Descendo o Rio Branco
Robert Hermann Schomburgk (1837/1838)
Parte IV
Jornada de Esmeralda, no Orenoco, para São Carlos e Moura no Rio Negro, e daí pelo Forte São Joaquim para Demerara, na primavera em 1839. De Robert Hermann Schomburgk.
25 de fevereiro de 1839 ‒ Após uma estada de 3 dias em Esmeralda, durante a qual carregamos nossa corial, e nos preparamos para nossa longa viagem, deixamos na tarde de 25 e continuamos a descida do Orenoco rumo W.N.W. por 21 km, durante os quais recebe os pequenos Riachos Mantari, Sodomoni e Tamatama do N., e o Cuca do S., chegamos à notável bifurcação deste Rio, tão bem e tão amplamente descrito pelo Barão Humboldt, que pouco nos resta acrescer. A partir deste ponto, o ramo principal segue seu curso a N. 74° W., serpenteando em torno do sopé da Serra Parima e, eventualmente, após um curso semicircular de cerca de 1,287 km, desemboca no Oceano Atlântico. O menor ramo, chamado de Cassiquiare, ou Cassisiare, pelo Guianenses e Maiongkongs, faz um ângulo reto para o S. W., e mantém este curso por cerca de 193 km de distância diretamente para o Rio Negro, perto de São Carlos. Ligando, portanto, as duas grandes Bacias do Orenoco e do Amazonas. […]
04 de março de 1839 ‒ […] Apesar de todas as minhas pesquisas, pude obter pouca informação além da que me foi repassada por Mr. Humboldt do curso superior da Guiana. […] Esses índios se retiraram, diz-se, mais para o Leste, e ainda são hostis a qualquer estranho que entre no seu território. […]
07 de março de 1839 ‒ De manhã cedo passamos pela Pedra de Cucuí, subindo cerca de 259 m ([1]), a 1,6 km da margem do Rio. É nua e íngreme para o S., mas tem algumas árvores nos lados E. e W., e é de uma aparência notavelmente pitoresca. Outra colina de menor altura situa-se a cerca de 1,6 km a N.E. de Cucuí. Ali estava a morada, em meados do século passado, do cacique Manitivitano Cucuí ([2]), notório por sua crueldade e devassidão. Cucuí era inimigo implacável dos jesuítas e devastou suas missões. Mr. Humboldt, quando em São Carlos, em 1800, conheceu o filho de Cucuí. O Dr. Johann Natterer, de Viena, que subiu o Rio Negro até sua junção com o Cassiquiare, subiu até o cume da Pedra de Cucuí. De tarde observamos a cadeia de montanhas Pirabuku […]. Como havia ameaça de tempestade, nos esforçamos para chegar logo em Marabitanas e lá aportamos às 14h00, a tempo de escapar da chuva. San José de Marabitanas, o Forte fronteiriço do Brasil, situa-se na margem Ocidental do Rio, e consiste de um aterro de barro de paliçada, montando oito canhões; dois dos quais eram ingleses. Visto do Rio, o pequeno Forte, a igreja e uma fileira de casas que se estendem ao longo das margens têm uma aspecto alegre. Está sob a responsabilidade de um Sargento e seis homens, e toda a Aldeia contém cerca de 150 pessoas. […] A situação um pouco elevada do Forte proporciona uma ampla visão. As montanhas Pirabuku […] a uma distância de cerca de 48 km, elevando-se provavelmente, 457 m acima da planície […] isoladas, como Cucuí, pareciam formar um elo de comunicação entre as montanhas de onde brotam as nascentes dos afluentes do Norte do Rio Negro e as montanhas da Serra Tunuhi, perto das nascentes do Xié e do Içana, até a margem esquerda do Rio Uaupés. […]
11 a 12 de março de 1839 ‒ […] O Comandante estava com muito medo de um ataque dos índios, para vingar as barbaridades cometidas pela Expedição Escravista, já aludida, e tinha realizado preparativos para a defesa. São Gabriel, assim como todos os outros lugares da magnífica Província do Rio Negro, sofreu com a influência devastadora dos distúrbios políticos. Antigamente existiam Aldeias prósperas, onde agora só seu nome pode ser encontrado, numerosos barcos viabilizavam o comércio entre o Grão Pará e o Alto Rio Negro, uma navegação interior de mais de 2.250 km, praticamente sem empecilhos; agora dificilmente um navio pode ser visto. A maior correnteza deste Rio ocorre logo abaixo do Forte; e nós aqui descarregamos nossa corial e transportamos a bagagem por 1,6 km sobre o Cerro Arruyabai até o Porto inferior [Embarcadero]. […] Em nosso caminho, observei em uma borda de granito algumas gravações indígenas, de maior interesse, pois foi o primeiro que encontramos no Rio Negro. As figuras estavam na forma de um labirinto, e foi notável pela profundidade em que foi cortada na rocha; e embora a trilha passe sobre essas pedras, e milhares possam ter andado sobre ela, a figura não está de todo erodida. Uma tentativa de imitar os petróglifos em um período posterior, e provavelmente com um martelo e cinzel, está quase apagada, mostrando veementemente a habilidade peculiar dos operários originais, quem quer que eles fossem. […]
24 de março de 1839 ‒ Chegamos a Barcelos, agora chamada Mariuá, bem cedo. […] Algumas escunas e saveiros, que estavam ancorados antes da cidade, deram uma animação à paisagem que é muito carente nestes vastos Rios. No início deste século, Barcelos tinha de 10.000 a 12.000 habitantes e era a capital da Capitania do Rio Negro, mas, desde que a sede do Governo foi removida para Manaus ou Barra, sua decadência foi rápida. Atualmente, pouco mais de 20 casas são habitadas; porque a maior parte dos proprietários vive em seus sítios ou propriedades dedicando-se à agricultura. Após 6 meses, os senhores Vieth e Le Breton, que haviam se empenhado em coletar materiais e espécimes para a geologia e botânica, incorporaram-se, novamente, à Expedição. As dificuldades e atrasos que experimentaram com a burocracia estatal eram uma prova de que se eu não tivesse trazido a tripulação do meu próprio barco, de Warraus e índios espanhóis das tribos Guinau e Maiongkong, poderíamos ter levado doze meses até chegarmos a Barcelos, em vez dos apenas 21 dias que levamos desde Esmeralda até aqui, percorrendo uma distância aproximada de 925 km […] Foi motivo de muita satisfação para mim visitar as principais famílias do lugar, e especialmente os Senhores Rodolfo, Pini e Couto, para agradecer-lhes pela gentileza e atenção que demonstraram durante nossa estada neste local. […]
30 de março de 1839 ‒ As gravuras indígenas que tornam essa pequena Ilha notável, estão no seu lado S. e esculpidas em blocos de granito duro, e embora o tempo as tenha erodido um pouco, elas ainda conservam linhas profundas. Elas são numerosas e consistem em desenhos de homens, pássaros e animais. Em um grande pedregulho treze imagens, representando figuras humanas, estão dispostas em linha como se dançassem. As gravações mais notáveis, no entanto, são as representações de dois barcos a vela; o menor é um navio de dois mastros e o maior semelhante a um galeão. Permanece, portanto, pouca dúvida de que essas imagens foram feitas em um período posterior, e após a descoberta do Amazonas, quando os navios dos Conquistadores já navegavam na corrente mais poderosa do mundo. Não é improvável que o grupo de figuras se relacione a um evento de grande repercussão; talvez a primeira chegada dos europeus ao Amazonas. Os índios dos dias atuais nas proximidades de Pedreiro ([3]) admitem a antiguidade destas figuras, e dizem que foram gravadas mediante fricção constante com seixos de quartzo. Até pode ter sido, mas nosso julgamento se mostrou infrutífero; como também nossas tentativas de produzir fogo a partir de dois bastões, embora isso seja feito com facilidade pelos índios. Com grande persistência eles podem realmente ter conseguido isso. Essas gravações, deve-se notar, não são tão profundas como as do Corentyne, ou de Waraputa no Essequibo. Pedreiro, o antigo Moura, e Itarendaua, ou “o lugar das rochas” dos nativos, e pelo qual este último nome é agora chamado em todos os documentos oficiais, fica a cerca de 16 km da Ilha de Pedra, e no banco S. do Rio. Foi com enorme satisfação que prestei ao Capitão Bemfico e ao senhor Brandão meus agradecimentos pela gentil atenção que demonstraram ao Sr. Vieth e ao Sr. Le Breton. Fomos recebidos com muita hospitalidade e permanecemos 3 dias em Pedreiro, que, por ser período de Páscoa, estava bastante animada. Como uma nova igreja estava sendo construída, a missa foi realizada na casa ao lado de nossa residência, que serviu, logo depois, como um salão de baile. A maior curiosidade em Pedreiro é um albino, um índio Wainampu. Ele é um homem de cerca de 40 anos de idade, e me disseram que seus dois filhos são igualmente albinos. Cerca de 10 anos atrás, Moura ou Pedreiro era um lugar florescente, com cerca de 100 casas e 1.000 habitantes; o número atual de habitantes não chega a mais de 200. Em nossa viagem de volta, o Rio tinha subido bastante, e tivemos que enfrentar uma corrente forte. Passamos, novamente, pela Ilha de Pedra, mas não alcançamos a entrada do Rio Branco até tarde da noite, nem nosso lugar de parada, até meia noite.
03 de abril de 1839 ‒ […] Encontramos alguns dos índios que haviam sido levados na caçada aos escravos, ou “descimento”, como é chamado aqui. O governo ordenou que os homens, mulheres e crianças capturados naquela ocasião fossem soltos e enviados para suas casas. Assim que os de Santa Maria souberam que eu estava por chegar, declararam que esperariam por mim. Eles consistiam de dois homens velhos, cinco mulheres e duas crianças, que foram deixados por si mesmos e quase morrendo de fome. Nossas corials estavam sobrecarregadas; no entanto, arranjei um espaço para três deles e comprei uma pequena embarcação para o restante em que seguiriam no dia seguinte. […]
20 a 30 de abril de 1839 ‒ O vento Norte soprava com rajadas tão pesadas que pouco progredimos; mas, na tarde do dia 22, novamente chegamos ao Forte São Joaquim. Passaram-se sete meses e dois dias desde a nossa partida do Forte, período durante o qual percorremos cerca de 3.540 km, desde as nascentes dos afluentes do Norte do Tacutu, as águas do Mazaruni, as fontes do Rio Caroni, os afluentes do Norte do Rio Parima, as nascentes do Parawa, do Parima, do Merewari, do Orenoco, do Cassiquiare e dos afluentes do Norte do Rio Negro até a confluência do Rio Branco, Rio que subimos por 482 km, em vinte dias, e finalmente chegamos ao nosso ponto de partida no Forte São Joaquim. Fomos recebidos pelo Comandante e nossos antigos aposentos foram-nos, novamente, disponibilizados, mas eu estava ansioso demais para seguir para o Pirara, e, na tarde do dia 27, parti em uma corial muito leve, e subindo o Tacutu com grande dificuldade, em decorrência da seca – o mesmo Rio, que no mês de julho anterior, havíamos encontrado 631 m de largura, e 3,3 m de profundidade, tinha diminuído em sua Foz para uma largura de 9 m e 28 cm de profundidade.
01 de maio de 1839 ‒ Chegamos ao Pirara na noite de 1° de maio. Aqui encontramos o destacamento brasileiro, que afastou o zeloso missionário, o Reverendo Sr. Thomas Youd, e dispersou seu rebanho. Se o Governo brasileiro tem direito de agir assim não me cabe aqui discutir; meu dever é apenas relatar o fato de que a antiga capela foi transformada em Quartel, e o prédio onde as primeiras sementes do cristianismo haviam sido lançadas entre os índios ignorantes foi transformado em um local onde impera a linguagem obscena e festas noturnas.
03 de maio de 1839 ‒ No dia 3 de maio, depois de três meses, caiu a primeira chuva no Pirara e com isso começou a grande mudança climática, os Rios começaram a encher, e, em meados de maio, a savana estava alagada […] No final de maio, as corials carregadas com nossas coleções, chegaram do Forte São Joaquim e foram lançadas no Quatata ([4]), que se comunica com o Rio Rupununi. Elas logo alcançaram o Rio Rupununi e, levadas rapidamente por uma forte corrente, chegamos à sua junção com o Essequibo em 1° de junho.
13 de maio de 1839 ‒ No dia 13 desembarcamos no Comuti, ou rochas Taquiara (Imagem 26), que novamente eu subi, e avaliei em 48 m a altura dessas massas de granito, confirmando assim a estimativa que havia feito na minha Expedição anterior. O Essequibo transbordava, as quedas tinham sumido, e, graças a isso, levamos apenas cinco dias para percorrer o mesmo trajeto que levamos vinte e três para subir.
17 de maio de 1839 ‒ Na manhã do dia 17 de junho, nos aproximamos da Missão protestante em Bartika Point, onde fomos festivamente recebidos com direito a içamento de bandeiras e tiros. Por uma estranha coincidência, fui recebido pelo Bispo de Barbados, a mesma autoridade que me recebera no retorno de minha primeira Expedição em 1836. O Bispo ia fazer uma visita de inspeção à Missão, e foi com lamentável pesar que tive de comunicar-lhe a triste notícia do fim da Missão do Pirara, cuja fundação este digno e muito respeitado prelado tinha envidado todos os esforços ao seu alcance.
20 de junho de 1839 ‒ Tinham-se passado vinte e dois meses desde que passei por aqui, na minha subida pelo Rio Essequibo, e disse adeus à vida civilizada e aos seus confortos. Durante este período, eu reconheci o Essequibo até suas fontes, percorrendo mais de 4.828 km, principalmente por água, que detalhei nas páginas anteriores, e agora, pela bênção da providência, retornei em segurança para Georgetown, Demerara, a qual cheguei em 20 de junho de 1839. Essa foi uma navegação interna de uma das colônias mais luxuriantes dos domínios de Sua Majestade, e não posso concluir este relatório sem voltar a atenção para a facilidade de comunicação oferecida pelos Rios que cruzam este Distrito da América do Sul. […] Se a Guiana Britânica não possuísse a fertilidade que é sua característica mais especial, essa possibilidade de comunicação fluvial por si só a tornaria de grande importância, mas abençoada como é com abundante fecundidade, esta extensa navegação interior aumenta seu valor como colônia britânica e, se a emigração, suficiente para disponibilizar seus recursos, fosse adequadamente direcionada, o porto de Demerara, certamente, rivalizaria com qualquer outro no vasto continente da América do Sul. (SCHOMBURGK, 1841)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.06.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
SCHOMBURGK, Robert Hermann. A Description Of British Guiana, Geographical and Statistical: Exhibiting its Resources and Capabilities, Together With the Present and Future Condition and Prospects of the Colony ‒ Inglaterra – Londres ‒ Simpkin, Marshall, and Co., 1840.
SCHOMBURGK, Robert Hermann. Relato da Terceira Expedição ao interior da Guiana ‒ Inglaterra – Londres ‒ The Journal of the Royal Geographical Society of London, Volume The Tenth, 1841.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] A Pedra de Cucuí é uma elevação de 462 m, de altitude, e, do alto da pedra, é possível avistar o Pico da Neblina e a Serra do Imeri. Observando-se a Serra, do lado brasileiro, ela se assemelha a um rosto fitando o céu.
[2] Na face norte da serra do Cucuí, existem cavernas naturais e, em uma delas, teria morado, segundo a lenda, o cacique Cucuí. O cacique tinha várias esposas e, à medida que elas envelheciam, eram engordadas e sacrificadas para servirem de repasto ao cacique canibal. Cucuí a substituía, imediatamente, por uma das jovens mais belas da Aldeia.
[3] Pedreiro: atualmente Moura.
[4] O Quatata é um riacho localizado Alto-Takutu, região do Território Essequibo. A elevação estimada do terreno acima do nível do mar é de 85 metros. Também conhecido como Rio Kwatata, Kwatata e Kwatata.