Descendo o Rio Branco

Cercanias de Rio Branco

Francisco J. R. Barata (1798/9)
Parte II 

Agosto 1° 

Antes de amanhecer fomos continuando pela mesma margem, e às 07h00 chegamos defronte da serra Carumá, onde ficamos. Esta serra é muito alta, e se acha da parte direita do Rio, por onde à larga distância continua, seguindo depois a sua direção para o interior da terra, e parte do nascente.

Viajamos sem novidade até às 15h00, a cujo tempo passamos pelo lugar onde existiu a Povoação de Camame, na qual hoje não há sinais dela, e só apenas se divisam algumas árvores de frutas. Continuamos, e, às 22h00, da noite fomos chegar à fazenda de gado vacum, pertencente a Sua Majestade, da administração da qual se acha encarregado um anspeçada ([1]), tendo por camarada a um soldado, ambos compreendidos no destacamento da Fortaleza. A fazenda tem pouco mais de trezentas cabeças, mas o seu gado é bem semelhante no tamanho ao da Europa, e mesmo na qualidade da carne, que é excelente; o que procede dos bons e salitrados pastos que ali tem.

Dizem que as campinas são vastíssimas e capazes de se estabelecerem nelas grandes fazendas; porém eu o duvido, porque elas não têm lugares sombrios onde possam descansar os gados, e alguns que têm são nas faldas das serras, que ficam a grande distância dos Rios, sendo-lhe portanto no verão muito dificultosa a água, a qual não tem no interior das campinas, e portanto lhe é preciso virem algumas léguas de distância, e beberem nos Rios.

Não nego contudo que se lhes possa introduzir muito mais gado do que tem, mas não concedo que se exagerem tanto estas campinas, quanto o pretendem fazer algumas pessoas.

Partimos desta fazenda de manhã, e chegamos à Fortaleza de S. Joaquim pelas 09h00. Aqui ficamos o resto deste dia, para se me aprontarem os índios que me deviam acompanhar, e juntamente para se fazerem alguns pregos que eram precisos, o que tudo se aprontou. Esta Fortaleza é pequena, mas regular, e se acha situada na Boca do Rio Tacutu, que ali deságua no Rio Branco, defendendo portanto a descida de qualquer inimigo, tanto por aquele, como por este Rio.

Tem a competente Guarnição Militar, que se compõe de um Comandante, que é o Alferes do regimento da cidade, Nicoláo de Sá Sarmento, um Sargento, um Cabo, e vinte e tantos Soldados dos regimentos de Macapá e cidade; tem também de guarnição alguns índios, que são mudados todos os meses, e pertencem às povoações do Rio Negro.

Além destes tem alguns mais, e índias que habitam no mesmo lugar, os quais para aqui passaram das extintas povoações deste Rio, quando os habitantes destas foram mudados para diferentes Vilas e Lugares do Amazonas e Rio Negro, cuja mudança ocasionou a fuga de uns outra vez para os matos, a morte de outros, e finalmente a perda daquelas e destas povoações, nas quais ficaram muito poucos.

De manhã cedo partimos da Fortaleza, levando em minha companhia três soldados dela para voltarem com os índios, que iam para ajudarem a varar as canoas por terra, e deixando o Rio Branco entramos pelo Tacutu, e fomos pernoitar na Boca do Rio Surumu. É o dito Tacutu um dos maiores tributários que tem o Branco, pois que enriquecido ele das águas que lhe dão o Surumu, o Mau, o Sarauru [?] e outros, finalmente de todas lhe faz entrega junto à dita Fortaleza. É agradável não só pelas praias que tem, mas pelas campinas que de uma e outra parte oferecem vastíssima vista até elevadas e altas serras.

Seguimos pelo mesmo Rio, fomos descansar na Boca do Rio Mau, do qual trataremos em outro lugar.

De madrugada largamos deste, e assim que viramos a primeira ponta avistamos na margem direita do Rio grandes labaredas de fogo; dirigimo-nos para esta parte e mandando remar surdamente e com todo o silêncio, chegamos perto e ouvimos falar; mandei escorvar as armas, e disse a um principal prático, que me acompanhava, e que era ciente da linguagem de diversas nações indianas, observasse qual seria a que ali estava, e ele assim o fez, e reconhecendo serem índios gentios da Nação Uapixana, ordenei ao principal lhes falasse, o que fez na mesma linguagem, a cujas falas eles corresponderam, o que vendo saltei em terra, e fui ver a sua habitação e trato, acompanhando-me os soldados e o dito principal.

Eles não tinham por casa mais do que algumas palhas encostadas nos troncos de frondosas árvores, debaixo de cujas árvores e palhas guardavam por motivo das chuvas o seu pobre trem, que apenas consistia em algum peixe moqueado ou assado a fogo lento, em alguns beijus [chama-se beiju a um pão chato fabricado da massa de mandioca], e alguns cabaços ([2]) de sal: aqui mesmo guardam as suas redes de dormir ou maqueiras quando chove; porque no mais tempo eles se acham quase sempre deitados nelas sem abrigo algum.

Tinham seus arcos e flechas, e algumas espingardas holandesas, mas nenhuma pólvora, e por isso me pediram lhes desse alguma, porém eu me desculpei dizendo-lhes que ela estava em parte da qual a não podia tirar no escuro da noite, mas ficaram satisfeitos com uma pequena porção de sal que lhes dei, pois o que eles tinham nos cabaços era fabricado naquelas campinas. As mulheres logo que nos ouviram falar fugiram para a campina, ficando apenas a mulher do principal e duas velhas, as quais estavam muito pintadas de urucu, e ornadas de algumas miçangas pelo pescoço, braços e pernas. Eles se informaram do motivo da nossa ida, e para onde era, e juntamente nos disseram que eles ali estavam havia alguns dias a espera de uma Expedição que haviam feito para as serras contra a Nação Macuxí. Enfim, eu me despedi deles, e continuamos a nossa derrota até as 19h00, em que chegamos a uma pequena ilha, onde dormimos.

De madrugada seguimos pelo mesmo Rio, e, às 10h30, chegamos à Boca do Sarauru, pelo qual entramos, deixando o Tacutu, que ali traz a sua corrente da parte do sul. O Sarauru é caudaloso no inverno pelas muitas águas que lhe dão as vastas campinas que tem pelas suas margens, e as extensas e elevadas serras de onde traz a sua origem, e esta estação é a mais própria para a sua navegação. No tempo porém em que por ele entrei já estava muito vazio, e com as pedras de que se acha formado o seu fundo tão descobertas, que em umas partes foi preciso aliviar as canoas, e em outras descarregá-las inteiramente, para assim poderem passar as cachoeiras que tem.

E com este assíduo trabalho, continuando pelo mesmo Rio e com as mesmas dificuldades. Encontramos, pelas 16h00, uma alta e dilatada cachoeira, na qual nos demoramos o resto do dia a descarregar, e passar os mantimentos por terra para o fim da mesma, onde se tornaram a carregar.

Tratamos de passar as canoas; porém uma delas a deixamos neste lugar por não nos ser possível vencer por água a sua passagem, e por terra era assaz dificultosa, por causa das pedras que tinham ambas as margens. Mas enfim conseguimos passar duas pequenas, nas quais se embarcaram os ditos mantimentos, concluindo esta diligência pelas 16h00.

Mandei por terra os índios que não foi possível embarcar, deixei dois na dita canoa para sua guarda, e continuamos pelo mesmo Rio até às 18h30, a cujo tempo chegamos a outra cachoeira, na qual pernoitamos, havendo-se reunido os índios despedidos por terra.

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De manhã passamos a dita cachoeira, e logo às 08h00 encontramos outra, na qual aliviamos as canoas, que passamos a canal e à sirga ([3]), e fui continuando a encontrar muitas dificuldades; pois que em partes não só tinha o Rio pouca água, mas também muitas árvores caídas, cujos troncos foi preciso cortar para poder passar; mas tudo se venceu com o trabalho, do qual descansamos com o favor da noite.

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Continuamos de manhã com os mesmos obstáculos e, pelas 14h00, avistaram os práticos o lugar por onde haviam de passar as canoas por terra, o qual parecia estar muito perto; e querendo eu já ir examiná-lo, mandei seguir as canoas, e parti por terra com dois índios práticos, e os mais que acima disse marchavam por terra. Pouco depois das 16h00, cheguei ao cume de uma pequena serra, pelas faldas da qual supus que era o dito trajeto, porém, ou eu, ou os ditos práticos se enganaram, pois que dali me mostraram em maior distância o pretendido lugar, ao qual cheguei depois do Sol posto. Como porém eu ia descalço por motivo de alguns pantanais, que há no caminho, cheguei bastantemente fatigado, e por isso me resolvi a ficar aqui até o outro dia.

Não havia transportado mais que a espingarda, e portanto os índios que me acompanharam ajuntaram lenha e fizeram uma grande fogueira, a qual nos pudesse com o seu calor moderar o frio, que ali tínhamos de sofrer. Já eu estava deitado sobre uma laje, tendo em torno de mim os índios que me acompanharam, quando, pelas 20h00, ouvimos ao longo umas confusas vozes, que bradavam. Algum receio tivemos de que fosse gentio; porém os brados se vieram aproximando, e se seguiam a eles alguns tiros. Assim que os ouvimos nos persuadimos de que era a nossa gente, e portanto lhe correspondemos com outros; chegaram finalmente ao lugar onde estávamos, quase às 22h00, e indagando deles a que vinham, me responderam que em busca de mim, e que as canoas estavam longe, porque quase ao anoitecer haviam encontrado uma grande cachoeira, a qual não tinham tempo para passar de dia. Em consequência disto regressei com eles para as canoas, onde cheguei quase à meia noite.

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Chegado que foi o crepúsculo da manhã tratamos de descarregar as canoas, e passar os mantimentos para cima da dita cachoeira, e depois se vararam as ditas canoas com muita dificuldade e trabalho. Às 08h00 encontramos outra, porém menor, e pouco acima outra mais da mesma natureza. Finalmente chegamos ao lugar do trajeto, quase às 15h00, e dali desembarcamos, o que feito mandei cortar paus para estivar o caminho por onde haviam de passar as canoas por terra até as margens do Rio Rupununi, e neste trabalho estivemos até quase às 19h00.

Como pois os índios me não acompanhavam com gosto, pelo receio que tinham das doenças, que eles por informações sabiam haver na Colônia para onde íamos, tratei às 20h00 de lhes passar revista, e então achei falta de dez, porém por causa das sombras da noite não pude saber para que parte haviam seguido.

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De manhã observamos que eles atravessaram para margem oposta do Rio, e seguiram por terra para o Rio Branco. Então me desenganei de que para a conservação desta qualidade de gente não há um método certo; pois só existem quando e por que tempo querem, apesar do bom tratamento que se lhes dá, pois até da continuação deste se aborrecem, nem tão pouco acham dificuldade em fugir nas partes mais remotas, onde parece que os obstáculos os impediriam.

Posta a estiva se principiou com a varação ([4]) das canoas, à qual assisti até quase as 09h00; e encarregando da sua continuação ao soldado que me devia acompanhar, parti eu a ir examinar a Longitude que havia até o Rupununi, ao qual cheguei depois do meio-dia. Regressei então para onde estavam as canoas bastantemente fatigado, não tanto pela distância, como por causa dos ardentes raios do Sol, que reverberavam naquelas áridas e vastíssimas campinas, onde se não acha uma só árvore, à sombra da qual se possa descansar. Este caminho é o melhor que há pela sua proximidade ao Rupununi; porém deve-se viajar enquanto o Sarauru está cheio; porque então não só é menor o trajeto, por se poder navegar pelas campinas inundadas, mas também porque as canoas passam então melhor pelas cachoeiras, porque todas se acham no fundo d’água, à exceção daquela onde deixei uma canoa, como acima disse.

E para se acharem estas comodidades deve ser intentada a sua navegação desde os fins de fevereiro até os fins de abril, e ainda em maio, tempo em que estão os Rios daqueles sertões em maior enchente. No verão é inavegável tanto pelo Sarauru como pelo Rupununi. (Continua…) (BARATA)

A Sketch Map of Britsh Guiana

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João Inácio da Silva, 1846.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Anspeçada: patente militar da cavalaria e infantaria superior ao soldado e inferior a cabo-de-esquadra. O termo deriva do italiano “lancia spezzata” significa ‒ lança quebrada, em referência ao cavalariano que, perdendo a montaria, quebrava sua longa lança e passava a combater como infante.

[2]   Cabaços (cabaça): fruto da cabaceira, de casca dura, usado como recipiente ou no fabrico de diferentes objetos.

[3]   Sirga: ou espia ‒ rebocar o barco com cordas pela água.

[4]   Varação: ou portagem – transporte da embarcação por terra.