Jornada Pantaneira
O Guia Lopes – Parte I
O General João Pereira de Oliveira, pertenceu à Academia de Letras do Rio Grande do Sul e ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e de Santa Maria (RS). Em 1942, foi eleito Presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Sul (hoje Academia Rio-Grandense de Letras). É de sua lavra a biografia do Guia Lopes publicada na “Revista Militar Brasileira” de julho a dezembro de 1952, que a seguir reproduzimos.
O Guia Lopes
Entre as figuras que mais se singularizaram no largo período de inenarráveis provações porque passaram as nossas minguadas e desaparelhadas Forças, na longínqua Província de Mato Grosso, ao tempo em que por lá andaram, quais feros ([1]) hunos, talando ([2]) campos e ladroando ([3]) gado, as hordas flagiciosas ([4]) de Solano López, creio que nenhuma faz mais jus a simpatia, ao respeito e a admiração dos compatriotas do que a do Guia José Francisco Lopes. O velho Guia Lopes foi exemplo vivo de constância, de lealdade e de desinteresse, que talvez não encontre símile ([5]) na história dos outros povos.
Nascido na Vila de Pium-í ([6]), em Minas Gerais, ali passou Lopes a sua trabalhosa infância. Assim, porém, que se fez moço, deixou a terra de seu berço, rumo a Oeste, em demanda de Mato Grosso, o feracíssimo trato de território brasileiro, que havia de ser, mais tarde, teatro de seus grandes e celebrados feitos. Durante muito tempo, não se fixou Lopes em ponto algum daquela região vastíssima.
Dando largas ao seu pendor ingênito ([7]) pela vida nômade, perlongou ([8]) e vadeou Rios, transpôs montanhas, devassou florestas, pôs nome a lugares até aí virgens de pé humano. Só depois de casado, ao que parece, é que assentou de abandonar um pouco a sua vida errática.
Residiu, então, no Paraguai, por espaço de um setênio ([9]), e, depois, veio habitar a margem do Miranda, em uma estância sua, a que dera o nome de Jardim.
Nessa propriedade, segundo a história, é que costumava dar agasalho aos que o acaso ou os negócios fizessem transitar por aqueles recantos do Brasil, tendo para o secundar, em suas solicitudes de hospedeiro generoso, sua dedicada esposa, D. Senhorinha, cuja bondade era, também, proverbial naquelas bandas. D. Senhorinha fora casada, em primeiras núpcias, com um irmão do nosso Guia, de nome José Gabriel Lopes, falecido em 1849.
Dela, contam que, quando viúva, fora presa e levada, com os filhos, por uma caterva ([10]) de paraguaios, só sendo liberta em 1850, e, assim mesmo, mercê de reclamação apresentada pela legação brasileira em Assunção. Era, pois, em Jardim que residia Lopes, com a família, quando irromperam os paraguaios em território brasileiro.
Tanto que soube da invasão, tratou Lopes de se escapar, com os seus. Foi ele, porém, o único que o alcançou. Toda a família caiu prisioneira do adversário, que a conduziu, como os antigos bárbaros os troféus do saque, para o povoado paraguaio de Horcheta, distante sete léguas de Concepción.
Desde aquele dia, nunca mais voltara ao coração do velho lutador das matas a doce paz dos despreocupados. A toda hora, parecia-lhe que aqueles para quem eram todos os seus carinhos, clamavam de longe, desesperadamente, cheios de dor e de saudade, para que ele, o patriarca, lhes fosse distender, por sobre a cabeça, repleta de pensamentos mestos ([11]), o pálio ([12]) da liberdade.
Dois anos, porém, já se tinham escoado nessa provação de mágoas infindas, sem que o bravo sertanejo, cuja alma era um relicário de sentimentos nobres, pudesse ir arrancar as garras impiedosas dos inimigos de sua Pátria, no lugar de reclusão, aqueles entes a que tanto amava, senão quando, aos 24.01.1867, chegaram a Nioaque, sob o comando do Coronel Carlos de Morais Camisão, as Forças Expedicionárias que deviam expulsar o inimigo, e invadir, pela fronteira Setentrional, o Paraguai. Não teve dúvidas: ofereceu-se para as acompanhar, como Guia.
Aos 25 de fevereiro, as nossas Forças se abalaram de Nioaque, e, em 4 de março, ocuparam a Colônia de Miranda. Ali, na Colônia, e que se deu, em 11 de abril, o tocante episódio, consagrado pela história daqueles dias, do encontro do velho Lopes com o filho, que, em companhia de outros compatrícios nossos, havia fugido do cativeiro, e, na véspera, se apresentara ao Coronel Camisão. A grata nova dessa apresentação do filho, recebeu-a Lopes, justamente, quando atravessava os postos avançados, de volta de um reconhecimento em que tomara parte, com o 17° Batalhão de Voluntários, não muito longe da Colônia.
A comoção que experimentou foi imensa, foi indescritível. Quando se aproximou do filho, estava extremamente pálido e dos seus olhos borbulhavam lágrimas. O filho já o esperava, respeitosamente, descoberto. Lopes não descavalgou ([13]), do alto mesmo da montada, estendeu-lhe a mão, tremente, que o filho beijou com extraordinário afeto. Depois, continuou o seu caminho, sem abrir a boca, silenciosamente, mais do que nunca esmagado pela lembrança dos restantes membros da família ausentes, ontem ditosos, e, então, escravos de um adversário mau, em um País infelicitado pelos desmandos neronianos ([14]) de um megalômano.
No dia 21 de abril, as nossas Forças transpuseram o “Apa”, em frente a Bela Vista, e entraram em território inimigo. Lopes, montando bonito cavalo baio, estava cheio de satisfação. Só se lhe ensombrou a fisionomia, quando viu que, de Bela Vista, se erguia tênue fumo, sinal seguro de que os paraguaios lhe haviam posto fogo. Pouco, porém, durou a tristeza do velho sertanejo.
Mal percebeu que, quase na totalidade, os paraguaios que ocupavam Bela Vista dali se retiravam, desordenadamente, entrou Lopes a provocá-los com assobios e com apóstrofes de desprezo, que despertaram o riso em todos os presentes.
No dia 30 de abril, as Forças Expedicionárias partiram de Bela Vista, e acamparam às margens do Apa-mí, dali a uma légua; e, em 1° de maio, chegaram a Laguna, fazenda pertencente ao ditador paraguaio e destinada a criação de gado. Infelizmente, já o inimigo a havia reduzido a cinzas, ficando, assim, desfeita a miragem de que ali encontrariam os nossos com que, ao menos, minorar a fome, e com a agravante de estar a Expedição num terreno ignorado e áspero, além de cercada por um inimigo, do mesmo passo, solerte e audacioso. A conselho do Guia, avançaram, ainda, as nossas Forças, mais meia légua, até a invernada da Laguna; mas debalde o fizeram, em virtude de haver o inimigo levado consigo cavalhada e gado. Vendo frustrados todos os planos, que imaginara, para esmagar o adversário desleal, e tendo em conta a impossibilidade em que se via de prover a Expedição de víveres e de munições, resolveu o Coronel Camisão voltar a fronteira, com o fim de reorganizar as Forças. Ia, pois, ter início a Retirada. Ao amanhecer do dia 8 de maio, conta o Visconde de Taunay, em seu famoso livro “A Retirada da Laguna”:
Estávamos já em Ordem de Marcha, mulas carregadas, bois de carro nas cangas, e o gado que restava apoiado ao flanco dos Batalhões, de modo a acompanhar todos as movimentos da coluna. Às 07h00, o Corpo de Caçadores, que estava na vanguarda, rompeu a marcha, indo atrás dele as bagagens e as carretas que deram bastante trabalho na passagem de um riacho que as chuvas dos dias antecedentes tinham avolumado.
Pois nesse momento, precisamente, é que a obra mirífica ([15]) do velho Guia Lopes começou a fazer-se ainda maior, ainda mais extraordinária, ainda mais divina, se assim me é lícito dizer.
No dia 8, as nossas Forças não puderam percorrer mais de duas léguas e meia. Não o permitiu o fogo contínuo e cansativo, muito embora pouco mortífero, do adversário.
Aos primeiros albores ([16]) da manhã de 9, após uma noite cheia de indizíveis inquietações, as Forças Expedicionárias continuaram a marcha, e, ainda nessa manhã, se estabeleceram em um cerro, o último, que dominava a Bela Vista e ao “Apa”. Estavam elas, por conseguinte, a pique de deixar o Paraguai. O pesar, por isso, era geral. O velho Lopes, sobretudo, trazia bem impressa na fronte veneranda a dor profunda que lhe ia na alma. Para ele, nada justificava o abandono do território inimigo.
Ao revés, o que a todos impedia como dever sagrado de patriotismo e de humanidade, ainda que lhes custasse a vida, era novo avanço por ele a dentro. Se, com a falta de recursos para a alimentação da tropa, é que se pretendia justificar a volta ao território nacional, bem frágil era a justificativa, pois fácil lhe seria, ainda, ir buscá-los em sua estância. Pouco se lhe dava de sacrificar o que ainda tinha de seu, contanto que se não abandonasse o território paraguaio.
De nada, porém, valeram, nem podiam valer, as ponderações do velho guia. Acima de suas ilusões, estava a realidade ilacrimável ([17]): era preciso voltar a Mato Grosso. (OLIVEIRA, 1952) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.02.2023 – Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.02.2023
Bibliografia
OLIVEIRA, General João Pereira de. O Guia Lopes – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Militar – Revista Militar Brasileira, 1952.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Feros: ferozes. (Hiram Reis)
[2] Talando: destruindo. (Hiram Reis)
[3] Ladroando: roubando. (Hiram Reis)
[4] Flagiciosas: facinorosas, bandidas, maldosas. (Hiram Reis)
[5] Símile: paralelo. (Hiram Reis)
[6] Pium-í: na transição do século XVII para o XIX as terras da serra da Canastra, em roda da nascente do São Francisco, tinham realmente como cabeça administrativa a então Vila de Pium-í, estando fora de dúvida que José Francisco Lopes nasceu em local sob a administração imediata da Vila de Pium-í, na margem esquerda do Rio. (VÁRZEA)
[7] Ingênito: inato. (Hiram Reis)
[8] Perlongou: percorreu. (Hiram Reis)
[9] Setênio: período de sete anos. (Hiram Reis)
[10] Caterva: corja. (Hiram Reis)
[11] Mestos: lúgubres, tristes. (Hiram Reis)
[12] Pálio: manto. (Hiram Reis)
[13] Descavalgou: desmontou. (Hiram Reis)
[14] Neronianos: relativo a Nero, imperador romano. (Hiram Reis)
[15] Mirífica: admirável. (Hiram Reis)
[16] Aos primeiros albores: Ao alvorecer. (Hiram Reis)
[17] Ilacrimável: insensível às lágrimas. (Hiram Reis)
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