Descendo o Rio Branco
Francisco J. R. Barata (1798/9)
Parte VII
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Pelas 11h00, chegamos a Maiacá, onde estavam as canoas. De tarde passou-se para o barco tudo o que havia nelas, e esperamos a maré. De noite porém houve vento tão contrário e tão forte, acompanhado de chuva, que tudo se molhou, porque o dito barco não tinha coberta, nem coisa com que se pudesse proteger da chuva.
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Logo que amanheceu tornei a descarregar, e fiz por tudo ao Sol para se enxugar, o que consegui até às 14h00. Tornou-se a carregar, e sendo o vento favorável partimos, então observei que não tinha sido só a água da chuva a que havia molhado a nossa carga, mas também a que o barco recebia por todas as suas costuras, que era em muita abundância. Seriam 17h30, quando o vento refrescou de tal sorte que, não podendo o barco, abriu mais as ditas costuras, de maneira que quatro índios não podiam dar vazão à água, que cada vez crescia mais. Consultei o prático sobre isto, parecendo-me melhor tornar para Demerara, que não só nos ficava mais perto, mas tínhamos o vento a nosso favor, e que concertando ali o barco, partiríamos então para Berbiche. O prático aprovou o meu parecer; e assim demandamos ao dito Porto, passando toda a noite a velar por causa do grande perigo de vida a que íamos expostos.
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Pelas 08h00, chegamos a Demerara. Desembarquei, e logo procurei ao Major, a quem comuniquei os sucessos da minha viagem, desde que daquela cidade havia partido.
Então me participou ele que depois de minha partida tinha chegado de Suriname uma embarcação denominada “Flag of Truce”, a qual por ordem do Governador daquela cidade viera a esta a certas dependências, e que estava já despachada para partir na noite deste dia, e que se eu quisesse ir nela, falar-se-ia ao seu Capitão, e se participaria isto ao Comandante Geral, a ver se ele assim o permitia.
Falamos pois ao dito Capitão, o qual conveio não só no meu transporte, mas também em esperar a licença do Comandante Geral. A embarcação referida pertencia ao governo de Suriname, e lhe chamam “Flag of Truce” ([1]) porque não pode trazer armas ofensivas ou defensivas de qualidade alguma, nem petrechos alguns de guerra, ou coisa que para ela possa servir, e nem ainda maior quantidade de cabos do que os precisos para o seu serviço, e excedendo esta ordem, pode ser apreendida e reputada inimiga.
A todas as nações oferece bandeira branca no topo do mastro, e na popa a da sua Nação, e deve seguir a sua escala de tal modo que tem obrigação de entrar em todos os Portos, por onde passar, fundeando debaixo de artilharia de alguma Fortaleza, de onde não pôde prosseguir sem licença. O Major despediu a necessária participação ao Tenente-Coronel Comandante Geral, cuja decisão esperamos.
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De manhã tratei de providenciar o conserto do barco, e de dispor o preciso para ele regressar a Berbiche; mas como para este fim era necessário demorar-se, e eu não podia, encarreguei ao soldado esta diligência, e pedi ao Major que a tomasse debaixo de sua proteção, o que ele com gosto prometeu, e se encarregou de o despedir logo que estivesse pronto, fazendo disto mesmo aviso ao Governador de Berbiche. Já havia chegado a licença do Comandante, e a maré principiava a vazar, quando eu me embarquei na dita embarcação, só com dois índios da minha equipagem, deixando todos os mais entregues ao soldado meu camarada, e aquartelados em uma casa, que me fez aprontar o dito Major. Fizemo-nos à vela, e com vento fresco navegamos todo este dia e toda a noite.
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Continuamos, e fomos chegar à Foz do Rio de Berbiche pouco depois do meio-dia; e porque a maré ainda não tinha crescido suficientemente para podermos entrar na Barra, demos fundo ([2]). Às 14h00, suspendeu-se o ferro, e entramos. Em distância quase de uma légua pela Barra dentro, da parte esquerda, se acha um Destacamento com algumas peças de artilharia de calibre muito pequeno, o que inferi, porquanto passamos nós pela sua frente, e perguntando eles que embarcação era aquela, ao que o Capitão respondeu como devia, os do destacamento lhe ordenaram que desse fundo, ao que não querendo obedecer, e seguindo avante, nos atiraram cinco tiros, nenhum dos quais deu na embarcação, porque de uns não chegavam a ela as balas, e outras passavam pela proa e pela popa.
Continuou o Capitão a dizer-lhes que aprendessem a reconhecer bandeiras e embarcações, e fomos dar fundo junto a Fortaleza. Aqui desembarcamos, e fomos nos apresentar ao Comandante, a quem causou novidade o meu retorno, e depois fomos à cidade falar com o Procurador do Governador, que a este tempo estava fora, e lhe participei a minha viagem, o estado do barco, e as disposições que tinha feito para o seu concerto e regresso, tudo o que certificou o Capitão, segundo a ordem que recebera do Major Wilson; e isto feito nos recolhemos a bordo.
15 e 16
Nestes dois dias aqui nos demoramos, porque foi preciso mandar participar ao Governador a nossa chegada, afim de que ele mandasse as respostas de algumas cartas que o de Suriname lhe havia dirigido.
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Com a vazante da manhã largamos do dito Porto, e nos fizemos na volta do mar, onde, pelas 08h30, avistamos uma pequena embarcação, que em pouco mais de um quarto de hora nos veio reconhecer, e se retirou sem que nos desse a conhecer quem era, nem a sua Nação.
Pouco depois das 09h00, tornamos a avistar outra, que também se encaminhou para nós, e logo que chegou a tiro de peça, içou e firmou a sua bandeira, e falou com o Capitão da nossa embarcação, que já também tinha arvorado as suas. Reconhecemos então ser um bergantim de guerra americano-inglês, que andava cruzando naqueles mares caçando franceses de Caiena. Informado do que eu pretendia, se retirou continuando a seguir rumo que trazia, e em breve tempo se nos perdeu de vista, pois era tão veloz que não parecia andar, mas sim voar pelas águas ou pelos ares, ao mesmo tempo que a nossa embarcação também era mui ligeira, mas não tanto.
18, 19, 20 e 21
Nestes dias navegamos com vento ora favorável, ora contrário, bordejando a uma e outra parte, e algumas vezes estivemos em calmaria, mas sem novidade.
22
Seguimos da mesma sorte até a uma hora da tarde, em que avistamos a terra de Suriname, para a qual íamo-nos aproximando. Entramos na sua Barra, pelas 14h30, e com o resto da enchente fomos até o Forte de Amesterdão, de onde partimos quando a maré tornou a encher, e demos fundo no porto da cidade de Paramaribo, capital desta Colônia, pelas 16h30.
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Pelas 07h00, fui com o Capitão da embarcação apresentar-me ao Governador-General, levando-lhe os meus passaportes, e sendo por ele muito bem recebido, me mandou logo ensinar o caminho da casa do Doutor David Nassi, alvo e objeto das minhas diligências, e desta longa e penosa viagem, já aqui bem compensada com o gosto de o ter achado, e mais ainda com a honra de ter assim satisfeito a parte principal da minha comissão, entregando ao dito Nassi as respeitáveis cartas de que era portador.
Ele as recebeu com grande prazer e maior respeito, e à proporção que as ia lendo, se lhe descobria no gesto e nas palavras a suma impressão e alvoroço que lhe causava esta honra, que ele reputava mui superior aos motivos que a ocasionavam.
Não podendo já conter em si a sua alegria, chama a Sara sua filha, e a todos os parentes que ali estavam, e a quem deu logo parte de tão inesperada e feliz novidade, para que a tivessem também no seu contentamento.
A este tempo mandou o Governador, o qual se chama Julião Francisco Frederico, pedir ao dito Nassi que quisesse ir à sua casa, levando-me consigo, ao que ele obedeceu logo, e eu juntamente por seu convite. Durante o caminho foi-me ele relatando algumas coisas que o Governador em outro tempo havia feito, e que sem dúvida nos mandava chamar com o desígnio de saber de mim o resultado delas; mas como eu ignorava inteiramente, desde logo o dispus para concorrer comigo a persuadi-lo de tudo o que deveria dizer-lhe em tais circunstâncias.
Chegando à sua presença, ele nos recebeu com muita afabilidade. Logo depois me perguntou pela nossa augusta Soberana e pelo Príncipe, ao que respondi como devia. E antes que me falasse nos objetos que me havia apontado Nassi, eu preveni tocando-lhe nos mesmos de tal modo que ele facilmente se persuadiu, ficando com isto muito satisfeito.
Não deixei de lhe ponderar os motivos porque as coisas foram assim dispostas, ao que ele assentiu, como me persuado que será constante. Nassi da sua parte me ajudou muito, e com razões tão justas e próprias, que não merecem menos reconhecimento. Não me é lícito dizer mais e especificar aqui o que se passou na dita conferência, de que já dei exata conta a quem somente a devia dar de toda a minha diligência.
Então S. Exª nos fez a honra de convidar para jantarmos com ele naquele dia, para ele de tanto gosto, como se expressava; e logo me ofereceu casas para residir, e tudo o mais que precisasse todo o tempo da minha demora nesta Colônia, pois não queria [dizia ele] que eu despendesse nada do meu na sua cidade.
Instou tanto neste oferecimento quanto eu em agradecer-lhe, mas Nassi lhe suplicou que permitisse que ele me alojasse em sua casa pelos motivos que expôs a S. Exª, e por outros que deixava à sua contemplação, no que ele conveio, e nos despedimos, e então me rogou que à hora do jantar lhe referisse miudamente toda a minha viagem e os sucessos dela, e eu prometi obedecer-lhe.
Foi tal o alvoroço que causou a minha chegada a todos os indivíduos da Nação judaica portuguesa, habitante em Suriname, que quando voltamos para a casa de Nassi já aí se achavam à espera de nós mais de quarenta dos principais dentre eles para me felicitarem, e darem a boa vinda, que estimaram muito, não só pela honra e glória que dela ou das cartas resultava a todos, mas também por ir, e ser eu natural do País dos seus antepassados, que ainda consideravam como Pátria, cuja linguagem ainda era a de que usavam, e de que se lembravam sempre com saudade e com ternura.
O dito Nassi lhes participou então miudamente o conteúdo das mesmas cartas, acompanhando com reflexões muito próprias para aumentar e justificar o prazer, que alguns testemunhavam com lágrimas; o que me tocou sumamente, como um espetáculo sublime do amor patriótico, lembrando-me muito nesta ocasião daqueles versos de Ovídio:
Nescio qua natale solum dulcedine cunctos
Trahit, et immemores non sinit esse sui. ([3])
Este dia era domingo, e sendo como tal rigorosamente proibido ali para todo e qualquer trabalho, portanto não me foi permitido desembarcar nele coisa alguma para a terra senão a minha rede ou maca.
Chegada a hora do jantar, que seria quase às 15h00, tornamos para o palácio do Governador, que nos recebeu com a mesma benignidade, e igualmente sua excelentíssima esposa, a quem tive a honra de cumprimentar. Esta senhora é de mediana formosura, mas de muito espírito, ornado de bastantes conhecimentos, com muita gravidade e afabilidade ao mesmo tempo.
A mesa foi servida com a maior magnificência, unindo-se nela a riqueza ao bom gosto: e aí se achavam além do Governador, e da sua esposa e um filho, que é Cadete, mais dois Capitães, um ajudante, o Dr. Nassi e eu, podendo ela satisfazer bem a vontade até 40 ou 50 pessoas.Fez-se a primeira saúde à Rainha Fidelíssima e ao Príncipe do Brasil, a que todos corresponderam, especialmente Nassi e eu com as demonstrações do profundo respeito que devíamos.
Aqui satisfiz aos desejos do Governador, e relatei a minha viagem, que todos ouviram atentos, e disseram no fim dela, para me lisonjear, que eles se dariam por felizes se tivessem feito um semelhante serviço.
Então o Governador voltando-se para o Cadete seu filho, lhe disse que aprendesse com este exemplo a sofrer incômodos e trabalhos para obedecer aos superiores e servir a Pátria. E que ele mesmo estimaria mais ter feito esta diligência, do que ser Governador em Suriname, o que me surpreendeu bastante, e cheio de confusão e de reconhecimento lhe agradeci como pude. Acabado o jantar, passamos para outra sala, ainda mais suntuosa, para onde fez vir o Atlas, pedindo-me que lhe mostrasse a minha derrota sobre a carta respectiva.
Assim o fiz, e dizendo-lhe que faltava nele o Rio Rupununi logo o anotou em papel separado; mas eu usando da possível reserva em tais circunstâncias, não apontei, e passei em silêncio, de modo que não perceberam o pequeno Rio Sarauru por ser já do nosso território, e outros pertencentes ao mesmo.
A vista desta derrota, e dos seus longos e trabalhosos rodeios, novamente entraram a exaltar a agilidade e a sofredora e animosa constância dos portugueses: ao que respondi, que não era isto de admirar em homens como eu, destinados pela Providência desde o berço a padecer necessidades, e já habituados a elas, principalmente servindo debaixo das ordens de um General, qual era o meu, que nos servia de exemplo e de estímulo, e que sendo das principais famílias e primeira nobreza do Portugal, criado com o mimo e delicadeza que lhe era própria, assim mesmo se não poupava a trabalho algum, ativo e infatigável no serviço da Nação e da soberana, de quem tinha obtido toda a confiança e distintas mercês, como penhores de outras ainda maiores, que merecia por muitos títulos, e mormente pelo seu Governo feliz e laboriosíssimo no vasto Estado do Pará e Rio Negro pelo espaço de oito anos, e nesta época a mais crítica de uma guerra universal.
Entrava já a noite quando pedimos licença a Suas Excelências para nos retirarmos, agradecendo-lhes com as expressões do maior respeito todas as honras que me tinham feito, e que eles protestavam querer continuar com muito gosto.
Em casa achamos um novo concurso de gente, que nos esperava atraídos pelo mesmo motivo e novidade, e depois de os satisfazer pelo modo possível, me recolhi logo a descansar das fadigas daquele dia e dos outros antecedentes, e dar graças a Deus Nosso Senhor por me ter conduzido incólume até aqui. (Continua…) (BARATA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 18.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João Inácio da Silva, 1846.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
[1] Flag of Truce: Bandeira de Trégua.
[2] Demos fundo: Lançamos âncora.
[3] “Desconheço quem unicamente por vocação, com prazer, ampara a todos, sem se lembrar de si próprio” ‒ Públio Ovídio Naso: Cartas Pônticas (ou Cartas do Mar Negro ‒ Ponto Euxino), I.III. 35-36.
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