Um futuro economicamente próspero para a Amazônia e suas populações envolve, necessariamente, respeitar a sabedoria do povo local, e que a ciência busque aplicar esse saber único no desenvolvimento de métodos e tecnologias que ampliem seu alcance em benefício de todos. Isso foi o que comentaram os integrantes do painel Amazônias Possíveis do seminário Fruturos – Amazônia do Amanhã, promovido pelo Museu do Amanhã nos dias 28 e 29/05, em parceria com o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Um exemplo de produto que une os dois conhecimentos é a pimenta jiquitaia, como contou André Baniwa, vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana. “Muita gente trabalha nessa pimenta para ela chegar a outros lugares do país. Ali tem conhecimento casado, porque a embalagem é de vidro, que não é fabricado na cultura indígena. O rótulo e o selo Origens Brasil também não é nosso”, disse. O conhecimento tradicional é o início do processo de produção: o povo Baniwa torra, mói e peneira a pimenta típica de seu território. Em seguida, o que ficaria restrito a uso próprio ganha escala maior e traz retorno financeiro aos produtores quando é embalada e distribuída graças à aliança com a tecnologia desenvolvida pela ciência.
Confira o vídeo especial do Amazoniar para o painel Amazônias Possíveis, do Seminário Fruturos:
Guilherme Oliveira, diretor científico e líder do grupo de genômica ambiental do Instituto Tecnológico Vale, também reforçou que há formas de aproveitar o conhecimento dos povos tradicionais para avanços na medicina, e garantir que eles sejam recompensados por sua contribuição. “Para ser comercializada, um medicamento tem que ser purificado. Esse processo é feito com conhecimento científico, mas posso partir de um conhecimento tradicional. O povo Baniwa utiliza muitas plantas na sua medicina. Temos que fazer o exercício de como levar essas plantas para a medicina ocidental”, disse durante sua participação no seminário. “O Brasil já tem mecanismos para reverter recursos financeiros gerados pela comercialização de uma droga para os povos nativos. É um sonho ver a riqueza da floresta revelada para o mundo, e isso só pode ser feito em parceria [com os povos nativos]”.
No entanto, não é apenas a ciência que consegue atingir um grau avançado de sofisticação no manejo de um recurso natural. Foi o que destacou Rita Mesquita, bióloga e pesquisadora sênior do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). “A domesticação da mandioca é um exemplo da sofisticação do conhecimento tradicional. A mandioca alimenta milhões de pessoas no mundo e é uma planta originalmente venenosa. Ela foi duplamente domesticada: teve uma domesticação e depois uma reversão de domesticação para poder ser um cultivo para consumo. É o único caso que eu conheço de domesticação que foi intencionalmente revertida para um nível menor. É um processo muito sofisticado e é conhecimento tradicional”, explicou.
A pesquisadora relatou também como a ciência apenas recentemente conseguiu comprovar e descrever fatos conhecidos pelos povos nativos há séculos ou até milênios. “Nossa compreensão sobre a Amazônia está constantemente se ampliando e mudando, porque é um sistema complexo e relativamente pouco estudado. Mas nos últimos tempos, conseguimos entender a importância que as populações locais tiveram moldando a floresta que vemos hoje. Essas populações manejam e modificam a paisagem não apenas na composição de espécies, mas na própria geografia do lugar. A ciência ajudou a melhor descrever coisas que o conhecimento tradicional já sabia, mas foi preciso esse tipo de estudo para compreender a dimensão dessas interações humanas lá dentro”, disse.
Educação
Baniwa comentou como o seu povo e outros buscam se formar no sistema de ensino para ocupar cada vez mais espaço na sociedade. “Muitos acessos são fechados, temos que insistir para abri-los. Quando viajamos pelo rio e encontramos uma cachoeira enorme [no meio do caminho], temos que estudar como vamos passar, mas vamos chegar ao destino. A minha experiência na luta junto com o meu povo é isso: o acesso existe, mas não é facilitado”, contou.
Ele conta que a ideia de acessar o sistema educacional surgiu entre os Baniwa em 1984, como uma forma de serem mais ouvidos e respeitados. “Dentro da nossa comunidade, a escola não seria necessária. Sabemos manejar a nossa terra, fazer cestaria e arquitetura, andar no mato sem bússola. A bússola está na nossa cabeça. Só que quando contamos esse conhecimento para quem não é indígena, para quem tem cultura técnica e científica, a pessoa não acredita. A escolaridade é uma maneira de traduzir nosso conhecimento para vocês respeitarem. A educação é importante para conseguirmos dialogar”, explicou o líder.
Em 1987, a criação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – que representa 23 povos indígenas, sendo quatro famílias linguísticas, com mais de 700 comunidades que englobam mais de 40 mil pessoas – veio reforçar a luta para acessar esses espaços. “Hoje estamos organizados em mais de 90 associações locais para lutar pelos acessos. O povo Baniwa era o menos escolarizado na época, mas depois de anos de luta, criamos nossa escola, já temos professores formados, gente fazendo mestrado e doutorado. Este ano e o passado foram os que mais Baniwa entraram nas universidades. No ano que vem, 40 Baniwa vão fazer curso superior de agroecologia para fortalecimento do nosso sistema agrícola tradicional do Rio Negro”, contou o líder sobre as conquistas. “Espero que, com isso, possamos contribuir com o Brasil e a nossa Amazônia. Sonhamos muito que esse país possa viver bem. O bem viver é o que queremos alcançar”, concluiu.
O DNA da Amazônia
Liderando uma pesquisa de mapeamento genético da Amazônia, Oliveira descobriu que o DNA da floresta estava mais perto do que esperava. “Eu conheço meu DNA profundamente e descobri uma história não contada: a minha mitocôndria é indígena. Ou seja, a minha energia, bioquimicamente, é indígena. Eu não consegui saber de onde veio, mas é uma história que está aqui, relevada pela sequência do DNA. Tentamos descrever a biodiversidade ainda desconhecida para a ciência ocidental, porque os povos nativos conhecem a biodiversidade há milênios e fazem bom uso desse recurso.”
O trabalho do cientista consiste em identificar espécies a partir de pequenas sequências de DNA, e colocar esses dados no mundo digital. “Isso faz toda a diferença. Agora podemos fazer reanálises e comparações em milésimos de segundos. Além disso, podemos anexar essa sequência genética ao conhecimento ao redor dela, inclusive o conhecimento dos povos nativos. Mas ainda podemos ir muito além. Esta biblioteca nos permite avaliar, monitorar e conhecer novos ambientes a partir do DNA que as espécies deixam por onde passam. Nós podemos, por exemplo, pegar uma amostra de água e saber se tem pirarucu ali”, explicou.
Oliveira contou que sonha em ir mais fundo no estudo da vida na Amazônia. “Quero ver a tecnologia genômica explodir no Brasil, porque aí poderemos fazer uma coisa que ainda não foi feita no país: revelar, molecularmente, a biodiversidade. Isso pode trazer benefícios para toda a humanidade. Tem também todo o lado de conservação que o conhecimento genômico viabiliza. Hoje já temos tecnologia para fazer bom uso de todas essas descobertas, mantendo a floresta de pé e os rios correndo”. No entanto, ele pondera que “a ciência ocidental sozinha tem limites. Não podemos, em hipótese alguma, fazer essa ciência sem considerar a riqueza do conhecimento milenar que existe no país”.
Ciência é cultura
No debate de como o trabalho científico pode estar alinhado aos conhecimentos dos povos tradicionais, Mesquita observou que ambos são cultura. “Ciência também é cultura. Esquecemos que a academia também criou seu próprio código, suas próprias regras e cultura. É preciso mexer um pouco na cultura acadêmica para que ela possa ser essa ponte necessária entre os demais conhecimentos que estão vivos dentro das culturas do nosso país. Se não fizermos isso, vamos perder a chance de fazer essa união para poder encontrar as melhores formas de relacionamento com os ecossistemas”, disse.
Para a pesquisadora, que atua na Amazônia há mais de 35 anos, a chave para essa mudança na visão científica está em todos buscarem conhecer suas origens e, assim, perceberem que também são parte de culturas e processos que formaram o país. “Saber quem somos talvez seja a coisa mais importante que podemos fazer em prol da Amazônia. No nosso país somos todos indígenas, negros e europeus. Mas se você não conhece, você não tem sensibilidade, não se relaciona com o ambiente. Eu trabalho no lugar onde está a maior biodiversidade do mundo. No fim das contas, o que estamos falando é sobre o patrimônio natural e cultural que o país tem, e ele está em todos os lugares, não só na Amazônia. Os pampas têm seu patrimônio, a Mata Atlântica, a costa brasileira, e todos vêm com conhecimento tradicional empacotado junto. Então todo mundo tem a oportunidade de se conectar com esse patrimônio, conhecendo suas origens”, afirmou.
Seminário Fruturos – Amazônia do Amanhã
A programação do seminário realizado pelo Museu do Amanhã nos dias 28 e 29/05 contou com quatro painéis de discussões, seguindo as áreas narrativas da exposição Fruturos: Amazônia Milenar, Amazônia Secular, Amazônia Acelerada e Amazônias Possíveis. Este é o quarto texto produzido pela equipe do Amazoniar – iniciativa do IPAM para promover um diálogo global sobre a floresta amazônica e sua influência nas relações entre o Brasil e o mundo – como cobertura do seminário.
Confira a cobertura dos demais painéis:
Amazônia Milenar: não haverá futuro sem os conhecimentos dos povos indígenas
Amazônia Secular: comunidades amazônidas prosperam com a floresta
Amazônia Acelerada: quanto tempo temos para reverter a devastação da floresta
Por Lays Ushirobira*
*Jornalista e consultora de Comunicação no IPAM
PUBLICADO POR: IPAM AMAZÔNIA
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