Descendo o Rio Branco
ACAMPAMENTO AC 01 – Caracaraí (13.08.2019)
13.08.2019 (Ilha S. Vicente / Caracaraí)
Acordei às 4h30, acondicionei a tralha no caiaque, comi cinco bananas, hidratei-me e parti às 05h50.
Nada de chuva, sem nuvens, o Sol castigava a dupla de navegadores (eu e o Argo I). A comparação com o terreno era facilitada pela mata secundária que na fotografia aérea se apresentava como campo, um varadouro aqui, outro acolá, as curvas…
Minha preocupação se concentrava apenas nas Corredeiras do Bem Querer. Felizmente a cheia submergira a maioria dos penedos e o tempo limpo permitiria que eu escolhesse a melhor rota. Ontem a chuva torrencial e o forte vendaval limitaram a visibilidade a menos de 100 metros o que em águas turbulentas seria um ingrediente extremamente perigoso.
Fui ultrapassando, lance a lance cada um dos obstáculos sem maiores problemas. Já no final das corredeiras, relaxado e descontraído retirei a saia do caiaque e colado na margem direita passei por uma Pousada chamada do Bem Querer, homônima das corredeiras, e estava admirando a construção e seu entorno quando o marulhar das corredeiras interrompeu meus devaneios.
Junto à margem algumas rochas bloqueavam a passagem ruidosamente, logo à esquerda delas outro grupo de penedos complementavam o magnífico obstáculo. Graças ao meu descuido não havia tempo para desviar pela esquerda, a solução ao enfrentar águas turbulentas é o ataque frontal e a velocidade.
Os Lusíadas
(Luís de Camões)
Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca escuma;
Cloto com o peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma;
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa em força suma;
Abrem caminho as ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.
Lembrei-me do então Major Hiram que enfrentara as águas desafiadoras dos Rios Aquidauana e Formoso no Mato Grosso sem titubear jamais. A diferença é que lá fazíamos previamente um estudo de situação, analisávamos as diversas opções, lançando objetos flutuantes para analisar o comportamento dos mesmos. Agora não tinha tempo para isso e a energia de 40 anos atrás já há muito se dissipara. Piquei a voga e parti resoluto, um grupo de pescadores exclamou:
‒ Tá doido!!!
A força da correnteza era muito grande, o caiaque enterrou por três vezes a proa nas águas revoltas, compensei atirando o corpo para trás, mas mesmo assim as águas varreram o convés e entraram no cockpit (eu estava sem a saia), continuei picando a voga e gingando corpo para compensar a ação das águas.
O Argo I corcoveava mais do que potro xucro mas o amazônico parceiro com mais de 12.000 km na Amazônia e seu piloto com mais de 60.000 km, pilotando os Argos I e II, saíram-se airosamente deixando para trás os boquiabertos pescadores. Aportei, às 12h50 (9,7 km/h), nas imediações da Agência Fluvial de Caracaraí. O Capitão-Tenente Jerry Kenned Sabino, Cmt da Agência Fluvial de Caracaraí, e sua equipe me resgataram e fui instalado no impecável camarote do Comandante.
Mesmo tendo navegado sete horas sem parar, percorrendo 68 km, tratei primeiro do meu Amigo Argo I, limpei-o, sequei-o e depois de organizar, secar e limpar toda a tralha, botar para lavar a roupa suja é que fui tomar meu banho. Costume dos tempos de pontoneiro quando só se liberava a tropa depois de manutenir todo o material de pontes, viaturas e armamento.
Partirei somente no dia 15 de agosto (quinta-feira), pretendo descansar um dia em Caracaraí. A velha carcaça reclama.
A próxima parada e possível comunicação é em Santa Maria do Boiaçu, daqui a 287 km, onde pretendo chegar daqui a uma semana, chegando lá, no máximo, no domingo que vem, dia 18, comunicação, então, deverá ser apenas pelo rastreador, mas se houver alguma mudança comunicarei aos familiares e pessoal do apoio imediatamente.
Total 2° Dia ‒ AC 01 / Caracaraí = 68,0 km
Total Geral ‒ P. Macuxis / Caracaraí = 137,0 km
14.08.2019 (Agência Fluvial de Caracaraí)
Ontem à noite saímos para jantar com o CT Kenned Sabino e alguns membros da Agência. Neste curto espaço de tempo pude observar o ritmo frenético de trabalho dos nossos valorosos marinheiros.
As Agências Fluviais têm uma dotação de apenas 12 homens e o que se verifica é que nos primeiros anos de sua instalação estes militares precisam dar vazão à uma demanda reprimida enorme, gerando excesso de trabalho e desgaste desnecessário da equipe, é, pois, necessário que nos quatro primeiros anos este efetivo seja ampliado dando preferência a militares solteiros para evitar problemas de moradia.
Considerando que as Corredeiras do Bem Querer represam um pouco a torrente do rio Branco e que as águas ao ultrapassá-las chegam a atingir 8 nós (14,5 km) meu deslocamento até Santa Maria do Boiaçu deve ser um pouco mais célere.
O único inconveniente é a dificuldade de achar locais para acampar.
A cheia imprimia uma velocidade adicional ao deslocamento do caiaque, cuja velocidade média desde Boa Vista foi de 10,5 km por hora. Vou alterar, então, minha rotina diária e a partir do meio-dia, depois de remar uns 70 km, começo a procurar um local seco para pernoitar ou uma embarcação de pescadores.
Em Santa Maria do Boiaçu, vou ter apoio da Polícia Militar do Estado de Roraima (PMRR). Dali pretendo picar a voga para chegar em Moura onde terei apoio da Força Aérea Brasileira.
Renascimento II
(Jayme Caetano Braun)
[…] O Deus que eu tinha ‒ o meu Deus,
Pra o que chegou ‒ não servia,
Às crenças da geografia
Fizeram que eu desse adeus;
Aos descampados ‒ só meus
Tive de olhar mais de longe,
Rezar frente à cruz do monge,
Noutros rituais ‒ noutras naves
E ‒ em vez do canto das aves,
O som dos sinos de bronze! […]
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.01.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
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