O Ministério Público Federal (MPF) participou de audiência promovida pelo ouvidor agrário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Mairton Carneiro, que preside a Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem, para tratar do conflito territorial entre a empresa Brasil BioFuels (BBF) e comunidades indígenas e quilombolas que foram cercadas por fazendas da empresa nos municípios de Tomé-Açu e Acará, no nordeste do estado.

Fotos: Helena Palmquist/MPF

Durante a reunião, o procurador da República Felipe Moura Palha destacou o que considera a origem dos conflitos atuais: a Terra Indígena Turé Mariquita está estrangulada por plantações da empresa, sem uma zona de amortecimento que deveria existir de pelo menos dez quilômetros de distância entre os cultivos e a área indígena. Não houve licenciamento ambiental da atividade da BBF e o povo Tembé sofre graves impactos ambientais que não foram avaliados em um estudo de impacto ambiental.

A mesma situação aflige duas comunidades quilombolas, também cercadas por plantações de dendê: a comunidade Alto Acará e a Nova Betel. Tanto no caso da Terra Indígena Turé Mariquita quanto das comunidades quilombolas, há ainda áreas compradas pela empresa que são, na verdade, território reivindicado por quilombolas e indígenas. A exploração da monocultura de dendê antes era da empresa Biopalma, que mantinha acordos de compensação com essas comunidades. Mas, ao comprar as terras e as plantações em 2020, a BBF rompeu unilateralmente esses acordos.

Origem dos conflitos – Para o MPF, deveria ter sido feito um Estudo de Impacto Ambiental e um Estudo de Componente Indígena específicos para equacionar esses impactos e garantir compensação e mitigação para as comunidades. “A falha do estado do Pará no licenciamento da atividade econômica está na gênese dos conflitos. Nunca houve consulta prévia, livre e informada e não existe diálogo de boa fé sem isso, nem sem os estudos de impactos”, disse o procurador da República Felipe de Moura Palha. Ele lembrou ainda que a Turé Mariquita é a menor Terra Indígena do país e que algumas fazendas da BBF estão sobrepostas à área de ampliação do território, que está em estudo na Fundação Nacional do Índio (Funai).

Também participaram da audiência no fórum de Tomé-Açu representantes da empresa, da Defensoria Pública do Estado (DPE), do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e das comunidades indígenas. A defensora pública Andreia Barreto, representando as comunidades quilombolas do Alto Acará e Nova Betel, lembrou que, além do conflito fundiário, tanto quilombolas quanto indígenas sofrem com a poluição da água e a contaminação dos solos provocados pela monocultura de dendê.

“A fazenda Campos Belo é uma área quilombola e a proposição para equacionar o conflito é que se avance na regularização fundiária e que se paralise a criminalização de lideranças”, disse a defensora. O Incra confirmou a sobreposição e que o processo de regularização começou em 2014, mas está paralisado por falta de recursos orçamentários.

Territórios ancestrais – A promotora Ione Nakamura, da promotoria agrária, lembrou do processo histórico de expulsão das populações tradicionais de suas áreas de origem na região nordeste do Pará pelo avanço das empresas de agropecuária e reforçou que a origem do conflito está na reivindicação do direito aos territórios ancestrais, ocupado por empresas como a BBF. Ela também lembrou que o Pará é recordista em violência no campo e também se disse preocupada com a estratégia da empresa de criminalizar as lideranças que reivindicam esses direitos.

“Os conflitos passaram a aumentar depois que a empresa instalou uma segurança patrimonial ostensiva que vem criando obstáculos ao tráfego dos moradores. Foram cavadas valas, criadas barreiras físicas, impedindo o direito de ir e vir das comunidades”, disse. Ela também questionou o escoamento de resíduos da atividade de extração de dendê, contaminando rios e igarapés que são fonte de água e alimentos para a região. “A segurança alimentar também é ameaçada pelo domínio da monocultura de dendê na região, que leva muitos agricultores a deixarem seus cultivos alimentares tradicionais, como feijão ou mandioca, para venderem dendê para a empresa. É necessária uma política pública de segurança alimentar”, disse.

500 ocorrências – Um dos principais problemas apontados pelas autoridades presentes foi a existência de mais de 500 boletins de ocorrência registrados pela empresa contra os comunitários. “Não é nova a prática de multiplicar os registros de ocorrências policiais em meio a um conflito territorial. A empresa tem que entender que o fato de ter registrado mais de 500 ocorrências contra indígenas, quilombolas e outros moradores da região não ajuda na solução do conflito, na verdade piora a situação”, disse o procurador da República Felipe de Moura Palha.

“Criminalizar as lideranças tem piorado o conflito com as comunidades. Já houve três execuções e nós temos três lideranças pedindo proteção nos programas de proteção estatais por se sentirem ameaçados. A segurança patrimonial da empresa faz bloqueios sistemáticos nas estradas e nos pontos de passagem usados pelos comunitários, violando o direito fundamental de ir e vir dos moradores”, disse a defensora pública Andreia Barreto.

Competência federal – Para o MPF, as comunidades são a parte vulnerável do conflito e seus direitos precisam ser protegidos pelo poder Judiciário. É entendimento do MPF que o tema é de competência da Justiça Federal, não da Justiça Estadual, por se tratar de conflito envolvendo comunidades indígenas.

Representantes das associações indígenas de Tomé Açu não puderam chegar a tempo por conta das fortes chuvas, mas as lideranças foram representadas pelos seus advogados. O advogado Jorge Tembé, que é membro do povo indígena, disse que as lideranças aceitam fazer conciliação perante a Justiça Federal. E pediu que, da próxima vez que forem chamadas pelo poder Judiciário, que isso seja feito por meio de convite e com antecedência à data da audiência, e não por meio de notificação judicial e apenas dois dias antes da data da audiência, como ocorreu no evento do dia 1º de abril.

Novos bandeirantes – “As comunidades não podem se sentir tolhidas e constrangidas nesse tipo de negociação, são eles que bebem a água contaminada e são eles que sentem o conflito, literalmente na pele, já que muitos estão doentes pela poluição trazida pela BBF”, disse Jorge Tembé. O advogado Jordano Falsoni, também representante dos indígenas, falou que hoje a Turé Mariquita é uma terra indígena cercada de dendê por todos os lados, com grandes danos para os moradores.

Ele acusou a empresa de usar perfis falsos em redes sociais para espalhar fake news contra o líder indígena Paratê Tembé e disse que a escalada do conflito é de responsabilidade da empresa, por ter rompido unilateralmente o acordo de compensação que havia com a Biopalma e deixado de pagar pelos danos causados à comunidade. “A BBF vem de São Paulo mas não pode agir como se fossem os novos bandeirantes”, alertou.

O desembargador Mairton Carneiro, que promoveu a audiência de conciliação a pedido da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) e da BBF, criticou a inércia do Incra para concluir a demarcação da área quilombola e lembrou que, por ordem do STF, nenhuma reintegração de posse poderá ser cumprida. O desembargador cobrou que a polícia civil investigue as ocorrências feitas pela empresa e a promotora Ione Nakamura lembrou que a empresa também é acusada de crimes que merecem investigação. O gerente jurídico da BBF, Otávio de Oliveira, agradeceu o ouvidor agrário estadual por ter atendido o pedido feito pela BBF.

Ministério Público Federal no Pará   –    MPF
Assessoria de Comunicação

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