Descendo o Rio Branco
TIRSS na Mídia Nacional – Parte VII
Jornal do Brasil, n° 323
Rio de Janeiro, RJ – Domingo, 25.02.2007
Uma Holanda para 500 Índios
[Renan Antunes de Oliveira – Especial para o JB]
BOA VISTA, RORAIMA – O governo vai entregar mais um pedaço do Brasil para tribos indígenas: pouco antes do carnaval e sem publicidade, o Ministério da Justiça iniciou a demarcação de 4 milhões de hectares de terra para criar a reserva Trombeta Mapuera, na divisa dos Estados de Roraima, Pará e Amazonas.
Ela será quase do tamanho da Holanda, país com 16 milhões de habitantes apinhados em 4 milhões e 152 mil hectares. Eleva para 52% a área de Roraima agora sob controle indígena. A reserva vai abrigar as tribos Wai-wai, que já vive no pedaço, e karafawyana, ainda isolada na selva amazônica – indigenistas estimam que esta tenha apenas 500 indivíduos.
A colocação de marcos na reserva está sendo feita por uma empresa contratada pela FUNAI. O trabalho ficará pronto no fim de março. O presidente Lula deverá anunciar a criação da reserva no Dia do índio, em abril. A atuação discreta do Ministério da Justiça se explica: o governo quer evitar controvérsias.
É o jeito para impedir reações e fugir das críticas crescentes de vários setores da sociedade que acham que o país dá muita terra para pouco índio: eles seriam apenas 300 mil para ocupar reservas em 13% do Brasil.
A criação da reserva Trombeta Mapuera é obra da Congregação da Consolata, uma missão católica italiana que se estabeleceu no Brasil depois da Segunda Guerra. Seus padres seguiam a Teologia da Libertação – a Igreja já mudou para uma rota light, mas o trabalho deles nos grotões ainda está vivo. A Consolata conseguiu grande penetração entre as tribos do Norte nos anos 70.
Como os padres enfrentaram a ditadura ombro a ombro com sindicalistas do PT, forjaram alianças políticas que beneficiaram a congregação quando a democracia foi restaurada – hoje eles têm tratamento vip em Brasília. Os missionários da Consolata aproveitaram a pouca presença governamental na região – tema da Igreja para a Campanha da Fraternidade deste ano – para apoiar e influenciar Ianomâmis, Macuxís e Wai-wais.
Agora, uma curiosa reviravolta está em curso: a presença física dos padres está diminuindo. E sob pressão dos próprios índios que, já de posse da terra, estão se afastando dos religiosos que tanto os ajudaram. Em Roraima, na reserva Raposa Serra do Sol, a Consolata se viu obrigada a doar suas missões às tribos que tinha catequizado.
O Governo Alemão Paga o Policiamento da Região, com uma Frota de Carros Cedidos aos Índios
Mas o apoio estrangeiro continua forte: o governo alemão é quem paga pelo policiamento da área.
Uma frota de carros fora-de-estrada, com logotipo do BNDES da Alemanha, mas pilotada por índios, patrulha a reserva. Os Wai-wais já pediram um financiamento idêntico para proteger Trombeta. Por que este pequeno Brasil dentro do Brasil cresceu fora do radar da oposição unida de alguns antropólogos e indigenistas, políticos de várias correntes, fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e burocratas dos Estados atingidos pela reserva? Porque a área escolhida é de mata virgem, entre os rios que lhe dão nome, o Trombeta e o Mapuera. […]
Da Missão Italiana, só Ficou uma Freira
[Renan Antunes de Oliveira]
A missão do Surumu, na TIRSS, era para ser o paraíso nos cafundós da Amazônia – um conjunto de casinhas onde bons selvagens vivem em paz, educados por padres do primeiro mundo. Nada mais falso. Desde sua fundação nos anos 50 a missão já foi escola, centro de guerrilha, hospital e refúgio de bandidos. De tudo um pouco, até ser incendiada por jagunços a mando de arrozeiros. O ataque aconteceu no fim de 2005 – era o recado desafiador de alguns brancos ao presidente Lula por criar a reserva com terras que eles ocuparam por décadas. Quem vive lá está sempre meio assustado. Depois do incêndio criminoso os padres italianos que pagavam as contas sumiram do pedaço, deixando para trás apenas uma freira – e caixa zero.
No Surumu, Padres Educaram os Índios com Pouca Religião e Muita Política
Enquanto os padres estiveram no Surumu, eles educaram gerações de Macuxís, Wapichanas, Taurepangs e Ingaricós – davam pouca aula de religião, muita de política.
Bancavam terra, comida, salários de professores, telefone, carros, gasolina – bem mais do que cestas básicas. Agora, mesmo sem seus protetores, os Macuxís estão reerguendo o lugar e seguindo a mesma cartilha. Da ordem religiosa sobrou apenas a irmã Leda, franzina, 65 anos, há 15 no Brasil – ela parece tão antiga que jura ter ouvido falar de Papillon, aquele francês que fugiu nadando da prisão da Ilha do Diabo e teria morrido no Surumu. Irmã Leda é a última da geração de voluntários desbravadores missionários que tinha uma missão dentro da missão: reconquistar as terras e emancipar os nativos, embora esta tarefa já não tenha tanto apelo no emancipado século 21.A missão reconstruída serviu de base para um encontro de 200 caciques durante o carnaval. Enquanto o Brasil sambava, eles discutiam ali como impedir usinas hidrelétricas no território, pelo menos até conseguir mais terras e verbas federais – a lista de reivindicações deles é quase um PAC. […]
O almoço comunitário e gratuito na missão é supimpa. As Macuxís Maria Elza e Delcirene fazem arroz cultivado pelos meninos da missão, servem farinha feita pelas comunidades da Raposa, banana colhida no projeto agrícola do Maturucá, limonada gelada com frutos do pé que fica atrás do hospital, carne de bois da fazenda do cacique Andrade – a única coisa de fora é o macarrão de pacote, comprado na venda dos brancos em Socó.
Os Índios Dormem Depois do Almoço
Enquanto a Freira faz a Faxina da Maloca
Depois do almoço muitos índios descansam nas redes enquanto assistem à franzina Leda fazer sozinha a faxina do pátio – por estes dias, ainda recolhendo entulhos do incêndio criminoso do alojamento das visitas, incêndio este provocado já se sabe por quem.
Só a freira trabalhando e o resto da missão dormitando parece confirmar aquela velha lição escolar de que índio não gosta de trabalhar. Mas não é o que parece. O negócio do Surumu é educação. Dias atrás, durante a visita do repórter, enquanto a turma das redes cochilava, 12 adolescentes estavam estudando nas oficinas depredadas pelos jagunços. A advogada amazonense Marceli de Souza, voluntária nacional, dava aula para formar ecoxiitas: “O que significa CONAMA?” Aí ela explicava tintim por tintim a estrutura do Conselho do Meio Ambiente. O Surumu forma técnicos agrícolas, para gerenciar as fazendas que a reserva poderá ter. E ambientalistas, para dar um jeito na sujeira em que ela está. Depois, mesmo sem diploma, os formandos irão às malocas repassar tudo aos demais. Qual é a desses estrangeiros em educar jovens brasileiros? A irmã Leda devolve a pergunta:
Como é que você quer que elas aprendam alguma coisa? Ficando sentadas esperando passar um ônibus escolar que nunca virá? Estes jovens não querem ficar abandonados nos grotões. Quando o governo aparecer para fazer seu papel, vou embora para onde precisarem de mim. (JDB, N° 323)
Correio Braziliense – n° 16.197
Brasília, DF – Sábado, 22.09.2007
Floresta de Cobiça
[Antônio Machado]
Uma hipotética ameaça internacional à soberania da Amazônia e as suspeitas de que organizações não-governamentais, ONGs, da Europa e dos EUA e até setores da Igreja trabalhariam articuladas para, a um só tempo, excluir toda exploração econômica na região e criar a ideia no país de que as instituições nacionais, sozinhas, seriam incapazes de proteger a maior área verde do mundo é um dos grandes mitos da política brasileira. Dependendo do interlocutor, trata-se de uma ficção ou realidade. Nas Forças Armadas, há décadas, o tema recebe prioridade máxima e provoca discussões apaixonadas.
O próprio presidente Lula tem introduzido esta suposta ameaça na agenda nacional. Esta semana, em Brasília, ao abrir o 2° Encontro dos Povos das Florestas, ele declarou, com ênfase, que “a Amazônia tem dono”. Por que ratificou o que é líquido e certo?
Foi retórica apenas ou há quem duvide da inviolabilidade das nossas fronteiras? É certo que, ultimamente, dirigentes de governos europeus tem se manifestado pela internacionalização da região ou oferecido ajuda para protegê-la da exploração predatória e preservar nestes tempos de conjecturas sobre o aquecimento global o maior “pulmão verde” do mundo.
Lula teria ouvido algo assim em seu giro de uma semana à Europa, encerrado na véspera desta fala enigmática? Seu discurso sugere que sim. “Tem gente que pensa que lá não mora ninguém”, afirmou o presidente. “Lá moram 23 milhões. Não é terra de ninguém. Me recuso a aceitar lições de qualquer governante de como o Brasil tem de preservar a sua floresta”.
Ele voltará a tratar de meio ambiente em Nova York, esta semana, ao participar da Assembleia Geral das Nações Unidas. E vai suprido de dados, como antecipou, citando estudo da EMBRAPA segundo o qual há 8 mil anos 9% das florestas do mundo estavam aqui. Hoje, 29,5%.
“Eles acabaram com as deles”, disparou. Apesar de tudo o que foi derrubado e ocupado, a região ainda preserva, segundo ele, 69% da floresta original. Noutro sinal de que há cobranças externas, Lula declarou que esta “discussão vai acontecer daqui para frente em todos os fóruns”. “É um enfrentamento que teremos que fazer para defender aquilo que é nosso”, disse.
O discurso do presidente não poderia ser outro. A Amazônia é inviolável. O ideal talvez fosse fechá-la radicalmente, impedindo qualquer atividade econômica em seu espaço, à exceção, talvez, da exploração de minérios em sítios bem delimitados.
O governo optou pela exploração programada e restrita da madeira, o que implica o risco de legalizar a devastação se falhar a fiscalização, e levar saneamento a “90% das comunidades indígenas”.
Todo Mundo de Olho
Não condiz com o bom senso a entrega da Amazônia, embora no QG da União Europeia, em Bruxelas, a ideia da internacionalização seja discutida quase que abertamente. Nos EUA, oficialmente o governo Bush ignora a questão. Lá, as discussões são quentes entre grupos políticos, ONGs e em universidades. Às vezes, alguém perde as estribeiras, como o comissário europeu para Comércio, o inglês Peter Mandelson, afirmou que o “Brasil tem que responder pela grave destruição da floresta Amazônica”.
ONGs nos EUA, segundo denúncia levada em junho por deputados ao Itamaraty, estariam fazendo coletas para comprar terras no Amazonas e Pará. Onde há fumaça, pode haver fogo, não só das queimadas de posseiros, atrás dos quais vêm os grileiros, o boi e a turma da soja.
Todo cuidado é pouco. O Itamaraty instruiu, no último dia 14, o embaixador na ONU a votar a favor de resolução, aprovada com 11 abstenções e os votos contrários de EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que reconhece um status de consequências imprevisíveis: o direito dos indígenas à sua autodeterminação. É encrenca.
Governos Indígenas
Para Lula, é “com orgulho” que o Brasil já pratica o que a ONU aprovou. Parece que ele não foi suficientemente informado sobre tal decisão. A resolução estabelece que os povos indígenas possam criar instituições políticas, sociais, econômicas e jurídicas próprias e veta operações militares em seus territórios. O que isto significa: um governo autônomo? Há quem entenda assim. O veto às Forças Armadas nestes territórios não fere as cláusulas pétreas da Constituição?
O Congresso deveria elucidar o assunto. Reconhecer os direitos das populações nativas à terra, cultura e valores sociais é uma coisa.
Outra é “desenvolver formas próprias de governo e reafirmar suas instituições jurídicas”, como entendeu o vice-presidente do CIMI, Conselho Indigenista Missionário, Saulo Feitosa, ouvido pela Agência Brasil.
A declaração votada pelo país não é um marco legal obrigatório, mas abriu caminho para um texto mais forte, de aplicação obrigatória aos países membros da ONU: a Convenção Internacional para os Povos Indígenas. Já há mais de 10 milhões de hectares demarcados de terra indígena no país, entre elas a imensa Reserva Raposa Serra do Sol […]. Nela, há cerca de 15 mil índios, e arrozais de fazendeiros que se recusam a sair.
É mais que oportuno discutir se esta área poderia usufruir alguma espécie de autonomia, quem estaria à sua frente – os índios ou as ONGs que os apoiam? –, e se as fronteiras ficariam sem nenhuma vigilância. Sem um debate nacional é que não pode ser. (CBRAZ, N° 16.197)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 02.11.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CBRAZ, N° 16.197. Floresta de Cobiça – Brasil – Brasília, DF – Correio Braziliense, n° 16.197, 22.09.2007
JDB, N° 323. Uma Holanda para 500 Índios – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Jornal do Brasil, n° 323, 25.02.2007
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
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