O Coronel de Engenharia Zauri Tiaraju Ferreira de Castro parceiro de trabalho no 6° BECmb, São Gabriel, RS, (quando eu era ainda um jovem Tenente), e ex-prefeito de Caçapava do Sul no período de 2009/2012, enviou-me outro texto de sua autoria que faço questão de compartilhar com os leitores.

O SERTANISTA  

Em meados de 1974, como já disse antes, rasgava-se em pleno coração da selva amazônica uma ligação coronária de terra e piçarra, entrecortada por várias pontes de safena feitas com madeira de lei abun­dante nas cercanias daquele risco avermelhado civiliza­damente denominado BR-174.

Vivia-se o mês de agosto ou setembro, pode ser que até outubro, não lembro bem o certo, mas já havia virado o meio do ano e luta-se como era de costume, contra a falta de tecnologia e o improviso, carência de mão-de-obra especializada, intempéries e desregramen­tos do clima da região, cerca de uns 150Km ao Sul da linha imaginária do Equador. Nós, os Tenentes, jovens oficiais do 6° Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, Mão Amiga e Braço Forte, de que tanto a Amazônia inexplorada e não ocupada precisava naqueles tempos de pioneirismo, reagíamos, contra as ordens gélidas emanadas da sede, em Boa Vista, que nos impunham procedimentos técnicos quase que irrealizáveis.

Isso dificultava a execução e predispunha nossas vontades negativamente. Por mais que se fizesse nunca estava bom. Mas, lutávamos. Aos trancos e solavancos a estrada caminhava, experimentando atalhos compen­sadores e premiando em si mesma a criatividade dos funcionários civis e militares batalhadores, bandeirantes do século XX. Cumpria-se com um pouco de atraso o Plano de Trabalho – PT do Batalhão para aquele ano, fruto de convênio assinado pelo Departamento de Engenharia de Construção do Exército com o Governo Federal representado pelo então DNER. No conjunto heterogêneo da obra como um todo, exteriorizava-se um belo complexo de integração que permitia ocupar as fronteiras mais Setentrionais do País, levando ao povo quase desconhecido do território de Roraima, por terra, um pouco mais de desenvolvimento econômico e brasilidade. No detalhe do dia-a-dia do serviço na selva desconhecida, o cômico, o trágico e o pitoresco se misturavam e se confundiam. Essas pequenas estórias formam um grande mosaico de lembranças, perpetuadas como saudável recordação para quantos tantos fizeram parte, na condição de protagonista ou de coadjuvantes, dos seus meandros espetaculares.

É dentro deste contesto que conheci alguns sertanistas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI ), abnegados ermitões daqueles matos repletos de onças, índios, malárias e dificuldades sem fim. Entenda-se por sertanista, neste caso, toda pessoa que conhece, explora ou percorre os grotões. Aventura-se penetrá-lo em busca de caças, riqueza fácil ou para cumprir obrigação funcional de amansar índio arredio, selvagem. O nosso personagem deste causo verídico, difere um pouco em seus aspectos básicos em relação ao conceito acima transcrito, mais tradicional.

Trata-se de um habitante da margem esquerda do Rio Abonarí, afluente do Uatumã, que é cortado pela BR-174, no estado do Amazonas, cerca de 240 Km ao Norte de Manaus. Nesse confim de mundo, em pleno coração da floresta equatorial inóspita e pouco conheci­da, em 1974, instalado em grosseira construção de madeira habitada por cinco pessoas índias, aculturadas, não oriundas do lugar, chefiava o Posto de atração Abonari, da FUNAI. Sua missão era manter contato civilizatório com os índios da tribo Waimiri-Atroari. Essa relação já durava 12 anos num puxa e frouxa de intensidade intercalada por incidentes e acidentes dos mais diversos.

Fora essa tribo de conhecida agressividade e de um desenvolvimento cultural da idade da pedra que, em 1968, na mesma região, massacrara a expedição indigenista chefiada por um padre italiano de nome Caleri em circunstâncias não bem esclarecidas da qual resultou apenas um sobrevivente, Paulo Mineiro, que escapou navegando numa balsa rústica por cerca de 13 dias até Manaus. Com a construção da “Estrada da Integração”, Manaus-Boa Vista, os contatos foram nova­mente intensificados com trocas de presentes, visitas recíprocas, caçadas e pescarias conjuntas, inevitáveis, já que o traçado da rodovia cortava o território dos índios, inclusive a menos de mil metros de algumas malocas.

Nosso Sertanista, um sulista gaúcho de Cachoeira do Sul, de nome de guerra Machado, alistou-se volunta­riamente para a função em Brasília e após curto estágio no Parque Nacional do Xingu, Com os Xavante, foi destacado para o posto a que nos referimos meio sem pai e nem mãe, naquele cafundó.

Adaptou-se rapidamente, convivendo com seus cinco comparsas, funcionários da FUNAI, todos indígenas aculturados de outras tribos e acabou se integrando ao contexto da aventura amazônica. Caçava, pescava, comia farinha grossa de macaxeira que abundava na região, escrevia muitas cartas, ouvia rádio, inclusive o oficial com o qual se comunicava com sua chefia em Manaus. Seu meio de locomoção era o barco a motor ou caroneando ao longo das nossas frentes de serviço daquele trecho e cujo acampamento principal, ao qual eu pertencia na condição de chefe administrativo, ficava há 6 Km pela selva do posto onde vivia o Machado.

Possuíamos um efetivo de mais de 400 homens, sendo sete oficiais, uns 70 militares e cerca de 300 contratados civis de toda parte do Brasil, com a maciça predominância dos maranhenses. Nossas equipes se espalhavam por mais de 50 Km. A mais avançada era a de desmatamento, cujo desempenho de cinco tratores D8 rendia em torno de um quilômetro por dia, trabalhado em tempo de seca. No inverno, quando o tempo era chuvoso, os trabalhos eram paralisados totalmente.

No final de dezembro de 1975, 27 índios armados aportaram suas canoas em visita ao posto do Abonari. Pernoitaram, alguns caçaram jacaré e paca à noite junto com o pessoal da FUNAI. Uns 8 deles visitaram o nosso acampamento sede durante um final de tarde, quando só existia uma reduzida guarnição de serviço constituída por uns 10 homens a qual eu comandava, tendo chegado de surpresa, desacompanhados de civilizados. O grosso do efetivo encontrava-se na dispensa de final de ano, civis e militares.

No outro dia, pela manhã, percorremos a pedido da FUNAI, um trecho de uns 30 Km da estrada já pronta na carroceria de um caminhão, eu dois soldados e os índios. Como não falavam e nem entendiam nossa língua, não obtive sucesso na missão que me foi confiada pelo major Bonilha, Engenheiro de Boa Vista, para con­vencê-los de que somente a estrada era nossa, a mata continuava deles, sem limitações para movimentação, sobrevivência, caça, pesca etc.

No terceiro dia, cedinho, quando preparavam as canoas para partir, desfecharam o ataque já planejado contra os homens da FUNAI que os recepcionaram no posto. Quatro dele foram mortos a flechadas e a golpes de terçado, fugindo em debandada para o interior da floresta, talvez em defesa do seu território invadido pelos brancos que tentavam abrir uma estrada para lhes per­turbar a paz e poluir o seu habitat com as consequências do progresso incompreendido e invasivo.

Sobrou um para contar a história, escapando com vida pela ousadia de um mergulho apavorado e mais 60 metros de nado nas águas do rio selvagem.

Auxiliei no resgate dos corpos e senti a grande emoção de entrar na floresta a pé, armado para a guerra com uma metralhadora INA embalada, sem saber do inimigo que não enxergava. Morreu nesse episódio o Sertanista Gilberto Pinto da regional de Manaus que viera em socorro ao posto, momentaneamente sem chefe. Foi atravessado por duas flechas de ponta de aço pelas costas. Coube a mim a missão de cortar suas hastes de bambu, já que as lâminas de aço bem afiadas só foram extraídas na realização da necropsia.

Carregamos os corpos em uma balsa de circunstância que fabricamos no local, utilizando dois ubás esquecidos pelos índios que levaram as canoas da FUNAI, unidos por duas portas que arrancamos da casa depredada. Nosso sertanista Machado que se encontrava em férias no Rio Grande, retornou ao posto convocado por um telefonema da sua direção que lhe interrompia as férias depois da tragédia. Honrado e envaidecido agradeceu a Deus por lhe haver permitido viver mais algum tempo. Entendia que já fizera a sua parte em prol da integração e do desenvolvimento da Amazônia. Pediu as contas e foi-se embora, abandonando o plano de ser um novo Villas Boas.

Naqueles 14 meses em que servi por lá, houve diversos massacres, vitimando 12 funcionários da FUNAI e alguns índios em menor número. Até hoje, passados mais de 30 anos, ainda sonho com operações daquele tipo, tal foi o sentimento de insegurança em que vivemos esse arremedo de guerra de guerrilha na selva.

Enquanto isso, o tempo passa e eu cada vez mais me dou conta que o velho amigo Machado que depois virou funcionário da CEEE, naquele final de 1975, entrou na fila da vida ou, saiu da fila da morte. O serviço da estrada parou por cerca de seis meses, porquanto se discutiam nos gabinetes a solução para a segurança da continuidade das obras. Os Atroari hoje vivem acultura­dos na beira da estrada, esperando na fila da evolução que o seu mundo se transforme para o bem e aqueles que lá pereceram a certeza de que já foram esquecidos e de que, como é comum nesse nosso país gigante, ninguém sabe que muitos morreram e sofreram pelo desbravamento desse naco de Brasil rico, imenso e poderoso.

Quando rememoro essas passagens, sinto uma imensa alegria interior e o orgulho de ter podido participar de uma grande luta anônima pelo início do desenvolvimento da Amazônia e de seu povo sofrido e pacífico. Foi por esse motivo, para poder vivenciar essas aventuras que escolhi a Arma de Engenharia através da qual conheci e vivi na Amazônia Brasileira por cerca de 4 anos, abrindo picadas para o desenvolvimento e a integração nacional de fato. Ainda carrego no fígado as marcas de uma malária “falcíparum”, curada na distância de São Gabriel, recebendo cloroquina e primaquina pelo correio. Lá de vez em quando, ela me relembra que ainda sou hospedeiro e que por isso estou proibido de doar meu sangue.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 07.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].