Descendo o Rio Branco
Francisco J. R. Barata (1798/9)
Parte VI
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De manhã fui cumprimentar ao Major, o qual me recebeu com a mesma afabilidade, e me participou ter já chegado a resolução do Comandante Geral, o que nos obrigava a ir segunda vez à casa do Governador, para onde nos dirigimos a cavalo. Chegados que fomos, e feitos os devidos cumprimentos tratou-se da minha licença apresentando-lhe o Major os meus passaportes, que ele viu, e eu não entendi as razões que entre um e outro se passaram, porque falavam holandês. Por fim me declarou o Major que eu tinha licença para continuar minha diligência, e que se precisava de alguma coisa, a fim de logo me ser aprontada. Representei-lhe a precisão de um prático para prosseguir pela costa, a qual ignorava a minha equipagem, ao que eles logo me deferiram, expedindo as necessárias ordens para se me dar. Perguntaram-me se não tinha precisão de mantimentos ou de bebidas, assim para mim, como para a minha gente, ao que respondi que ainda tinha quanto bastava para chegar a Suriname, se a viagem não fosse muito dilatada.
Despedimo-nos do Governador, dando-lhe eu as possíveis mostras de gratidão e reconhecimento. O Major me pediu que o acompanhasse à casa do almoxarife e pagador da tropa, era este um inglês de idade de 40 anos, porém tão agradável e prazenteiro ([1]), que parecia querer entrar no coração de todos. O meu amável Major o informou de quem eu era, para onde ia, e igualmente da minha viagem, o que ele ouviu com atenção, e não menos assombro. Convidou-nos para que naquele dia lhe déssemos o gosto de jantar com ele, o que a rogos do mesmo Major aceitei. Era a este tempo quase meio-dia, e por isso nos retiramos à Fortaleza, a fim de que eu pudesse dispor a minha viagem, a qual determinei para a maré da noite, como mais favorável para a navegação que tinha de fazer. Pelas 14h00, me foi apresentado, por ordem do Governador, o pedido prático, o qual era um negro de Berbiche, a quem disse que ao tempo da dita maré se devia achar pronto a meu bordo ([2]), para cujo fim sendo-lhe preciso, ou gente, ou dinheiro, tudo lhe seria pronto.
Procurei outra vez ao Major, o qual deu-me logo o passaporte para Berbiche, e ordem para ali se me assistir com tudo quanto eu precisasse ou requeresse, sem dúvida alguma, cuja ordem era dirigida ao Major Belli, Comandante do dito posto. Depois tornamos para a casa do almoxarife, o qual tinha também convidado alguns negociantes ricos, e oficiais militares, que vieram concorrendo. Às 15h00, fomos para a mesa, que foi servida com toda a magnificência, tanto no esquisito e delicado das comidas, como no asseio e riqueza do serviço e aparelhos. Dezessete pessoas estavam à mesa, e entre elas um inglês, mestre e dono de uma pequena embarcação, que havia chegado no dia antecedente de Barbados, o qual me certificou que uma fragata e algumas pequenas embarcações de guerra portuguesas haviam ali arribado, tendo saído do Grão-Pará no Brasil, e que determinavam seguir viagem para Lisboa. Perguntei-lhe se sabia como se chamava o Comandante da Fragata; ao que ele respondeu que, segundo ouvira dizer, era um fulano Castro, pelo que inferi logo ser o chefe de divisão Bernardino José de Castro, Comandante da Fragata Vênus. Era já quase noite quando se acabou esta agradável sociedade, e portanto nos despedimos, e retiramos para a Fortaleza, recolhendo-se o Major ao seu Quartel, e eu à minha canoa a examinar se tudo estava pronto, como eu havia determinado, o que assim achei. Voltei a despedir-me do Major e da oficialidade, a quem tantos obséquios devia, agradecendo-lhes quanto pude, e certificando-os de que em qualquer parte em que me achasse seria sempre seu servidor, e um perpétuo panegirista ([3]) da sua hospitalidade e mais virtudes.
Querendo eles enfim dar-me a última prova delas, insistiram e foram acompanhar-me até o Porto, apesar das vivas e repetidas instâncias que lhes fiz para que não tivessem este incômodo, e me não acabassem de confundir com este novo lance de polidíssima urbanidade. Quase 22h00 seriam quando a maré principiou a vazar, e nós aproveitamo-nos do seu favor partindo da dita cidade. Esta tem o seu assento na margem esquerda do Rio Demerara, de quem tomou o nome, em terreno baixo, porém sumamente plano, e muito agradável pela dilatada vista do Oceano, que aqui recebe as águas do dito Rio, aliás caudaloso, e que terá neste lugar quase uma légua de largura.É regular na disposição e ordem de suas ruas, em que tem muitos e belos edifícios. Tem muito comércio, o qual vem ali fazer todas as nações aliadas e amigas deste e do outro continente, pelo que o seu Porto se acha sempre com grande número de embarcações, que diariamente estão entrando e saindo.
A agricultura mereceu ali sempre particular atenção, e no tempo presente promete ainda maior progresso, porque o Major Wilson me certificou que a Nação inglesa tinha já introduzido na dita Colônia mais de 25 mil escravos, do que me persuado, porque nessas mesmas poucas horas, que lá me demorei, entraram cinco grandes navios vindos a costa da África com escravatura. Depois que os ditos ingleses tomaram posse desta parte de Guiana, se têm vindo nela estabelecer outros muitos e ricos europeus seus nocionais, assim no comércio como na agricultura. A Fortaleza tem dentro o Quartel da tropa inglesa, cujo edifício é asseado, magnífico e bem regulado, tendo as competentes repartições para os Oficiais, Oficiais inferiores e Soldados, e bem assim o Quartel dos Oficiais do regimento de negros. Esta Fortaleza é regular, e guarnecida com 39 peças de artilharia de vários calibres, e nela entram de guarda diariamente um Oficial com 20 soldados, e os competentes Oficiais inferiores.
Junto à Fortaleza, em uma grande Praça, se acha o parque das munições de guerra, bem fornecido, e se lhe segue o Quartel do dito regimento de negros, onde tem outra igual guarda, como a mencionada, e defronte está o Quartel do Comandante Geral, para onde esta última guarda dá duas sentinelas, que estão postadas no pórtico em duas guaritas. Na cidade, que fica em distância de meio quarto de légua pouco mais ou menos, mas com muitas casas de permeio, se acha o Quartel da tropa holandesa subordinada ao dito Comandante inglês, cuja tropa entra de guarda no seu mesmo Quartel, e dá duas sentinelas para o Governador Civil, e um oficial inferior para as suas ordens. Toda a tropa referida se comporá de duas mil praças pouco mais ou menos, compreendido o regimento de negros, que os ingleses criaram, e que conservam bem disciplinado, cujo corpo não deixa de ser sumamente útil pelos muitos serviços a que se aplicam, porque eles não só são exercitados no manejo das armas, mas também no da marinha, e nos trabalhos das fortificações. Estes negros foram mandados vir da costa da África, e comprados à custa da Fazenda Real, de quem se pode dizer que são escravos na qualidade de soldados. Os seus oficiais são brancos até cabos de esquadra exclusive.
As forças marítimas consistem em algumas lanchas artilheiras, que continuamente andam cruzando ou rondando os mares e costas vizinhas, recolhendo-se umas de oito em oito dias, e saindo outras. Quando se quer expedir algum comboio, vem buscá-lo embarcações de guerra de Barbados, onde suponho que tem a Nação inglesa maiores forças navais.
A população desta Colônia, não entrando Essequibo e Berbiche, se calcula hoje em 60 a 70 mil almas, a saber: 8 a 10 mil de brancos e livres, e 50 a 52 mil escravos, levando em conta a tropa paga e a de milícias. Este foi o conhecimento que pude adquirir no pouco espaço que me demorei nesta cidade, a qual em breves anos, será uma das melhores da América se os ingleses a conservarem, como é de supor, apesar de que os holandeses, nela existentes, não vivem satisfeitos e contentes. Eu, suposto que navegava de noite, contudo sempre divisava em terra, em pequenas distâncias, muitas plantações seguidas umas às outras, pelo que inferi que o terreno que vi era todo cultivado […] Descansamos logo que a maré nos impediu ir avante.
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Logo que a maré da manhã nos foi favorável, continuamos sem novidade até às 15h00, tempo em que chegamos ao sítio chamado Maiacá, junto ao qual está um grande baixio, que se estende muito ao mar. Fizemos diligência para passá-lo, porém não o conseguimos, porque refrescando o vento, se empolaram de tal sorte as ondas, que estivemos a ponto de ir a pique; e assim nos vimos obrigados a ir encostar à terra à espera de melhor tempo, que neste dia não tivemos.
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No dia seguinte tentamos a mesma diligência, porém debalde ([4]).
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Havendo porém no outro dia acalmado alguma coisa o vento, instamos, e chegando a navegar mais de uma légua ao mar para sairmos de cima do baixio, não nos foi possível consegui-lo, porque as canoas não eram suficientes para esta navegação, principalmente não tendo velas, com que pudéssemos marear ([5]); e portanto tornamos para o lugar donde tínhamos saído.
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Pela manhã, vendo que não podíamos prosseguir na nossa viagem, tomei o expediente de partir por terra para Berbiche, para cujo fim quis alugar um cavalo, que gratuitamente me foi emprestado pelo administrador de uma plantação, cujo proprietário está na Inglaterra.
Seguido pois de dois índios e do dito negro prático, tomei o caminho ou estrada que vai para a dita cidade, e cheguei já de noite à margem do pequeno Rio chamado Maiconi, onde tem um pequeno destacamento de 12 soldados e um Oficial, em cujo Quartel dormimos por mercê, porém sem aquele agasalho e bom tratamento que nos outros havíamos experimentado, porque o Comandante estava em uma plantação vizinha, e apenas se achavam ali os soldados e dois oficiais inferiores, que pareciam insensíveis.
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Passamos em uma barca o Rio, e continuando o nosso caminho, chegamos à margem do Rio de Berbiche, onde pernoitamos em uma estalagem que ali há, e que muito estimei achar, porque logo tratamos de nos refazer da fadiga e da fome que neste dia padecemos. Todo o caminho por onde viemos era uma excelente e larga estiada com frondosas árvores pelos lados, dispostas em ordem, a qual estrada, tendo o seu princípio em Demerara, vem continuando ora pela frente, ora pelos lados, ora pelo meio das plantações, até ao dito lugar. Nela encontrei muita gente a pé ou a cavalo, e em carrinhos, umas vezes homens com senhoras, outras aqueles ou estas sós nos ditos carrinhos […] passando de umas plantações a outras. Os edifícios ou casas destas plantações não têm inveja aos da cidade, cada uma parecendo uma grande povoação. Nas dilatadas campinas ou terras baixas, por onde passei nestes 2 dias, não encontrei outra cultura senão a de algodão, cujas plantas todas dispostas em boa ordem até agradam à vista e em tanta extensão quanto a minha podia alcançar.
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Pela manhã atravessei em um escaler o Rio de Berbiche, e fui portar na Fortaleza, onde reside o Major Belli, Comandante da tropa, para quem era a ordem que levava do Major Wilson, a qual lhe apresentei, e a vista dela ficou ciente de quem eu era, e para onde ia. Eu lhe relatei o que me havia sucedido para não poder chegar ali nas minhas canoas, e que portanto quisesse ele mandar-me aprontar um barco, em que eu pudesse voltar a buscar a minha gente, e o mais que trazia, ao lugar em que a tinha deixado, e ele me respondeu que fosse eu a cidade falar ao Governador Civil, em companhia de um Oficial, que ele a este fim expedia, e que pelo mesmo Governador me seria tudo aprontado.
A cidade se acha em distância de quase meia légua da Fortaleza, e por isso fomos em um escaler do serviço do destacamento. Desembarcamos no porto ao pé da casa do Governador, para onde nos encaminhamos, e fomos por ele recebidos com muita cortesia. O oficial que me acompanhava lhe fez saber a minha pretensão, e depois de ter com ele larga conferência em língua holandesa, me disse que não havia barco, pois o Governador não podia obrigar aos donos de alguns, que ali se achavam, a darem-nos para semelhante fim. Ao que eu respondi que tanta dificuldade oferecia S. Exª nisto, quanta facilidade havia eu achado em Demerara, para onde sem perda de tempo regressava, na certeza de que ali tudo me seria pronto, mas que ficasse S. Exª na inteligência de que isto não aconteceria com estrangeiro algum que chegasse a qualquer parte de Portugal e seus domínios, porque logo seria provido de tudo, e que além disto eu estava pronto a pagar o aluguel competente.
Vendo o Governador e Oficial esta minha resolução, continuaram a sua conferência em holandês, e por fim me disse o Governador, que ele faria aprestar um seu próprio barco, e que dele seria prático o mesmo negro que me acompanhava, e que ele conhecia, e que para a marcação do pano iriam dois negros seus, e na maré da noite poderia partir, e que não queria disto aluguel algum. Agradecendo eu este, ainda que involuntário obséquio, nos despedimos e recolhemos à Fortaleza, onde jantei com os oficiais, que eram servidos do mesmo modo que os outros de que já falei.
Acabado o jantar, me convidou um oficial, que comigo havia estado em Demerara no primeiro dia da minha chegada, para que com ele fossemos entreter o resto da tarde em ver a Fortaleza e o hospital, ao que assenti com gosto. É a Fortaleza fabricada de terra, porém regular, e com 26 peças de artilharia de vários calibres, tendo de sobressalente doze em seu parque, onde igualmente vi grande quantidade de petrechos de guerra. O hospital não é grande, porém muito asseado, e bem servido, segundo mostrava na regularidade com que tudo estava disposto. A Guarnição Militar desta Fortaleza e cidade se comporá pouco mais ou menos de 200 homens, com 7 oficiais.
Pelo que pertence ao comércio e agricultura ela é mais opulenta que Essequibo, mais muito menos que Demerara. No seu porto não podem entrar grandes embarcações, porque a sua Barra não tem fundo suficiente, e quando sucede vir a ele alguma de maior lotação, fica foram distância quase de duas léguas, que tanto dista a cidade da Barra.
Assim que a maré principiou a vazar, veio do porto da cidade para o da Fortaleza o barco, no qual me embarquei depois de despedido, e depois de agradecer ao Comandante e aos oficiais os seus bons ofícios. Fizemo-nos à vela, e navegamos toda a noite. (Continua…) (BARATA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 16.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João Inácio da Silva, 1846.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Prazenteiro: amável.
[2] A meu bordo: embarcado.
[3] Panegirista: enaltecedor.
[4] Debalde: em vão.
[5] Marear: orientar as velas de acordo com a direção do vento.
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