Descendo o Rio Branco
Ricardo Franco de A. Serra (1780/1)
Parte II
Concluído este reconhecimento da comunicação do Rio Branco com o do Rupununi, voltamos a embarcar-nos nas canoas; e continuamos pelo Rio Mau acima até mais de 4° de Latitude Boreal, por meio de serras desde a Latitude de 3°50’, em que as cinco cadeias de montes que víamos uns por detrás de outros, olhando dos campos do Pirara para o N, aqui nos demoravam para o S; e depois de termos vencido algumas cachoeiras, chegamos a uma muita extensa, à que o gentio chama Urue-Buru, na nossa língua ‒ Cachoeira do Papagaio, donde fomos obrigados a voltar, podendo contudo, asseverar que, ainda que aquele Rio não acabe por entre a mesma serra, como nos disse o gentio prático, mas venha por aquela parte a comunicar-se com alguns dos Rios, que descem para o Oceano por domínios estranhos, tão difícil para nós a descida por meio das cachoeiras e tão fácil de se vedar qualquer introdução que por ali se queira fazer, que absolutamente não há mister mais visto do que o sítio a que chegamos para se dar por inútil qualquer comunicação, que por ele se descubra.
Aqui nos falta dizer que todas estas extensas serras são povoadas do gentio Macuxí que é o mais numeroso do Rio Branco, e menos guerreiro talvez.
Da Cachoeira voltamos à Foz do Tacutu, onde logo nos foi preciso deixar a canoa em que vínhamos, que demandava dois palmos o meio de fundo para navegar, e nos metemos em umas pequenas, nas quais mesmo fomos com grande dificuldade, por estar o Rio em poços, e a comunicação de uns a outros destes estar quase seca; e tendo ido até à ponta da serra, que dos campos do Pirara dissemos avistar para o Sul, não sendo possível navegar-se mais, assentamos em fazer a diligência da averiguação das serras e fontes do Rio Trombetas, o Urubu, de que V. Exª nos havia também encarregado, com marchas por terra desde a Fortaleza em caminho para nascente; o que deixamos reservado para ultimar as nossas diligências, sendo-nos de maior importância “ex vi” ([1]) das mesmas referidas ordens o reconhecimento das outras fontes do Rio Branco, por onde tinham clandestinamente descido para estes domínios os espanhóis da Caribana, e se iam estabelecendo pelas fontes do Rio Branco, desde o ano de 1770, até o de 1775, em por ordem de V. Exª foram represados.
No dia 10 do março nos pusemos em viagem pelo Rio Branco acima, a que os índios vizinhos chamam Urariquera, levando sempre em vista a intenção das ordens de buscar pela parte do Norte os limites naturais que hajam de servir de inalterável demarcação, e tendo deixado a Boca do pequeno Rio Parimé em 3°30’ de Latitude Boreal ([2]), e depois a do Majori, que também vem da parte do Norte, fomos subindo até o intruso estabelecimento que foi dos espanhóis de Caia-Caia o qual se acha quase neste mesmo Paralelo, e ainda sobre as campinas, que ficam fechadas da cordilheira, que por altura de 4° do Norte tínhamos observado.
E continuando águas acima, vencidas as cachoeiras repetidas do Urariquera, encontramos a Foz do Rio Uraricapará em 3°24’ de Latitude Boreal: por este Rio, a que os espanhóis davam o nome de Parimá, corremos 20 léguas em rumos do Poente, e depois de Norte, e nos achamos no outro estabelecimento, que eles também fundaram com o nome de Santa Rosa, que era a sua escala para a intrusão nas vertentes do Rio Branco, sendo a Latitude deste lugar de 3°43’12” estando ainda afastado o centro das serras, que desde o Mau vem correndo Leste-Oeste pela referida Latitude de 4° de Norte, não obstante que ela aqui remeta alguma coisa a Sul, e esta mesma serra é a que os ditos espanhóis atravessaram em um dia, quando do povo de S. Vicente descia para estas vertentes, e ao extremo dela em dois dias vinham a este lugar de Santa Rosa, ou varadouro de Adanca, como do mapa melhor se vê.
Deste sítio continuávamos ainda a viagem águas acima, na intenção de irmos reconhecer a quebra da serra, que, como dissemos, servia de porta a estes vizinhos; mas a cheia era de tal qualidade que nos impossibilitou dar mais um passo, pelas cachoeiras, que tínhamos de vencer, e assentamos fazer pelos matos a diligência que pudéssemos, para o dito conhecimento, sem embargo de nos ter ficado muito doente na Fortaleza um preto espanhol, que nos devia servir de prático, por ter vivido muitos vezes no dito sítio de Santa Rosa, e ter vindo com os espanhóis por S. Vicente, o outro embaraço foi o de ser necessário regular o mantimento para a volta, porque o bote de cinco remos, em que tínhamos mantimento para mês e meio, não se pôde varar na quinta cachoeira, a que chamam do Aningal, e nas pequenas canoas, em que continuamos todo o resto da viagem, não coube mais mantimento que para doze dias, dos quais oito eram passados, e assim tendo reconhecido este sítio, em que as serras que dele se avistam, ainda mostram a mesma direção de nascente a Poente, daqui assentamos serem as mesmas que desde o Mau vem correndo por mais de cinquenta léguas, e que, contendo desde o Pirara por sessenta léguas de extensão, fazem por si mesmas uma notável divisória, tal como se deseja na presente ocasião.
Voltando Rio abaixo a favor da enchente, em dia e meio chegamos à Foz deste Rio, entramos pelo Urariquera acima, que corre entre o Sul e Poente, e andando dois terços de légua chegamos a uma grande cachoeira de salto, e por uma alta eminência da parte do Poente subimos pelo trilho das canoas de cortiça, que por ali arrasta o gentio Perocoto, que em grande número frequenta estes Rios, mas que para nós era impraticável, ainda que pudéssemos demorar-nos, servindo-nos este pequeno desvio para descobrir estes novos embaraços da navegação naquele dito Rio Urariquera, donde continuando em descer às cachoeiras e toda a extensão do Rio, que vai até o mencionado sítio de S. João Baptista de Caya-Caya.
Incorporados já com o nosso bote maior, entramos no Rio Maracá, o qual também seguia os rumos entre Sul e o Poente, e, não obstante ser caudal de águas, vão estas tão derramadas por pedras, e cachoeiras, que de seis léguas para cima não pudemos vencer, sendo notável nele o ser ainda bordado de férteis campinas pela parte do Nascente.
Assim viemos retrocedendo até encontrar a Boca do Rio Amajarí, que do Norte desce ao Rio Branco, e cuja indagação se nos mostrou interessante, tanto por ver se descobríamos alguns pontos intermédios da cordilheira, que tínhamos visto nos extremos de Santa Rosa, e do Pirara, e Mau, como pela notícia que alcançamos de haverem os índios Erimissanos degolado sobre aquele Rio uns missionários espanhóis, que pelos sinais que eles dão, são os barbadinhos da ordem franciscana da Província de Catalunha, que se acham paroquiando no Alto Orenoco; e correndo com efeito o Rio, e passando além do sítio da matança dos Padres, em que mandamos arvorar uma cruz de pau, subimos até a altura de 3°54’, tendo andado o Rio entre o Poente e Norte, havendo nós passado 19 cachoeiras, sendo a 20ª a que achamos na mencionada altura, muito perto da cordilheira, e aliás serras que víamos à Norte, mas já desde os campos da 1ª Cachoeira Grande, que fica em Latitude 3°44’ que vem a ser a mesma altura de S. Rosa, se descobrem as serras, que vêm desde o Mau.
Deste mesmo lugar da cachoeira, em que observamos o eclipse do Sol de 23 de abril, atravessamos com caminho de Poente a nascente para a cabeceira do Parimé, que fica menos de três léguas, donde muito melhor, e sem dúvida se descobre a cadeia ou muralha de serra, que vem desde o Mau, como temos dito e se estende além de S. Rosa, muito mais para o Poente pela Latitude de 4° de Norte.
Ali soubemos que os missionários barbadinhos tinham descido pela mesma quebrada das serras, por onde vieram depois os espanhóis com mão armada, sendo impraticável a descida pelas outras partes da serra pela altura e escarpado dela, nesta jornada andamos com um velho de Nação Erimissana, por nome Apaicá, cuja habitação está quase sobre o Parimé, que tinha ajudado aquele assassinato, a que deu causa a imprudência dos tais missionários, que vieram meter-se para dentro destes domínios tão notáveis pelas vertentes dos Rios, e pelas altas serras que as separam.
O Rio Parimé não corria na sua fonte, coisa sensível, mas estava toda em poços a água, e se deve considerar aquele pequeno Rio, como um esgoto das campinas adjacentes sem que tenha nenhum Lago de verão, e muito menos cercado de altas serras por toda a circunferência, como fabulizaram tantas cartas impressas em Europa.
Depois de obtermos estas claras ideias do que nos foi ordenado, nos recolhemos para a Fortaleza de S. Joaquim para dali irmos outra vez tentar a diligência de averiguar as fontes do Rio Trombetas e Urubu, a qual só por marchas de campo se pode fazer, mas o inverno nos vinha como seguindo desde o Poente, de onde trazíamos a nossa derrota, e começaram logo tão grandes chuvas, que as campinas alagadas não permitiam as marchas de pé, para que ultimamente V.Exª nos havia prevenido com as barracas de campanha, e oleados para cobrir as caixas dos instrumentos astronômicos.
Será, contudo, muito útil praticar-se esta averiguação a todo o tempo que se puder fazer, para se reconhecer a extrema que devemos ter com os holandeses, e mesmo com os franceses de Caiena, quando se houver de tratar algum ajuste de limites com estas colônias confinantes, como também da mesma forma, e para o mesmo fim se deverão examinar as cabeceiras dos Rios Rupununi, e Anáo-au, que se diz formam as vertentes entre os sobreditos portugueses e holandeses domínios, como somente pelas notícias adquiridas se figura, ou demonstra no pequeno mapa adjunto ao total referido nesta’ participação.
É o que podemos informar a V. Exª, que Deus guarde por muitos anos. Barcelos, 19 de julho de 1781. ‒ Ricardo Franco de Almeida Serra, Capitão Engenheiro. ‒ Dr. Antonio Pires da Silva Pontes. (SERRA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Documento Oficial – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 06 – Kraus Reprint, 1844
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Ex vi: por efeito, por força.
[2] Boreal: Norte, Setentrional.
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