Jornada Pantaneira

O Canoeiro

O Guia Lopes – Parte II

Assim, no dia 11 de maio, pela manhã, as nossas Forças transpuseram novamente o “Apa”, e continuaram a Retirada. Quando foi por volta do meio-dia, os paraguaios desencadearam o maior e mais violento ataque que a Expedição sofreu. A esse ataque, resistiram os nossos com galhardia, e saíram vitoriosos; mas, por infelicidade, perderam o gado.

Que seria da Expedição, sem víveres? Só um homem poderia encontrar, na sua grande experiência, solução para aquela situação tristíssima: era o velho Lopes. O nosso Guia, que, no combate, era de intrepidez sem igual, e até terrível, mostrava-se sempre, na hora calma das deliberações, mais que qualquer outro, o homem dos bons conselhos. Para ele, pois, é que apelou o Comandante da Expedição.

Não ficou, aliás, somente nesse, o serviço de Lopes, no dia 11. Lopes era a alma das Forças Expedici­onárias, naquele doloroso transe. Quando o Coronel Camisão se determinou a mudar de itinerário, em razão do conhecimento que tinha o inimigo do que era seguido pelas Forças Expedicionárias, pois era o mesmo pelo qual avançaram sobre o Paraguai, ainda na sagacidade e na boa vontade do velho Guia e que ele foi achar solução razoável para a conjuntura. Às 13h00, continuavam as nossas Forças a Retirada, senão quando, sem que ninguém o esperasse, os paraguaios abriram, contra elas, de colina próxima, fuzilaria intensa.

Mas Lopes, que se achava sempre na vanguarda, mais uma vez salvou a situação, sem que lhe fosse dada ordem, e valendo-se do conhecimento que tinha do terreno, abandonou, inesperadamente, a estrada seguida, infletiu para a esquerda, e, contramarchando, subitamente, por esse lado, levou as nossas Forças ao pé de um morro, onde, se preciso, se poderia localizar uma bateria.

Estabeleceu-se, por essa forma, certa desorientação entre os paraguaios, da qual se aproveitaram as nossas Forças, para a prossecução ([1]) da marcha, por dentro do macegal. De repente, percebeu Lopes que os paraguaios haviam posto fogo a Este. Que fez, então, para lográ-los? Caminhou direito para Miranda, e, depois, descambou para a sua estância.

Ao romper da manhã do dia 12 de maio, as nossas Forças levantaram acampamento, e, ainda, nesse dia, graças ao velho Lopes é que os paraguaios não lhes puderam ganhar a dianteira, para lhes perturbar a marcha. Ao entardecer ‒ um triste entardecer de retirada ‒ mal se instalaram as Forças Expedicioná­rias sobre um pequeno cerro, começaram fortes lufadas de vento Sul a trazer-lhes o calor do fogo que lhes vinha ao encalço, pelo campo.

O velho Lopes não perdeu tempo: ordenou que o pessoal, de que podia dispor, cortasse, a toda a pressa, a macega que circundava o local do estacionamento, e que, uma vez cortada, fosse imediatamente conduzida para longe, coberta de terra e, depois, calcada. E não ordenou apenas: deu ordens e executou, também. A sua atuação foi, sobretudo, de valor inapreciável, quando o incêndio se aproximou, em crepitações diabólicas.

Por toda a parte, estava ele, então, grande, sublime, incomparável, estimulando os outros, e lutando como leão indômito por apagar aquele mar de cha­mas, com que o inimigo, desumano e astuto, procu­rava aniquilar, de vez, aqueles homens sofridos e destemerosos, que uma agressão insólita a honra de nossa Pátria havia levado àquelas regiões impérvias ([2]). Ai de nossas Forças se não fora ele, naquela hora amarga, em que a fumarada e as labaredas daquele incêndio imenso ameaçavam queimá-las e asfixiá-las! Ai delas se não fora aquele sertanejo resignado e impávido, naquele instante de angústias e de sofri­mentos, em que as enormes línguas de fogo, lança­das aos ares por aquele pavoroso incêndio, faziam lembrar o inferno em que Dante Alighieri mergulhava os réprobos ([3])!

Naquele dia, o velho Lopes foi bem maior que muitos dos heróis que Homero, em seus poemas épicos, celebrou em estrofes harmoniosas e imperecíveis. Ao alvorecer do dia 14 de maio, após uma noite de desassossego, passada em claro, debaixo de agua­ceiros desapoderados ([4]), as Forças Expedicionárias, sempre guiadas pelo velho e abnegado Lopes, reencetaram a marcha por densa mata a dentro, isso para evitar a passagem por um desfiladeiro que já se achava ocupado pelos paraguaios. No dia seguinte, viram-se, novamente, as nossas Forças cercadas de enormes chamas terrificadoras. Mas o estoico Lopes não perdeu a calma: mandou que se encostasse, imediatamente, a coluna, a dois capões, que por ali havia, a fim de a resguardar das labaredas laterais, e, a seguir, fez que se cortasse a macega, numa extensão ainda maior que da primeira vez.

Assim que passou o perigo, a coluna continuou a marcha. A frente dela, estava Lopes. Via-se, porém, que estava dominado de grande tristeza e de indisfarçável inquietação. Tinha perdido o rumo. Felizmente, no dia 16, retornara ao caminho certo, não obstante achar-se, ainda, algo um tanto deso­rientado. Quem já não podia recalcar a sua grande contra­riedade com os atrasos provenientes da incerteza do caminho, era o Comandante das Forças Expedi­cionárias. Tanto assim que, no dia 17, exprobrou ([5]) duramente o nosso velho Guia.

E se maior, ainda, não foi a sua desesperação, é porque, com ser homem dotado de coração bondoso, logo se deixou acalmar pelo silêncio respeitoso com que lhe ouviu Lopes as exprobações ([6]).

No dia 19, dissipou-se, afinal, para Lopes, qualquer dúvida que ainda lhe pudesse restar sobre o caminho, graças a uma elevação que se avistava ao longe. Mal deu com os olhos nela, o velho Guia não hesitou em afiançar que, com dois dias mais de marcha, estariam as nossas Forças em sua estância. Como era de esperar, a todos reanimou e letificou ([7]) a informação de Lopes, pois ela significava a aproximação do termo de tantos sofrimentos físicos e de tantas provações morais. Não durou muito, porém, essa satisfação, porque, de repente, circulou a triste nova de que a cólera-morbo havia feito o seu aparecimento entre as Forças Expedicionárias.

No dia 20, os paraguaios tornaram a pôr fogo ao ma­cegal; mas Lopes, sempre diligente, meteu as nossas Forças em um mato de pindaíbas, provido de água, e, assim, salvou-as de se queimarem, embora as não salvasse dos vapores ardentes e da fumarada.

Nesse dia, mais violenta, ainda, foi a ação da cólera. De nove, foi o número de vítimas que nele tiveram as Forças Expedicionárias. E, para mais entenebrecer ([8]) o doloroso quadro dos que deixavam a vida, a noite longa noite de trevas e de sobressaltos os coléricos, tornados de agitação terrível, contorciam-se com câimbras, vociferavam, gemiam, rolavam uns sobre os outros, sem que nada, entretanto, pudessem fazer os médicos para lhes mitigar os padecimentos, pois já não tinham recursos de qualquer espécie.

Apesar de tudo, continuou-se a marcha em 21. Era um desfile fúnebre. Das carretas, pendiam pernas, braços e até cabeças de pobres vítimas do terrível mal. Para maior desgraça, ainda, daquela procissão impressionante de heróis e mártires, assim que, com o calor do Sol, a macega perdeu o orvalho que colhera a noite, os paraguaios lhe puseram fogo.

Ao atingirem as Forças Expedicionárias a uma chapada extensa, avistaram, a distância, o morro da Margarida. Foi uma satisfação geral. Lopes, muito especialmente, rejuvenesceu de júbilo. Era, para ele, a certeza de que continuavam no bom caminho, e de que se aproximava cada vez mais, com o fim daquela caminhada tétrica, o termo da sua patriótica missão.

Esta, porém, não podia acabar sem novo incêndio, ateado pelos paraguaios. E foi o que acon­teceu. Ali estava ele. Por felicidade, ali, também, estava, aten­to, Lopes. Quando este o viu levantar-se crepitante e ardente, varou correndo, para lhe dar combate, por entre cavaleiros inimigos, que se achavam esparsos por aqueles campos, e, mais esta vez, da luta contra o fogo, a vitória foi integralmente sua.

Essa passagem do velho Guia através de adversários reconhecidamente sagazes e audaciosos, foi de grande temeridade. Mas Lopes estava por tudo.

Quando lhe advertiam de que se devia poupar, respondia que de nada valia isso, pois ninguém podia contrariar os desígnios da Providência. Dizia ele que as Forças Expedicionárias se estavam aproximando do fim de suas terríveis provações, e acrescentava:

‒ Saibamos morrer; os sobreviventes dirão o que fizemos.

Do dia 22 até ao dia 24 de maio, a marcha continuou com o mesmo aspecto de verdadeira procissão da morte. (OLIVEIRA, 1957) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.02.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

OLIVEIRA, General João Pereira de. O Guia Lopes – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Prossecução: prosseguimento. (Hiram Reis)

[2]    Impérvias: intransitáveis. (Hiram Reis)

[3]    Réprobos: condenados. (Hiram Reis)

[4]    Desapoderados: furiosos. (Hiram Reis)

[5]    Exprobrou: repreendeu. (Hiram Reis)

[6]    As exprobações: a bronca. (Hiram Reis)

[7]    Letificou: alegrou. (Hiram Reis)

[8]    Entenebrecer: enlutar. (Hiram Reis)   

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