isso é resiliência.
A pergunta que fica aqui para reflexão é: É possível replicar esta qualidade para outros seres humanos? É hereditária? (MAIRESSE)
Navegante II
(Lis Nogueira)
[…]Curvo-me diante da vida
A vida me obriga a remar,
Mesmo quando há vento contra,
Mesmo quando eu não acredito
Que existe Sol para brilhar.
Eu bem que sou pura tormenta.
Entre falésias e angústias,
Procuro o farol ou o porto,
Para descarregar os meus gritos.
Coloquei todos no barco;
Cabeça, coração e tempo.
Mas a minha essência marinha
Não vê acordo entre eles.
E nesse barco que emborca,
Tumultos e ondas são o meu lar.
Só peço a Deus para ter sorte,
E meu braço um pouco mais forte,
Pois preciso navegar. […]
No afã de atingir o objetivo esqueci-me por completo da alimentação. Dei, pela primeira vez, nos acampamentos, uma atenção especial ao banho, imergi nas águas relaxantes do Rio Negro e, sem pressa dediquei-me à minha higiene pessoal.
Por volta das 19h00, deitei-me e, como não hávia sinal de chuva, deixei a barraca sem a lona externa para ventilar, poder admirar o firmamento e por questão de segurança também. Acordei apenas três vezes com o ruído das ondas quebrando na praia – provocadas pelas embarcações que passavam ao largo.
Madrugada silente, nenhum solo de pássaro barítono, celebração festiva dos guaribas ou sarau soturno dos cururus, uma noite sem maiores manifestações sonoras enfim.
Total 7° Dia ‒ S. M. do Boiaçu / AC 05 = 118,0 km]
Total Geral ‒ P. Macuxis / AC 05 = 542,0 km
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.02.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
[1] Meu recorde, até então, tinha sido alcançado em 03.03.2013, por ocasião de minha descida, de quase 4.000 km, pelos Rios Juruá e Solimões. Parti de Coari, AM, às 04h45, e aportei em Codajás, às 15h05, depois de percorrer 141 km. As duas paradas, sem descer do caiaque foram de dez minutos cada uma, uma para reabastecer os cantis no meio do Rio e outra, na margem esquerda do Solimões para deixar uma tormenta passar. A média horária, graças à correnteza foi de 14,1 km/h sem considerar as duas breves paradas. Mais de seis anos se passaram, na Descida do Juruá eu estava no auge da forma física e agora a correnteza do Rio Branco era muito fraca, o ombro direito ainda se ressentia da recente cirurgia… (Hiram Reis)
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