O Coronel de Engenharia Zauri Tiaraju Ferreira de Castro parceiro de trabalho no 6° BECmb, São Gabriel, RS, (quando eu era ainda um jovem Tenente), e ex-prefeito de Caçapava do Sul no período de 2009/2012, enviou-me um texto de sua autoria que faço questão de compartilhar com os leitores.

SETENTRIÃO NACIONAL   

Em maio de 1974 desembarquei em Roraima, um dos quatro Territórios Nacionais, que ainda não detinha o status administrativo de Estado da Federação junto com o Acre, Rondônia e Amapá.

Boa Vista era uma cidade planejada com avenidas largas, asfaltadas, com muitos espaços vazios e um monumento majestoso ao garimpeiro localizado bem no centro do traçado urbano, defronte à Catedral e ao Palácio do Governo.

Não havia ligação terrestre com o restante do País e ganhavam importância a navegação fluvial que chegava pelas águas do Rio Branco na época das cheias e o transporte aéreo feito pela FAB, o oficial, e o privado pela VARIG e Transbrasil.

Sua população era predominantemente de caboclos da região, nordestinos remanescentes dos garimpos e alguns sulistas atraídos pela presença do Campus da UFSM que fora instalado ali e fazia esse intercâmbio permanente.

No quartel de engenharia (6° Batalhão de Engenharia de Construção) que tinha a missão da abertura pioneira da BR-174 havia gente de todo o Brasil. Anualmente, incorporava jovens da terra para o serviço militar. Haviam os índios Macuxís vindos do Norte, fronteira com as Guianas e Venezuela. Ao Sul, na divisa com o Amazonas era a terra dos outros grupos Yanomanis, não totalmente aculturados como os do Norte, administrados pela FUNAI e diversas missões do Conselho Indigenista Missionário que abrigavam um número significativo de padres e religiosos estrangeiros, inclusive europeus.

Entre os soldados recrutas, havia um número de cerca de 30% de índios aculturados. Apresentavam um comportamento discretíssimo, sendo difícil arrancar deles uma reação mais positiva sobre qualquer tema diferente. Quando comandei uma companhia encarrega­da de manter o tráfego da estrada ainda não pavimenta­da de Boa Vista até o BV 8, para o transporte de madeira para a Venezuela, implantei uma horta para ajudar no rancho do pessoal, onde trabalhavam três soldados ín­dios. Numa das minhas andanças para ver as verduras encontrei diversas melancias ainda no baraço identifica­das com a minha rubrica, imitadas pelos bugres. Serviam ao Exército e retornavam às suas malocas de origem para manter o apoio da FUNAI e continuar na vidinha sossegada que levavam desde que nasceram. À sombra dos mangueirais frondosos e seculares.

Nesse tempo, também não havia satélite retransmissor para as TV da cidade. As novelas chegavam por malote em fita cassete. Quando se extraviava o malote por qualquer motivo fortuito, lá se ia um pedaço da novela.

Quando o atoleiro era grande ou o serviço de manutenção ou recuperação de pontilhão ou bueiro era mais demorado, o pessoal acampava em alguma fazendola a beira da estrada. Normalmente, o pagamento do aluguel da instalação era o fornecimento de alguns litros de combustível para alimentar as lamparinas dos moradores, sem luz elétrica. Na cidade, a energia era fornecida por uma usina termo – elétrica que comia um horror de diesel e por isso mesmo era bem cara.

Numa visita a um desses acampamentos, conheci um galpão das tralhas com um girau construído com as placas de sinalização de latão arrancadas da estrada e que tanto trabalho nos traziam para serem repostas. Mandei que o encarregado, quando terminasse o serviço, agradecesse pela hospitalidade e desmontasse o paiol, carregando as nossas placas tomadas por empréstimo sem autorização e que fornecesse um pouco mais de óleo diesel para o lampião da casa.

Houve uma emergência para o concerto de uma ponte de madeira na Perimetral Norte, trecho semicon­cluído que na altura de Caracaraí, às margens do Rio Branco, 200 Km para o Leste e outro tanto para o Oeste, servia aos índios e moradores locais. Na hora de formar a equipe me apareceu o Roberval, cearense, motorista de caminhão que justificava sua voluntariedade na opor­tunidade que via de “pegar” uma indiazinha daquelas para ver se era mesmo verdade tudo aquilo que conta­vam. No primeiro final de semana no trecho, os índios que já utilizavam espingarda fornecidas pela FUNAI lhe convidaram para caçar catitu. Arrependeu-se de ter nascido.

Foi escalado para transportar o primeiro porco abatido, de uns quarenta quilos, nas costas, com dois rasgos laterais na barrigueira enfiado nos dois braços, como se mochila fosse. Quase morreu, correndo pelo mato com aquela bruta carga nas costas, com medo de se perder atrás daqueles

Outro incidente não comum foi quando resolvi convidar alguns civis “casados” para participarem da reunião mensal que fazíamos para confraternizar entre oficiais, sargentos e alguns empresários locais e suas famílias. Me apareceu um funcionário de nome Roberto, discreto, boa gente, bem apessoado, acompanhado por uma senhora com idade para ser sua mãe. No outro dia perguntei ao meu motorista Costa, um civil veterano de Boa Vista, muito discreto e muito bem informado pelos seus mais de vinte anos de batalhão qual o significado daquela união um tanto quanto disparatada para a região. Respondeu que aquela parceria era uma estratégia do Roberto que andava querendo mesmo era pegar a filha da velha…

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.04.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].