Sete mil pescadores enfrentam escassez de peixes desde 2015 e exigem reparação do Ibama e da Norte Energia
Antes habituados à fartura de peixes de um dos maiores rios amazônicos, os pescadores da região do médio Xingu, no Pará, passam por dificuldades para sustentar suas famílias desde as obras da hidrelétrica, quando começaram as explosões no rio e a mortandade de peixes. “Antes eu nunca vi pescador mendigar cesta básica e agora dependemos de cesta básica porque hoje não tem mais peixe para sustentar nossa família. Tomaram o que é nosso, tomaram nosso peixe e tomaram as nossas vidas”, disse o pescador Áureo da Silva Gomes, que mora na área do reservatório da usina, em uma das duas audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF) em Altamira e Vitória do Xingu esta semana para debater a situação.
As audiências colocaram frente a frente cerca de 1,3 mil pescadores, representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) responsáveis pelo licenciamento de Belo Monte e da Norte Energia, concessionária da hidrelétrica e responsável pelos impactos sociais e ambientais. Também participaram da audiência representantes da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE) e da Defensoria Pública da União (DPU) e os pesquisadores André Sawakushi, da Universidade de São Paulo (USP), Eder Mileno, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Jansen Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Eles integram uma rede de pesquisadores de várias universidades brasileiras que assessoram o MPF na análise técnica dos danos provocados pela usina no Xingu.
A procuradora da República Thais Santi, que convocou as audiências, considera que não há mais controvérsias sobre os graves danos causados pelo barramento do Xingu sobre os estoques e a atividade pesqueira na região. O alagamento dos igapós na área do reservatório e o desvio da água na área da Volta Grande do Xingu inviabilizou a desova e a alimentação das espécies de peixes, reduzindo drasticamente os rendimentos dos pescadores. Estima-se que sete mil pessoas estejam enfrentando dificuldades para sustentar suas famílias.
Pobreza, fome e falta de luz – Nas duas audiências, nos dias 16 e 17, não foram poucos os depoimentos de pescadores que disseram estar passando fome, vivendo de doações, sem energia elétrica por falta de dinheiro para pagar as contas. As perdas econômicas se acumulam e são severas em uma região em que alguns anos atrás a pesca garantia uma vida confortável e autonomia a pescadores, ribeirinhos e indígenas. “O que tinha para o peixe comer no rio acabou. Será que vocês iriam ficar num lugar sem comida? Por isso os peixes foram embora. O pescador hoje em dia faz uma pescaria e quando ele vai entregar para o atravessador ele tá devendo o atravessador. Antes a gente tinha três redes para pescar, fazia R$ 2 mil a R$ 3 mil por semana. Hoje com 3 mil metros de malhadeira a gente passa duas semanas no rio e consegue pescar R$ 200 a R$ 300 reais. Fora as qualidades de peixes que não temos mais. Sumiu pacu de seringa, matrinchã, curimatá [espécies apreciadas e de alto valor econômico]”, disse o pescador Cleo Francelino, que vive na área do reservatório.
Os danos sobre a pesca já foram reconhecidos pelo Ibama em parecer técnico dentro do licenciamento da usina, que busca a renovação da licença de operação, vencida desde novembro de 2021. Carolina Reis, do Instituto Socioambiental, leu trechos do parecer durante a audiência pública de Altamira. “Os técnicos do Ibama estão dizendo que está clara a responsabilidade do empreendimento na degradação da pesca e que vocês estão fadados a uma situação de empobrecimento. Já são dois anos e dois meses de atraso nas medidas que não deveriam ter sido interrompidas unilateralmente pela Norte Energia, isso reconhecido pelos técnicos do Ibama. Como representante da sociedade civil eu digo desde já que nós consideramos que esses dois anos e dois meses são insuficientes porque essa reparação é devida pelo menos desde 2015 que foi quando o barramento foi fechado e os impactos sobre a pesca começaram”, disse.
O pescador Raimundo Gomes, conhecido como Raimundo Berrogrosso, passa tantas dificuldades que ficou com a saúde debilitada. “Em primeiro lugar nós precisamos ser vistos por esses órgãos públicos como seres humanos. Eu vivo a minha vida inteira no rio Xingu e hoje não posso mais pescar porque o rio acabou. A Norte Energia acabou com as nossas espécies, acabou com nossas ilhas e praias, acabou com nosso lazer e depois acabou com os pescadores. Nós precisamos sim que as autoridades se levantem do banco e obrigue a Norte Energia a pagar o que nós temos por direito. Pais de família estão no escuro cozinhando com ponta de tábua, porque não consegue pagar a energia nem o gás. Tem gente que está há mais de um ano sem energia”, disse na audiência de Altamira.
Projetos paralisados – Muitos pescadores relataram o desespero diante da inexistência de ações de compensação e mitigação para os impactos que os afetam. “O pescador não tem mais condições de sobreviver. A gente perdeu as nossas piracemas, a gente não tem mais como pescar, hoje o nosso rio está pedindo socorro, o nosso rio precisa de um descanso e a gente precisa que as autoridades olhem para o rio com olhar de carinho. E a gente precisa da nossa indenização para poder dar esse tempo de descanso para o rio. Os pescadores não têm condições de sobreviver e não adianta compensação, não adianta dar uma malhadeira. Seria para pescar o que, se não tem mais peixe?”, questionou Rita Cavalcante.
“Como vocês constroem uma barragem dentro de um rio, indenizam carroceiros, indenizam oleiros, indenizam fazendeiros e não indenizam pescadores? Vocês sabem o que acontece no Xingu, vocês sabem que nós não temos mais condição de viver da pesca. E nós precisamos ser indenizados”, disse a pescadora Maria Francineide. “A maioria aqui está doente. Problema de depressão, coceira, rins. Esse é o legado de Belo Monte. Usaram o nosso nome, o nome da nossa comunidade para batizar esse monstro que nos destrói. Eu me criei no Belo Monte. Vinha gente de toda parte para comer o peixe frito aqui no Belo Monte. Isso acabou. Porque acabou o peixe. Pobreza, miséria, rio infértil, doença, esse é o legado da Norte Energia no Xingu. A gente tinha dignidade, a gente pescava, a gente comprava nosso alimento, a gente vivia bem. Hoje em dia acabou tudo. A gente hoje pede uma vida melhor porque era o que a gente tinha e vocês tiraram”, cobrou Sara Rodrigues, pescadora da Volta Grande do Xingu, de onde foi desviada 80% da água para movimentar as turbinas da usina.
Impactos extraordinários – Para os pesquisadores que assessoram o MPF o que ocorre no Xingu após o barramento de Belo Monte é uma situação única no país, com um rio de grande porte sendo desviado de seu curso natural para a produção de energia – a chamada usina a fio dágua – que produz um impacto duplo, com alagamento de um lado e seca extrema de outro. Esse modelo destruiu o pulso de inundação, que assegurava a reprodução das espécies e a manutenção das florestas e das comunidades.
“O que foi feito no Xingu nunca foi feito em nenhum outro rio do Brasil, que foi transferir um rio para outro lugar. E os impactos sobre a Volta Grande não tem par em nenhum outro processo de licenciamento em curso ou anterior no Brasil. Como não existem exemplos e parâmetros o caso exige um tratamento extraordinário. Eu entendo que não existem piracemas há vários anos na Volta Grande e isso necessariamente demanda indenização. Mas salvar a pesca na região exigirá uma partilha menos desequilibrada da água, entre a produção de energia e a sobrevivência da natureza”, concluiu o professor André Sawakushi, geólogo da USP que é especialista em grandes rios amazônicos.
“Claro que todas as barragens terão impactos sobre a pesca mas o que se vê aqui são impactos muito maiores do que o esperado. Nunca foi feito um cálculo social e ecológico de quanta água poderia ser desviada para Belo Monte e quanto teria que ser desviada para a Volta Grande do Xingu. Esse cálculo nunca foi mostrado porque ele nunca foi feito. Se tem uma solução para peixes, quelônios e pessoas é água na Volta Grande. Se tiver água chegando na época certa e em quantidade suficiente para alagar as áreas de igapó, a gente pode garantir as piracemas e a alimentação dos peixes. Se não houver, vamos ter cada vez menos peixes no Xingu”, disse Jansen Zuanon, do Inpa.
“Queria saber qual a medida de mitigação para um povo que se diz dono do rio, que somos nós o Juruna. Como se tira a água do rio de um povo do rio? Essa é a pergunta que eu deixo para vocês e qual a medida que se dá a esse impacto relacionado a nossa vida. Esse espaço aqui é para discutir a reparação pelas perdas da pesca. Nós estamos sem água, isso é fato, e não somos só nós que pedimos socorro mas também os peixes, porque os peixes precisam se alimentar, os peixes precisam reproduzir e não tem água. Acima do barramento tem muita água, abaixo do barramento não tem água. Quero que vocês busquem a pessoa que de tão longe calculou a quantidade de água que deveria ser liberada para nós, sem sequer essa pessoa ter pisado na Volta Grande. Busque essa pessoa para vir ver o impacto que causou a gente, a gente humano e também de todos os seres que vivem ali”, disse Bel Juruna, representante do povo Yudjá.
Respostas – O representante da Diretoria de Licenciamento do Ibama, Jônatas Andrade, explicou que os técnicos estão debruçados no momento nos dados enviados pela Norte Energia para dimensionar os impactos e os possíveis ajustes a serem feitos no licenciamento. “A equipe técnica tem analisado os relatórios que são apresentados pela empresa e a partir dessas análises a gente adota alguma solução ou ação. E os ajustes dentro do licenciamento ocorrem naturalmente, ainda mais em um processo complexo como esse. Sobre a reparação, teremos uma resposta sobre isso também. O que é importante é entender os problemas e resolver as questões de forma bastante prática, de maneira que seja efetiva também. Não adianta indenizar sem ter um planejamento futuro. O que eu posso falar para vocês é que o Ibama está trabalhando na análise de tudo que tem sido apontado e essa audiência aqui é importante para a percepção técnica de tudo que está sendo sentido por vocês”, disse.
A representante da Norte Energia, Luciana Soares, culpou a pandemia de covid-19 pela interrupção dos projetos de compensação e mitigação para os pescadores e disse que a empresa vai procurar ajustar esses projetos a partir dos depoimentos das audiências públicas. Para a procuradora da República Thais Santi, o direito de reparação precisa ser reconhecido dentro do processo de licenciamento e se não for, o MPF terá que intervir.
“A Norte Energia tem um prazo para dar resposta ao parecer do Ibama e estamos aguardando essa resposta, mas da parte do MPF estamos mais do que convencidos da obrigação e da urgência da indenização pelo prejuízo cotidiano que vocês vêm tendo na atividade de vocês. A reparação pela perda da pesca não é uma reparação pelo modo de vida, pela perda do rio. É uma reparação pela perda do peixe apenas. O que custa a perda de um modo de vida é algo que não é só você que sofre, é você, seu filho, o filho de seu filho que perdem o direito de ser o que vocês tinham o direito de ser. Vocês que são pescadores profissionais, artesanais, vocês têm o direito de ser pescadores”, disse Thais Santi ao encerrar as audiências.
Fotos das duas etapas da audiência pública (créditos: Bob Morales/MPF)
Ministério Público Federal no Pará – MPF
Assessoria de Comunicação
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