Descendo o Rio Branco
Bernardo de Azevedo da Silva Ramos
(1930)
O Champollion Amazonense
O Amazonas, grande em tudo, possui em seu seio uma alta individualidade que uma vez conhecida nos grandes centros científicos, tornar-se-á uma celebridade mundial. Queremos nos referir ao sábio amazonense Coronel Bernardo Ramos, tradutor das inscrições lapidares, não só do Brasil, como de diversas partes do mundo. E como o grande cientista chegou a desvendar tão precioso mistério? O Cel Bernardo Ramos, dando-se ao fatigante trabalho de colecionar moedas, organizou a terceira coleção numismática do mundo, hoje de propriedade do Estado, e, findo esse trabalho, verificou que entre as diversas moedas, anteriores à nossa era cristã, muitas de suas inscrições eram semelhantes às que se encontravam em rochedos e pedras do nosso país.
Há mais de vinte anos que o Cel Bernardo Ramos vem empreendendo novas investigações, chegando afinal, depois de muito estudo e paciência, a decifrar as inscrições lapidares existentes no território nacional, passando as suas indagações a outros países da América do Sul, da América do Norte, da América Central, como da Europa, da Ásia e da África. Assim como Champollion, célebre orientalista francês, que em 1821 após várias tentativas de sábios em pesquisas para traduzir os hieróglifos, escrita pela qual “os egípcios exprimiam tudo que respeitava às ciências e às artes, ou para representar ideias misteriosas de sua religião”, conseguiu desvendar o segredo daquele povo, Bernardo Ramos, o notável cientista amazonense, decifrou as inscrições lapidares do Brasil. Descoberta a chave da escrita de nossas pedras, o Cel Bernardo Ramos lançou as suas vistas para outros países, encontrando sempre semelhança, nas nossas inscrições, com as de outras nações.
Pelos estudos do paleógrafo amazonense, ficamos sabendo que muito anterior à Cristo passou pelo nosso Continente uma grande civilização. Entre as decifrações do Brasil, figuram como muito importantes as da Gávea, no Rio de Janeiro, dando notícia da passagem por ali de navegantes fenícios, [887-856 antes da nossa era] e da Pedra Lavrada, na Paraíba do Norte, cuja inscrição em grego antigo datando cerca de mil anos a.C., representa 708 signos, emblemas, astros, constelações, etc. Além disso, o reputado sábio amazonense tem traduzido outras inscrições que se encontram em pedras do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Destaca-se ainda a decifração de algumas inscrições lapidares existentes na Colômbia, Guiana Inglesa, Venezuela, Guatemala, México, Argentina e Chile, como uma infinidade em várias regiões dos Estados Unidos da América do Norte. Computando as inscrições lapidares do Continente americano com as conhecidas na Escócia, em Leon, da Espanha, na França, em Creta, na Índia e na África Austral, o Coronel Bernardo Ramos encontrou absoluta identidade de caracteres alfabéticos, como de conceitos, tudo provando afinidade existente para o entendimento entre povos antiquíssimos, por meio de uma escrita seguida nos diversos continentes.
A esse tempo, o nosso continente era conhecido pelo nome Croniano, segundo as descobertas do Coronel Bernardo Ramos. Em 1922, o nosso ilustre coestaduano transportando-se ao Rio de Janeiro, fez ali diversas conferências sobre este importante assunto, conferências essas que foram presididas pelo preclaro senador Epitácio Pessoa, então Presidente da República.
Já anteriormente, o Cel Bernardo Ramos, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, numa sessão presidida pelo então Bispo da Diocese, D. João Irineu Joffely, apresentara a sua tese sobre as inscrições lapidares existentes em diversos pontos do país. Diante do sucesso alcançado na Capital da República, o Deputado Daniel Carneiro, então representante cearense, apresentou, juntamente com a bancada paraibana, um projeto autorizando o Governo a mandar imprimir a valiosa obra do Cel Bernardo Ramos. Recebendo o respectivo projeto algumas emendas no Senado, voltou à Câmara, onde ainda se acha, a fim de que esta tomasse conhecimento das alterações daquela casa do Congresso.
A obra aludida compõe-se de quatro volumes com mais de duas mil inscrições lapidares, devidamente traduzidas, sem falar num grande número de cerâmicas, em que o cientista coestaduano prova que a escrita usada pelos assírios e babilônios, etc, era da mesma forma seguida pelos gregos.
Notícias de Importantes Inscrições
O mesmo ilustre etnólogo Dr. Theodoro Sampaio, em sua já citada “Tese Oficial”, apresentada ao “1° Congresso de História Nacional de 1914”, dá-nos notícias e noções interessantes de várias inscrições lapidares.
Vamos, pois, fazer uma breve resenha dessas preciosidades, sob o ponto de vista das suas localizações e aspectos, a fim de que, em momento próprio, sejam submetidas a estudos paleográficos ([1]) e gliptográficos ([2]), a cuja ordem incontestavelmente pertencem. […]
São dignas de menção, as da cachoeira de Waraputa, no Rio Essequibo, descritas por Schomburgk; as do Cerro Pintado, imenso rochedo escalvado de duríssimo granito porfirítico ([3]), à margem direita do Orenoco e alto de 250 metros acima da savana, são na verdade extraordinárias, e as deste último ponto, descritas por Chaffanjon, são até estupendas pelas dimensões das figuras e a altura inacessível em que estas se acham. Estão ali gravadas na rocha uma enorme serpente de 120 metros de extensão, um grande sáurio ou jacaré, um enorme miriápode, um homem com órgãos sexuais bem acentuados, um pássaro e outras figuras menores de feição ornamental. Assim também no Rio Correntyne, na face de um gigantesco penhasco, denominado Timehré, se apresentam enormes figuras nitidamente esculpidas, uma delas representando vulto humano, com mais de dez pés de altura e tendo à cabeça um ornato que a circunda como se fora a auréola de um santo. Numerosos são os exemplares desta espécie que se deparam ao viajante no território da Guiana e no Vale do Amazonas. As inscrições são bem mais frequentes nesta região da Guiana, como em toda América do Sul, cobrindo a face dos rochedos e as paredes das cavernas. No Roraima, o culminante dessa região guianense deparam-se por exemplo aos irmãos Schomburgk, paredões verticais de arenito cobertos de figuras e caracteres diversos representando vultos humanos, cobras, jacarés, desenhados com tinta vermelho-ferrugem.
No Essequibo, Brown viu também em rochedos de arenito as mesmas figuras pintadas. Im Thurn ([4]) assinala-as na Serra da Pacaraima. Wallace também as observou em paredões da mesma rocha por detrás de Monte Alegre, no Rio Amazonas, Hartt descreve as da Serra do Ereré, etc.
É digno de reprodução o seguinte texto da lavra do ilustre etnólogo Dr. Theodoro Sampaio, cuja tese resumimos:
Tão generalizadas são essas manifestações da arte indígena, nesta parte do Continente, que repugna admitir não sejam o resultado de um sentimento superior e mais comumente compartilhado no seio da população primitiva. É possível que alguns selvagens, ainda hoje, esculpam ou pintem em rochedos figuras simbólicas, como essas que não sabemos decifrar; mas o que é fato, pelos viajantes atestado, é que os mesmos índios atuais atribuem tais litóglifos e pinturas em rochedos, aos seus antepassados mais longínquos, e por essa razão e por outras que de cedo nos escapam, dão todas as provas de veneração e de respeito diante dessas inscrições lapidares, alguns até chegando a manifestar terror supersticioso, afastando-se delas com prudência. Algumas tribos também por obra de seres misteriosos, anões demoníacos aquáticos. Outros as atribuem ao Grande Espírito.
Na cachoeira de Waraputa, no Essequibo, Robert Schomburgk, não conseguiu nem por persuasão nem por ameaças, que os índios da sua comitiva o auxiliassem a destacar um pedaço do rochedo contendo uma dessas inscrições, e estavam crentes de que essa temeridade do viajante seria punida ali mesmo ou na passagem da cachoeira mais próxima. Quando se lhe depararam da primeira vez essas inscrições, disseram todos a meia-voz ‒ Makunaíma! Makunaíma! [Deus! Deus!].
Diante de duas gigantescas colunas naturais de pedra, uma delas com inscrições que se distinguem aliás pela sua regularidade e simetria, na Serra do Comuti, perto do Essequibo, essa gente da comitiva de Schomburgk, pôs-se a tremer e a vacilar, pois que via naquele lugar a morada de um gênio malfazejo, pronto a castigar aos que dela se aproximassem.
Carlos von Martius, refere que os índios da sua comitiva ao visitarem a cachoeira de Araracoára, no Alto Japurá, diante das esculturas semiapagadas num rochedo proeminente, aproximaram-se delas respeitosamente e, acompanhando com o indicador os sulcos poucos profundos das figuras quase obliteradas pela decomposição da rocha, exclamaram – Tupana! Tupana! [Deus! Deus!]
Não há dúvida de que o selvagem de hoje, nestas paragens, guarda por essas inscrições grande respeito tradicional, supersticioso, o que faz crer tenham tido elas, em outrora significação cultural, quiçá até associada a algum pensamento funéreo.
Nem todas essas inscrições, é bem de ver, representariam coisa para o selvagem digna da mesma e geral veneração; muitas delas evidentemente não teriam essa importância, mas no geral o impressionavam como se fossem reais manifestações de um gênio bom ou mau que a tradição lhe ensinou a respeitar.
Certo não lhes podemos dar hoje a tradução verdadeira, ignorado como está o fundo simbólico que por ventura teriam entre as populações primitivas a que são atribuídas. Judiciosas são na verdade as considerações que sobre o assunto faz o Professor Theodor Koch-Grünberg, após as suas viagens pelo Alto Rio Negro, Uaupés e Orenoco, admitindo no índio a capacidade do desenho comunicativo e descritivo, mas negando-lhe acerca de tais inscrições o intuito de fazer uma comunicação, pois que, a admiti-lo se pode incorrer facilmente no abuso da generalização.
Não levo tão longe as minhas reservas, diz o ilustre Dr. Theodoro Sampaio, como o ilustre viajante e professor da Universidade de Friburg em Brisgau, pois aceito como mui provante a existência outrora de uma ideia cultural, com manifestações rudes embora, quais essas inscrições abertas em rochas, assentadas em lugares quase inaccessíveis e exigindo árduo esforço e largo emprego de tempo, quais também essas outras tão frequentes nos rochedos das cachoeiras a passos difíceis dos Rios das que tão numerosos descobriu o mesmo ilustre viajante.
Entretanto, pedimos permissão aos eminentes etnólogos, para divergirmos de semelhantes conceitos, firmando-nos em argumentos e provas que ora a propósito externamos neste modesto trabalho.
Nas inscrições lapidares do Vale do Amazonas, prossegue o autor: “descobrem-se indícios certos de como a influência astrolatra ([5]) dominante na região andina e no Centro América, até se faz sentir”. […]
Aí estão os preâmbulos da nossa primitiva civilização desaparecida e envolta em verdadeiro mistério, como finalmente, numa ferrenha incredulidade ou propósito de fazer permanecer tão magno assunto, no olvido criminoso, que repugna ao nosso sentimento de patriota. (RAMOS)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.08.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia:
RAMOS, Bernardo de Azevedo da Silva. Inscrições e Tradições da América Pré-histórica, Vol 1 – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Nacional, 1939.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Paleografia: ato de decifrar escritos antigos. (Hiram Reis)
[2] Gliptográfia ou Gliptologia: descrição ou estudo das antigas gravações nas pedras. (Hiram Reis)
[3] Porfirítico: rocha ígnea com cristais significativamente maiores (fenocristais) do que os da matriz mais fina ou mesmo vítrea. (Hiram Reis)
[4] Sir Everard Ferdinand im Thurn. (Hiram Reis)
[5] Astrolatra: adoração aos astros. (Hiram Reis)
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