Descendo o Rio Branco
Theodor Koch-Grünberg (1911)
Parte V
O interlóquio prossegue monotonamente, sem que um interrompa o outro, ou fale ao mesmo tempo, primeiro, um conta sua história até o fim enquanto o outro somente entremeia apenas com exclamações educadas. […] A conversa fica, então, cada mais animada. Pitá fala a meu respeito, de minha viagem, minhas intenções. Divertem-se às minhas custas, pois todos estão olhando para mim e riem de maneira discreta. Os nativos tem um senso de humor muito acentuado bem como uma propensão para a zombaria. O homem branco, que passa algum tempo entre eles, recebe logo de imediato, um apelido: de acordo com suas características físicas que se destacam ou hábitos estranhos.
Esses apelidos ([1]) são mais usados do que o próprio nome das pessoas, na maioria das vezes, para designar as pessoas, ao passo que o verdadeiro nome, dado a cada criança pelo pai ou pelo avô poucos dias após o nascimento, só é empregado raras vezes e mencionado ao europeu somente com muita relutância. Assim, alguém, por sua pequena estatura e velocidade, recebe o nome do pequeno e ligeiro roedor Akúli ([2]).
Um outro é chamado de “Malcriado” porque chorava muito quando pequeno, especialmente à noite. Um homem mais velho tem o estranho nome de “Sem Nome”. Uma mulher se chama “As Meninas”. Tenho de mostrar todo meu acervo fotográfico a cada novo visitante. Pitá fica observando, durante horas, com alguns anciãos Taulipáng, os “tipos indígenas” do Uaupés e faz comentários desairosos a respeito, especialmente sobre as fotos das mulheres. Os anciãos nativos não são diferentes dos nossos.
Às 17h00, vou para o banho noturno. Todos estão sentados à sombra de suas casas, conversando, trabalhando ou brincando com os animais. A vovó está catando algodão e as mulheres põem seus fusos para funcionar, caçadores e pescadores passam, orgulhosos, com suas presas pela Praça da Aldeia, seguidos pelos cães magros. Quando volto do banho, meus amigos Taulipáng, acenam de longe e me convidam para o lanche da tarde. Sua comprida e baixa cabana fica na saída Norte da Aldeia, a caminho de sua terra. Petto dela ergue-se uma grande pedra redonda, sobre a qual sempre há um bando de crianças brincando, e alguns jovens entalhando flechas ou dedicando-se a outros afazeres. Lá sou sempre um convidado bem-vindo. Seu prato apimentado é preparado de um modo especialmente saboroso e temperado com ingredientes picantes. As mulheres assam para mim beijus leves e crocantes do mais fino amido. Nunca falta o caxirí, o payuá escuro e forte ou o parákali vermelho e leve.
Eles sabem preparar nove tipos destas bebidas. Como é costume aqui, troquei de nome com seu pequeno chefe, que tem fumado muito do meu tabaco, seu nome agora é “Theodoro”, e eu passo a ser chamado de “Yualí”. Por onde eu passe as pessoas me chamam pelo meu novo nome e sentem um prazer infantil em fazer isso. “Theodoro” não se cansa de me ensinar todas as palavras e frases possíveis em Taulipáng, ou melhor, de gritá-las no meu ouvido, e não descansa enquanto eu não as pronuncio corretamente.
Todos ficam muito felizes quando as emprego corretamente e na ocasião apropriada e só então as reproduzo nos meus cadernos de anotações.
Eventualmente, “Theodoro” me diz coisas picantes, e quando eu as repito ao pé da letra, retumba uma sonora gargalhada por parte de todos. Há poucos anos, a varíola surgiu por aqui e se alastrou até o mais longínquo interior. Muitas pessoas trazem na pele as marcas dessa terrível doença e o corpo de “Theodoro” está todo coberto de cicatrizes.
Alguns, inclusive crianças, são cegos de um olho, “um verme perfurou o olho”, diz Pirokaí. Meus melhores amigos são as crianças, algumas vezes tenho 30 desses pequenos parceiros em minha cabana, observando com interesse o que faço e fazendo seus comentários a respeito, sussurrando baixinho. Não me incomodam. […] Deixo que vejam através da lente de aumento e, depois, com esse instrumento mágico, trago o Sol ardente aqui para baixo. Mostro-lhes um grande livro com ilustrações de animais e explico aos futuros caçadores os animais de um outro mundo, o imponente elefante, o camelo com sua estranha corcova e a girafa que graças ao seu longo pescoço, consegue alcançar as folhas das árvores mais altas.
Sento-me de novo para escrever e observo furtivamente um menino mais velho explicar, tudo que eu explanara, apresentando as ilustrações exatamente na mesma ordem aos mais jovens.
Ele tinha prestado muita atenção à minha exposição. Um grupo se separou dos demais e brinca entusiasmado com um grande pião.
O Sol se deitando, me levanto e jogo a toalha de banho sobre o braço, a reunião acabou. Eles correm até mim e me estendem as mãozinhas, despedindo-se: “Ataponténg moyi!”, dizem os meninos, os futuros guerreiros. “Ataponténg pipi”, dizem as meninas. “Vou dormir, irmão!” Quando conseguem vencer a timidez inicial ante os estranhos, essas crianças são as criaturinhas mais confiantes e alegres que se possa imaginar. Aceitam cada brincadeira minha com alegria, e jamais se comportam mal. São complacentes e educadas comigo e vivem em grande harmonia entre si. Se dou um pedaço de chocolate a um deles, imediatamente ele o divide com os demais. Nunca vi dois deles brigando ou se soqueando.
Não há dúvida de que os pais são responsáveis pelo bom exemplo e, nesse aspecto, são melhores mestres do que nós europeus. É extremamente raro os filhos de índios serem repreendidos com palavras ásperas ou mesmo castigadas fisicamente pelos pais e, no entanto, essas crianças nuas e morenas são, até para os padrões europeus, “bem-educadas” – desde que tenham tido pouco ou nenhum contato com a nossa chamada civilização. Quando passam a sofrer constante influência dos brancos ou mesmo a trabalhar para eles, independente da classe a que estes pertençam, essas crianças inocentes, felizes e muito sensíveis, tornam-se carrancudas, fechadas ou rabugentas e atrevidas, o encanto natural se esvai.
As crianças são minhas amigas. Mostram-me, orgulhosas, seus mais simples brinquedos, que elas, seus pais ou irmãos mais velhos fabricaram. Mostram-me seus inúmeros “jogos de fios” ([3]), entrelaçando engenhosamente entre os dedos das mãos, produzindo diferentes figuras, a que dão os nomes mais estranhos. É verdade que faz parte da fantasia indígena encontrar nisso semelhança com animais, plantas, partes do corpo etc. Jogo com eles a peteca leve fabricada com palhas de milho. Muitas vezes, observo os meninos praticando tiro ao alvo com arco e flecha ou com a zarabatana pequena ou, então, atirando num alvo móvel, nas andorinhas que voam para lá e para cá na Praça da Aldeia.
Também participo das competições de arco e flecha, e eles riem de mim, satisfeitos, quando se saem melhor do que eu. Faço os meninos apostarem corrida, adoram isso. Um Taulipáng muito bonito, de cabelo comprido e esvoaçante e olhos grandes e muito vivos, foi o vencedor e recebe o primeiro prêmio, um lindo lenço de cabeça vermelho. […]
O Majonggóng ligou-se muito a mim. Ele mora com sua encantadora e jovem mulher, Hermina, a uma hora daqui, às margens do Surumu, na casa de sua sogra muito feia mas bondosa, uma Sapará, uma das raras sobreviventes dessa etnia. De vez em quando, Manduca passa alguns dias aqui na Aldeia.
Dorme, então, no quarto de trás de minha cabana, quando não está envolvido na cura um paciente, o que ocorre quase todas as noites, pois é conhecido por ser um xamã muito eficaz. O Majonggóng é mais importante de que todos os xamãs daqui, diz Pirokaí. O próprio Manduca se gaba de seu poder curativo. Seu pai, seu irmão e cunhado também são xamãs.
Ele é um indivíduo muito esperto e não perde a pose nem mesmo quando não consegue curar um doente. Um ancião Taulipáng está com a barriga muito inchada e dura e, ocasionalmente, sente fortes dores. Manduca diagnosticou um animal com uma galhada, como um veado, perambulando lá dentro. Se o tirar, o velho morrerá, portanto ‒ ele não vai tirá-lo.
Ele costuma me convidar para suas invocações noturnas, mas, é claro, que só posso ficar do lado de fora da cabana enquanto o processo de cura ocorre na cabana escura e bem fechada. Fico agachado colado na parede externa, ouço primeiro, sua voz natural numa espécie de longa prece acompanhada do som cadenciado do chocalho. […]
O som tem um feito hipnótico que faz parte do tratamento, que dura, normalmente, das 20h00 às 22h00, e, durante todo o processo de cura, a mulher de Manduca fica sentada ao lado dele e garante que seu charuto não se apague; volta e meia, ele assopra a fumaça do charuto nas partes doridas, anestesiando o doente. O chocalho mágico, é feito de uma pequena e oca cabaça, espetada num bastão, com pequenos seixos ou sementes duras dentro para chocalhar e desempenha um papel fundamental nessas curas. Manduca o guarda com outros utensílios mágicos num cesto com tampa muito bem amarrado, na casa de sua sogra. […]
Entre os Macuxí e Taulipáng há muitos kanaimé, afirma Manduca, entre os Majonggóng, é claro, não existe nenhum. O conceito de kanaimé desempenha um papel muito importante na vida desses nativos. Designa, de certo modo, o princípio do mal, tudo que é sobrenatural e prejudica o homem e do que ele não consegue se proteger.
O vingador da morte, que assombra o inimigo por anos até matá-lo traiçoeiramente, esse “faz kanaimé”.
Quase toda morte é atribuída ao kanaimé. Tribos inteiras têm a má fama de ser kanaimé. Kanaimé, porém, é sempre o inimigo oculto, algo inexplicável, algo sinistro. “Kanaimé não é um homem”, diz o índio. Ele anda por ai à noite e mata gente, não raro com um tacape curto e pesado, como a que se leva ao ombro durante a dança, e parte “em dois todos os ossos” da pessoa que encontra, só que ela não morre imediatamente, mas só depois de chegar em casa, à noite, fica com febre e, depois de quatro ou cinco dias, morre. […]
Diz-se que os Ingarikó moram a apenas dois dias de viagem do Roraima, na mata fechada: têm cabelo comprido, como as mulheres, o rosto bastante tatuado e corials de casca de árvore. Que os Taulipáng do Roraima já se misturaram muito com os Seregóng. O chefe também não gosta dos Wapischána do Amajarí.
Dois cometas ([4]) no ano passado impressionaram muito os índios, eles falam a respeito, misturando verdade e ficção. De repente, no Leste e no Oeste, surgiram duas estrelas com caudas gigantescas, do tamanho da metade do céu, e, no fim, quase se tocaram.
Então, sob um estrondo semelhante ao do trovão, houve um terremoto, e as estrelas desapareceram de repente. Todos ficaram com muito medo de que “as estrelas incendiassem toda a terra com suas caudas”. […]
Agora, perto do fim da época das chuvas, há muitos doentes na Aldeia. As pessoas sofrem de catarro e febre. Como já constatei muitas vezes em minhas viagens, aqui também se confirma o fato de que as pessoas vestidas estão mais expostas ao resfriado do que as nuas. Já não são mais tão resistentes. A roupa, quase sempre não muito limpa, impede uma transpiração saudável do corpo, aquecendo-o lentamente quando está encharcada pela chuva. Os xamãs têm muito o que fazer. Quase toda noite ouvem-se seus cantos horripilantes vindos das cabanas. Costumo acompanhar Pirokaí e fico ouvindo a cura do lado de fora. […]
É uma música noturna bastante peculiar que mexe extraordinariamente com os nervos, o canto monótono e rouco do xamã entremeado com o ribombar do trovão. Uma tempestade está se armando além das serras. Durante uma tempestade forte, todas as fogueiras são cobertas com folhas, já que “o trovão não ama o fogo”. As curas mágicas também são sempre iniciadas após a chuva ou tempestade. A fantasmagórica onça é perigosa para todas as pessoas, dizem os índios: com os xamãs, porém, são dóceis como um cão. Tenho me aborrecido muito com as chapas fotográficas que uma grande e afamada empresa berlinense me forneceu. As chapas isolantes não são, nem de longe, tão resistentes quanto afirmavam ser, embora eu tome todo o cuidado possível, só revelando fotos à noite e molhando-as nas águas frescas do Riacho da montanha, apesar disso em algumas delas a camada se solta em grandes pedaços. Perde-se, assim, um bom número de fotos, que têm de ser tiradas novamente. […] Muito maior é a alegria que as gravações fonográficas me dão. Trouxe alguns rolos de música gravada e os toco para as pessoas, para acostumá-las com o fato de o aparelho reproduzir a voz humana. […]
Também nesse trabalho o chefe Pitá me presta valioso auxílio. Ele próprio canta no funil, com acompanhamento fraco de Pirokaí, as canções de dança dos Macuxí, parischerä, tuküi, muruá, oare-bä, que só se dança de dia, outra, só dançada no fim da tarde, e mauarí, que só se dança à noite. Duas meninas, com suas belas, claras e harmoniosas vozes, cantam canções insinuantes que acompanham o ralar da mandioca. As letras são muito simples. Consistem em frases curtas que se repetem continuadamente. As melodias são muito simples também, em que os mesmos temas sempre se repetem.
Uma dessas canções, que se ouve com mais frequência, é assim:
Estou fazendo beiju pra você, ralando mandioca, maninho.
Estou fazendo beiju pra você, ralando mandioca, maninho.
Vai caçar o veado capoeira, maninho!
Vai caçar o veado galheiro!
Vai acertar a tartaruga, maninho!
Vai caçar o veado galheiro etc. […]
Então Katúra me fornece algumas informações a respeito da arte dos xamãs: quando um Taulipáng quer se tornar xamã, ele bebe por cinco noites seguidas uma infusão da casca de determinadas árvores, cada noite traga uma mistura diferente, e, após cada uma dessas beberagens, ele vomita. Depois ele bebe um caldo de tabaco e durante todo esse tempo ele não come nada e emagrece muito.
Por fim, vai colher determinadas folhas, faz um feixe com elas, como aquele que o xamã usa mais tarde no ritual de cura, “vai com ele para o alto”, retorna, está então habilitado para curar todas as doenças.
No ritual de cura o xamã bebe suco de tabaco, a seguir sua sombra, sua alma, aparta-se do corpo e vai para o alto, o corpo permanece no mesmo lugar, no topo das montanhas a alma encontra outras almas de xamãs e elas lhes descrevem qual mal aflige o homem doente. Quando o suco de tabaco “secou” no corpo, a alma do xamã retorna ao corpo, trazendo consigo as outras almas e com elas realiza a cura. Se a alma do xamã não sair, o doente morre. Por isso, o xamã precisa tomar suco de tabaco durante o ritual de cura, para desprender a alma do corpo. Ele chama, então, repetidamente, novas almas de xamãs. […]
Em 23 de julho chega a cavalo um jovem colono que tem sua propriedade abaixo de Capela, um mulato escuro. Os índios o chamam de mekorö [negro]. Ele veio contratar alguns jovens daqui, apresenta-me duas cartas, numa delas, um certo Tenente Pinto Peixoto, ex-Comandante de fronteira, agora criador de gado, me pede para fotografar sua casa no Tacutu. A outra carta é de Ildefonso, Deus sabe quem a terá escrito, pois o nobre chefe não conhece essa misteriosa arte. A carta foi escrita num tom muito insolente e é endereçada ao senhor retratista.
Sou considerado um fotógrafo itinerante. Na carta, Ildefonso, se autodenomina orgulhosamente, Capitão Geral dos índios do Rio Surumu e me diz, sem rodeios, que não posso visitar as tribos indígenas nas serras sem sua devida autorização, já que estas lhe pertencem, e que para isso terei de ir visitá-lo, em sua casa na Foz do Surumu.É claro que não lhe farei esse favor e, por intermédio do brasileiro, a quem esclareço de maneira enfática sobre a minha pessoa, e mandei dizer a esse indivíduo arrogante que, para mim, não existe nenhum Capitão Geral: que faço as minhas viagens como quero e que se ele deseja alguma coisa, que venha até mim.
Também dou ao mekorö uma longa carta endereçada a Neves, à qual anexo o bilhete de Ildefonso. Ele irá dizer-lhe o que pensa. Infelizmente, Ildefonso foi nomeado Capitão Geral pelo Governo do Estado do Amazonas, em Manaus, e recebeu uma patente. Na verdade, porém, ele não tem exerce liderança alguma, já que ninguém lhe obedece. Além disso, aqui é Território Federal e não diz respeito ao Amazonas. O brasileiro disse que os soldados da polícia queimaram a casa de José Gouvêa, em Capela, e estão agora, em número de 8 homens, em seu encalço no Urariquera.
Se não conseguirem prendê-lo com vida, devem levar suas orelhas. A mulher de Gouvêa e seu protetor, Terêncio, estão presos. Que situação! Na manhã seguinte, o brasileiro negocia longamente com Pitá, que se encheu de coragem com a minha presença e grita para o outro que não pretende lhe dar ninguém:
‒ Ildefonso que venha aqui pessoalmente e pergunte aos homens.
Logo depois, o mekorö foi embora sem ter conseguido nada. A deplorável política no Rio Branco lança suas sombras sobre nosso pacífico paraíso. Notícias contraditórias sucedem-se rapidamente, como sempre acontece em tempos tumultuados. Os rumores mais estranhos correm de boca em boca. Deturpações, exageros. Invencionices ‒ já não se sabe mais o que é verdade. […]
No dia seguinte, depois de uma noite emocionante, um Taulipáng, que estava com os parentes no Amajarí, trouxe a feliz notícia de que os soldados trocaram tiros com Gouvêa e seus amigos em Pedra Grande, no Urariquera, logo à jusante da ilha Maracá e que, depois de um dos perseguidores levar um tiro no braço, todos fugiram Rio abaixo.
Nem sempre os índios das serras toleram os abusos dos brancos. A prova disso é um incidente ocorrido há alguns anos na extremidade Oriental da Serra do Banco. Um jovem brasileiro chamado Pires, conhecido por maltratar seus empregados, foi a uma cabana de índios e tomou algumas liberdades com suas mulheres. Os Macuxí o espreitaram, cercaram-no – ele estava a cavalo – e flecharam-no na barriga. […]
Colocaram uma grande quantidade de pedras sobre o seu cadáver. Os responsáveis eram alguns de meus atuais amigos. O cabeça do grupo era um “cristão” chamado William. Uma Expedição punitiva contra os “revoltosos”, enviada do posto fronteiriço São Joaquim, no Baixo Tacutu, não cumpriu seu intento, já que os índios fugiram para a Serra. Os soldados só prenderam um velho, mas soltaram-no depois. […] Novamente partem 2 barcos, desta vez para São Marcos, levando cartas e devem trazer outras, que certamente chegaram lá para mim […].
Emprestam roupas velhas do chefe, que vestirão pouco antes de chegar a São Marcos, para que as pessoas não riam de sua nudez. Estamos vivendo o clima de uma grande festa que Pitá quer dar em honra de sua visita importante. Infelizmente, o chefe está com malária, e fica deitado num escuro canto de sua cabana baixa e úmida, gemendo na rede. Excepcionalmente, não consulta nenhum xamã, talvez com vergonha de mim, coisa desnecessária, pois concordo com o grande Rei da Prússia ([5]); para quem “cada um pode fazer o que quiser”. Curo, no entanto, meu amigo em poucos dias com quinino, seguindo o método de Plehn. Na falta de hóstia, envolvo os comprimidos amargos em papel de cigarro, e Pitá os engole corajosamente. […]
Todos estão preparando a festa. As mulheres fazem enormes pilhas de beiju para caxirí forte. Os homens arrumam seus adornos de dança. O chefe e eu fazemos força, para carregar dois bancos europeus que alguém fez para a cabana dos missionários. São do tipo mais primitivo possível, duas tábuas compridas sobre quatro estacas, e tão instáveis que desmontavam à todo instante, provocando muita gritaria. Um dos bancos que finalmente conseguimos colocar de pé será um lugar de honra para mim e para o chefe na festa.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.07.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia:
GRÜNBERG, Theodor Koch. De Roraima ao Orinoco. Volume II – Mitos e Lendas dos Índios Taulipáng e Arekuná – Alemanha – Berlim – D. Reimer (E. Vohsen), 1915.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Cabe-nos aqui fazer uma referência especial a essa multiplicidade de nomes, bastante comum a todas as etnias. O nome de batismo vai sendo alterado de acordo com as características físicas, qualidades e desafios enfrentados pelo jovem guerreiro ao longo de sua vida, vejamos o que nos reportam Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius na obra “Viagem pelo Brasil (1817 – 1820)” – (Hiram Reis):
Pouco depois de nascer, recebe o bebê um nome, tirado de planta ou animal; esse nome, porém, muda-o ele diversas vezes em sua vida, logo que realiza alguma façanha heroica, na guerra ou na caça. Acontece tomar assim a mesma pessoa cinco ou seis nomes, um após outro. (SPIX & MARTIUS)
[2] Cutia: Dasyprocta aguti. (Hiram Reis)
[3] Jogos de fios: jogo da cama de gato. (Hiram Reis)
[4] Na madrugada do dia 18 para 19 de maio de 1910, o cometa Halley visitou, mais uma vez, a Terra. (Hiram Reis)
[5] Frederico II, o Grande (1712-1786). (Hiram Reis)
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