Descendo o Rio Branco

The Journal of the Royal Geographical Society, 1837

Robert Hermann Schomburgk (1836/1837)  

Diário de uma subida pelo Rio Corentyne, na Guiana Britânica, em 1836. Por Robert Hermann Schomburgk. 

No período de 1835-1836, explorei o Rio Essequibo até 3°30’N, e o Rio Rupununi até 2°30’N, e me parecia importante escolher algum dos outros Rios da Guiana; com a esperança de que, seguindo a tor­rente em direção às suas nascentes, pudéssemos adentrar ao interior na direção da Serra Acaraí; e também poder, ao mesmo tempo, investigar as po­tencialidades do país vizinho de suprir as demandas de uma crescente Colônia. Portanto, de acordo com o plano apresentado à sua Excelência Sir James Carmichael Smyth, o Rio Corentyne foi escolhido para esse fim.

Rio Corentyne (Charles Barrington Brown)

O escasso conhecimento que os colonos tinham desse Rio, e os relatos daqueles que ocasionalmente visitaram as suas regiões mais baixas descrevendo sua formidável vocação para a colonização, por isso mesmo, mereciam um exame mais acurado. A fim de poder dedicar minha atenção ininterruptamente ao objetivo principal da Expedição, envolvi o Sr. Vieth como ornitólogo, o Sr. Heraut, que havia me acompanhado na Expedição anterior, como desenhista, o Tenente Losack, do 69° Regimento, e os senhores Cameron e Reiss, que se ofereceram para me acompanhar como voluntários.

02 a 18 de setembro de 1836 – Deixamos Demerara com destino ao Rio Berbice. Como o Rio Corentyne era pouco conhecido, eu sabia que era praticamente impossível conseguir um transporte direto até aquele Rio. Em Berbice fui obrigado a fretar uma escuna para nos transportar para “Plantation Skeldon”, margem Ocidental do estuário do Rio Corentyne, onde chegamos no dia 9 de setembro, e fomos recebidos com toda gentileza e hospitalidade pelo Sr. Ross. De acordo com os arranjos que eu fizera com o proprietário, o Sr. Wolff, esperava encontrar um número suficiente de índios na Plantation Mary’s-hope para incorporar à tripulação. Mary’s-hope está situada na Foz do Rio, e como eu estava ansioso para determinar sua posição geográfica, fui até lá na manhã seguinte e encontrei, para meu pesar, poucos índios, insuficientes para tripular as corials, o que atrasou minha viagem em alguns dias, durante os quais determinei posição em Latitude 6°02’15”N. e Longitude 57°01’47”W. […]

21 a 24 de setembro de 1836 – Estávamos em pleno equinócio ([1]) de outono, fiz uma série de observações meteorológicas a cada hora por quarenta e oito horas. O barômetro mostrava que estávamos a cerca de trinta metros acima do mar.

04 de outubro de 1836 – Partimos de manhã cedo rumo à cascata de Avanavero, objetivo de nossa atual expedição. A manhã estava nublada e a visibili­dade reduzida a menos de vinte metros. O termôme­tro, às 06h00, marcava 25°C para a temperatura ambiente e 27,8°C para a temperatura da água. Passamos por numerosas ilhotas rochosas estratifica­das, as camadas inclinam-se 65° rumo Sul e, apa­rentemente, são de formação trapeana ([2]). Jamais tinha visto uma crosta tão negra de óxido de manganês em camadas tão grossas sobre as rochas como aqui. […]

11 de outubro de 1836 – Fiquei bastante surpreso ao verificar que três corials tripuladas por Caribes, que não faziam parte da minha Expedição, nos seguissem à distância. No dia seguinte, não pude evitar que eles se juntassem a nós, e como eram mais numerosos adotei todas as precauções necessárias para evitar problemas. À noite nossas corials, por segurança, eram acorrentados e, durante o deslocamento a minha corial, tripulada por Warrows, ia sempre à retaguarda. Nossa Expedição acrescida destes parceiros indesejados chegava a cinquenta e oito pessoas. Eles nos acompanharam, enquanto subíamos o Corentyne por uns 20 km. Acima de Tomatai, o Rio está tomado por pedras; algumas colinas de cerca de 50 m de altura são avistadas na margem Norte. Considero que sejam um prolongamento das montanhas Twasinkie pelas quais passei, em 1835, no Rio Essequibo, praticamente no mesmo paralelo; e com caraterística geológica semelhante. […]

14 de outubro de 1836 – Nosso progresso, no dia seguinte, na direção S.S.E., foi bastante lento. As rochas e ilhas eram tão numerosas que nossos guias tinham, de ir à frente diversas vezes, para reconhe­cer a melhor passagem antes que pudéssemos nos aventurar com nossas corials. Esses rochedos gigantescos são a marca registrada mais notável, do Essequibo, mas, no Corentyne são ainda mais numerosos e de iguais dimensões. Raros tem o formato anguloso, a maioria deles é ovoide ou em forma de cúpula; todos são parcialmente revestidos com o brilho metálico do óxido de manganês. Encontramos vários blocos menores amontoados e o espaço entre eles preenchido com a mesma estranha e volumosa matéria que eu havia observado quando subi o Essequibo, e que estou muito inclinado a considerar como produto de uma fusão. O cenário é muito interessante; a profusão anárquica das rochas, a torrente, as numerosas ilhas, cada uma com sua atração peculiar; mas, a característica mais marcante é certamente a floresta de lacis ([3]). As belas plantas aquáticas em plena floração; o escapo ([4]) acastanhado claro, as flores densas, nuas, e de cor lilás, contrastam com as estéreis rochas graníticas. Muitas delas estavam florindo e sua beleza exuberante e saudável mostrava que elas estavam perfeitamente adaptadas à este ambiente tropical. […]

15 a 16 de outubro de 1836 – Passamos, na manhã seguinte, por uma pedra formidável, chamada pelos Caribe de Timehri. Ela não chama a atenção pelas suas dimensões, mas pelo grande número de gigantescos petroglifos gravados nela, um dos quais mede mais de três metros. O Rio continua repleto de rochas e ilhas, serpeando no rumo S.E. por 16 km, quando se estreita e flui diretamente para o S. por quase 24 km.

17 de outubro de 1836 – Depois de passarmos por uma curva do Rio, observamos várias colinas em ambas as margens e, mais adiante, chegamos a uma grande Bacia, cercada por colinas de 18 a 30 m de altura. O Rio precipitava-se em inúmeras corredei­ras, os flocos brancos de espuma desciam como que para nos felicitar, o ruído estrondoso das águas e a neblina que se formava sobre as colinas do Sul, abafavam nossas vozes – era um recado sutil de que aqui a natureza imperava. Precisávamos acampar, e dei as devidas ordens para montarem nossas tendas. Os Caribes me recomendaram voltar, e, informaram que embora existisse um caminho, ele só era transitável na estação chuvosa, quando o leito do Rio estava cheio e os obstáculos menores. Pareceu-me curioso ter ouvido somente agora a impraticabilidade de ultrapassar as quedas adiante de nós. Quando me neguei a seguir essas orientações, nos dois últimos dias, meus guias não haviam absolutamente mencionado quais eram esses obstáculos, e como eu havia sido, sistematicamente, alertado de maneira similar durante a minha Expedição anterior, e conseguira, com muita segurança e pertinácia, ultrapassar cada entrave apontado, eu nutria, agora, as mesmas esperanças.

18 de outubro de 1836 – De manhã nós reconhe­cemos o terreno, e, depois de puxarmos as corials por cima de um leito de pedras, cruzamos, obliqua­mente, um rápido, e logo em seguida estancamos diante de um monte de pedras, que, quando o Rio está cheio, é o berço de uma catarata, hoje apenas um pequeno filete d’água serpeava sobre a superfície irregular e enegrecida. Pareceu-me um bom local para montar acampamento considerando que este lugar permitiria que se realizasse o transporte das corials, mas minhas esperanças desmoronavam-se a cada passo sobre os enormes obstáculos de pilhas de pedras que tornavam nosso progresso mais difícil e moroso. Às vezes, deparávamo-nos com perigosos despenhadeiros em que era preciso saltar para atravessá-los ou acompanhar o fluxo por caminhos sinuosos através de penedos, e que, num passe de mágica, sumia e apenas o ruído vindo dos subterrâneos nos denunciava que continuava rolando sob nossos pés, fazendo o seu reaparecimento logo adiante, onde menos se esperava. Algumas rochas estão dispostas em prateleiras e exibem orifícios circulares parcialmente preenchidos por pedras de quartzo. Uma dessas maiores cavidades tinha 90 cm de profundidade e 25 cm de diâmetro. Muitas rochas estavam revestidas com diversas plantas; uma espécie de orquídea e agaves ([5]) eram as mais notáveis entre elas. Os aglomerados de flores amarelas brilhantes ressaltavam a beleza da primeira, enquanto o longo e esguio escapo do agave, adornado com numerosas flores, ornavam extraordinariamente, a rocha estéril. À nossa direita ouvimos o ruído fragoroso de uma catarata, onde pairava uma densa névoa, um bando de andorinhas voava através desta nuvem, subindo e descendo como se encantadas estivessem com a magnífica umidade proveniente das minúsculas gotículas. Visitamos a catarata, mais tarde, e sua magnificência superou tudo que eu tinha visto antes na Guiana. A velocidade com que a massa de água se precipita a 9 metros de altura, é que cria o spray responsável pela nuvem que havíamos observado antes. […]

23 de outubro de 1836 – Esta manhã, nós, sem muito entusiasmo, iniciamos nossa descida. Chegando a Tomatai, a Aldeia Caribe, verificamos que a maioria dos Caribes estava ausente, tinham permanecido apenas alguns deles, chefiados pelo Cacique Smith, que nos acompanharam até o posto de Oreála. Pouco depois de nossa chegada, uma grande corial [com cerca de 12 m de comprimento], com Caribes do Rio Wayombo, aportou e exibiu um salvo-conduto das autoridades em Nickierie, povoado holandês na Foz do Corentyne. Ouvimos, com grande espanto, que eles iam subir o Rio, a fim de atravessar por terra até o Essequibo, e daí seguir para as terras Macúsie, com a intenção de trocar alguns produtos por escravos. Eles, sem qualquer, pudor afirmavam que este era o seu objetivo, e nos mostraram armas e outros artigos de comércio para esse fim e, também, nos asseguraram que os Caribes do Corentyne deveriam acompanhá-los, e que o chefe, Smith, havia sido designado para esse propósito, há alguns meses, a fim de viabilizar Expedição. Nossas suspeitas foram confirmadas, e o comportamento dos nossos Caribes finalmente explicado. Como estávamos indo na mesma direção, eles acharam que nossa presença interferiria na missão deles, e todos os ardis foram usados para impedir que ultrapassássemos as cataratas. Descobrimos, também, mais tarde, que nos haviam sonegado a informação da existência de um caminho pelo qual, através de um riacho, poderíamos ter contornado as quedas e que até as grandes corails poderiam ter sido transportadas sem grandes dificuldades. Depois de refletir se deveríamos retornar às cataratas e forçá-los a nos mostrar a passagem, achei que ficara evidente, agora, mais do que nunca, que eles usariam todos os recursos para impedir que levássemos adiante nosso intento, e estando tão perto da costa, voltei a meu antigo plano de subir o Berbice. Assim, outro Rio da Guiana Britânica seria explorado, e nosso objetivo final de adentrar até a Serra Acaraí poderia ser alcançado. Embora a Expedição pelo Corentyne não tenha concluído sua Missão, o reconhecimento feito neste caudal proporcionou-nos coletar algumas informações de suma importância ‒ verificamos que suas margens são adequadas à implantação de projetos colonização, permitiu que analisássemos sua peculiar formação mineralógica e a de seus arredores e, por fim, que se constatasse a possibilidade de a Guiana possuir reservas de carvão. Aquele Rio, que era representado em todos os mapas anteriores como de pouca extensão, demostrei ser quase igual ao Essequibo, e o local onde antes assinalavam como sendo sua nascente encontrei um Rio de 823 m de largura. De fato, considerando todas as circunstâncias, concluo que os três principais Rios da Guiana Britânica provavelmente têm suas fontes na mesma cadeia de montanhas, e possivelmente, fluem de um mesmo Lago, cuja existência me foi relatada pelos índios. Infelizmente a descrição deles foi muito vaga e contraditória para merecer crédito. (SCHOMBURGK, 1837)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.05.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

SCHOMBURGK, Robert Hermann. Diário de uma Subida pelo Rio Corentyne, na Guiana Britânica, em 1836 / Diário de uma Ascensão do Rio Berbice, na Guiana Britânica, em 1836-7 ‒ Inglaterra – Londres ‒ The Journal of the Royal Geographical Society of London, Volume The Seventh, páginas 285 a 301 & 302 a 350, 1837.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   A palavra latina equinócio significa “noites iguais”, ocasião em que o dia e a noite tem a mesma duração – 12 horas. Os equinócios ocorrem nos meses de março e setembro, indicando as mudanças de estação. No mês de março, o equinócio marca o início da primavera no Hemisfério Norte e do outono no Hemisfério Sul e no mês de setembro o equinócio marca o início do outono no Hemisfério Norte e da primavera no Hemisfério Sul.

[2]   Rocha trapeana (traprock): qualquer uma das várias rochas magmaticas (rochas eruptivas) de grãos finos, densas e escuras; também chamada de “armadilha” (trapa).

[3]   Lacistemataceae: arbustos ou árvores, em geral pequenas. Família com dois gêneros, Lozania S. Mutis e Lacistema Sw., com cerca de 15 espécies encontradas nas regiões tropical e subtropical das Américas.

[4]   Escapos: caules que sustentam as flores da coroa dos aguapés.

[5]   Agave: gênero de suculentas da família Agavaceae, originárias do México, Estados Unidos, América Central e América do Sul.