EPOPEIA ACREANA
O Herói Plácido de Castro – II
Valeu-lhe, sobretudo, para o êxito do seu plano, o ascendente moral que mantinha sobre o pessoal que o servia, seringueiros que vinham das fileiras do seu exército, afeitos à obediência passiva, autômatos à sua vontade indiscutível, ativos e sóbrios, esquecidos já das larguezas ociosas e da prodigalidade esbanjadora de outros tempos. Na organização da sua freguesia, o seu “regimen” continuava opressivo como fora na campanha; o freguês dizia-se livre, mas a sua liberdade era como um favor, uma concessão protetora ao trabalho, à docilidade, ao seu bom comportamento. O crédito, que no Acre fora um desvario e um atentado à probidade, não o tinha ele além do que pudesse produzir; o tempo, tinha-o contado; as horas aproveitadas para os misteres da agricultura, a que estava obrigado, nas folgas que lhe deixava a exploração da borracha; a economia condição obrigatória, regulada pelo crédito e pela fiscalização. Além disto, estava sujeito a um regulamento rígido, medindo-lhe os atos, quer nas relações comerciais e industriais como freguês e arrendatário, que era de estradas gomeiras, quer nas particulares, como subordinado, sujeito ao serviço das armas, se tanto exigisse a defesa da casa, cheio de obrigações e tributado de multas.
Sistema colonial de administrar, profícuo e razoável nos meios de origem, e a seu tempo, mas irritante e insuportável como adaptação. Só a sua influência, servida pela férrea vontade de que dispunha, conseguiu impô-lo, com resultados pecuniários, mas indizíveis sacrifícios morais.
De resto, como a disciplina, a economia que ele lhe impunha, condição precípua para a ordem e para a independência, era a mesma que ele cultuava, exemplificando rigorosamente, mas naturalmente, porque lhe era peculiar; simples e parco, de uma frugalidade e de uma parcimônia ingênitas, exercia-a com certo requinte ostensivo, dando-lhe uns laivos de tacanhismo ([1]) que era, naquela terra de viciados e esbanjadores, como uma forma exótica de miséria, incompatível com a abundância do meio. Não tinha vícios; detestava o álcool como o tabaco, o jogo como a indolência, e como lhe sobravam as amarguras da vida, amenizava-as com as doçuras da pastelaria, de que abusava sempre. Era um adepto fervoroso da temperança, praticante e propagandista, obrigando-a, quanto possível, entre o seu pessoal.
E por mais que isto pareça odioso, essa imposição de sovinagem ([2]), revelava, entretanto, um interesse justo e nobre em favor do freguês, quase sempre humilde campônio ([3]), produto atávico de uma degradação secular, emigrado da fome e da subserviência, ignorante e explorável, de quem as liberalidades do meio, em flagrante contraste com a miséria nativa, tinham feito um perdulário e um voluntarioso. Além desses fatores, que tanto concorreram para a decantada fortuna de Plácido, outros, de ordem natural, vinham-lhe ao encontro da ambição com que sabia utilizá-los, e que, até então, eram descurados ou inexequíveis ali. As suas explorações de seringais na fronteira, forneceram-lhe dois, de máxima importância: o comércio do gado boliviano e a exportação da borracha, em trânsito.
Nelas ficaram encravados, como oásis de luz em desertos de sombra, enormes campos naturais enriquecidos de abundante pastagem e de águas salubres, açoitados por um vento constante, suavizando–lhe os calores do Sol tropical, dando aquela zona, imensa clareira perdida entre florestas e pântanos, um aspecto ridente de extensas savanas, lembrando onduladas campinas do Sul, ou altos sertões do Norte, na quadra luxuriante do inverno. Propícios à indústria da pecuária, e onde o clima, ameno e seco, tinha a influência salutar e vivificadora que oferece do Ceará, ali Plácido, com o amor e o cuidado que votava à lavoura e à indústria pastoril, que foram o seu enlevo na terra do berço, fundara os rudimentos de fazendas de criação, que serviam ao mesmo tempo de sanatório às vítimas das sezões e de outras moléstias da região.
E foi ali, já no recolhimento da paz, que Plácido, esquecido das agruras da guerra, na nostalgia dos pagos nativos, no amanho ([4]) carinhoso dos seus campos, expandiu toda a sua alma de gaúcho, repousando o olhar saudoso na verde ondulação daquela planície sem fim, aberta ao Sol e ao vento, e nas noites de verão, à luz das estrelas que velavam no céu, na contemplação satisfeita dos rebanhos que dormiam na terra. O comércio de gado com o Brasil fazia-se dificilmente, e parcamente, por via fluvial, em viagens demoradas, subindo o Purus, a bordo de vapores impróprios; e com a Bolívia, iniciado quando o Acre lhe fora entregue, quase nulo então, era feito morosamente e dispendiosamente, atravessando matas e alagadiços, por veredas intransitáveis e Rios profundos, à mercê de perigos sem conta, numa travessia de três meses, tão cansadiça como onerosa.
O gado era, pois, muito raro no Acre, onde não se obtinha um boi por menos de um conto de réis, preço que embora pareça exorbitante, não compensava, às vezes, os prejuízos que acarretava o transporte das boiadas, reduzidas que eram, sempre dizimadas pelos transvios e acidentes da viagem. Plácido, que tudo provia, procurando remover obstáculos que a outros pareceriam insuperáveis, desde logo abriu um varadouro, que partindo de “Capatará”, na margem do Acre, pelo Rapirran, atravessou os campos do “Gavião”; indo à Santa Rosa, no Rio Abunã, e daí, cortando o “Corichon–Vial” alcançou “Palestina”, no Rio Orton, já em comunicação com “Maraviçha” centro de imensas fazendas de criação, no Madre de Dios, que deságua no Rio Madeira. Estava, portanto, resolvido o problema de alimentação no Acre; a introdução do gado boliviano, tão desejado de há muito tornara-se fácil e cômoda, e nos campos de “Capatará”, único Seringal da zona que os tinha naturais, havia logradouro para milhares de reses.
Desde logo, com o crédito de que dispunha, que mesmo na Bolívia o tinha ele como ninguém, entabulou negociações com diversas firmas bolivianas, entre as quais a mais rica e conceituada delas, “Suarez y Hérmanos”, e começou a receber numerosas manadas de gado bovino e muar, que lhe chegavam a preço reduzido; internando-as nas suas fazendas, onde se refaziam, revendia-as depois, parcialmente, com lucro, nunca inferior, de cento por cento. Uma rês que custara dantes um conto de réis, ficara valendo menos da metade, ou seja quatrocentos mil réis, e já se a obtinha em qualquer quantidade. Assim beneficiava ele a população, facilitando-lhe alimentação sadia e barata, e usufruía, além do proveito pecuniário, o bem estar que lhe permitia a abundância de carne saudável, para o gasto de sua casa e fornecimento da freguesia e a fartura que tinha dos frescos laticínios.
Quanto à exportação da borracha, em trânsito, fácil é compreender as vantagens que dela lhe advieram, sabendo-se que a produção dos seus seringais era quase toda boliviana, e como tal pagava somente 12% de imposto àquele país, quando a brasileira, que tinha pouca, estava sujeita a 23%, tributo excessivo, consumindo quase um quarto do seu valor. Muita acusação se há feito a Plácido de Castro pelos dinheiros da revolução, provenientes da borracha tomada por ele à Bolívia, e das indenizações pagas pelo Governo Federal. Não posso precisar a quanto montaram esses recebimentos, mas o que é verdade, é que deles nunca dispôs a seu livre arbítrio, pois desde a criação do Governo Revolucionário, por Decreto de 26.01.1903, ficaram os negócios pecuniários da República, afetos ao Ministério da Fazenda, pasta que sempre ocupou o Coronel Rodrigo de Carvalho, ficando as outras duas, da Guerra e da Justiça, a cargo dele, Governador aclamado, Coronel Plácido de Castro.
Em Manaus foi nomeado um encarregado financeiro, que tinha sob a sua guarda os dinheiros pertencentes à revolução, efetuava compras e pagamentos por ordem superior, o sr. Domingos Queiroz, que, diga-se de passagem, exercia essa incumbência com máxima lisura e sem a menor remuneração. As despesas da campanha foram enormes, mesmo após a rendição boliviana, não só com a mobilização das tropas, no Acre, como durante o interregno do “modus vivendi”. Muito se despendeu com a viagem que Plácido foi obrigado a fazer, nesse tempo, ao Rio de Janeiro, com cerca de 50 oficiais do seu exército, quando o General Olympio da Silveira invadiu indebitamente o Acre Meridional, em maio de 1903. Vivi em estreita comunhão com ele e esses oficiais, quando dali regressaram, e sei quanto custou essa viagem triunfal, que, aliás, lhe não compensou dos desgostos sofridos anteriormente.
Diversas comissões foram enviadas ao Rio, antes e depois dela, afim de tratar com o Governo Federal dos interesses dos acreanos em armas, as quais eram dispendiosíssimas, havendo algumas que custaram cerca de cem contos de réis. Se houve desvios, que só podiam ser efetuados de conivência com outros, até agora não se lhe tem feito carga deles com documentação que mereça fé, mas com acusações infundadas e medrosas, filhas da inveja falaz e da raiva impotente, senão da ingratidão que na calúnia se justifica, e do mesquinho despeito que se abriga na difamação. É sabido que no remate das contas da revolução, havia em cofre uma certa importância que foi equitativamente dividida com aqueles que maiores serviços prestaram à campanha; é justo e humano que, daqueles que não foram contemplados na partilha, alguns, mais levianos, fizessem acusações a Plácido; que, porém, os aquinhoados, os secundassem, fazendo coro com a maledicência despeitada, é o que há de mais revoltante em matéria de ingratidão e vileza.
Plácido, que tanto se impôs à admiração dos seus contemporâneos, pelo seu gênio guerreiro, nem sempre foi um revoltoso, um desses caudilhos turbulentos e agressivos, de arma engatilhada por qualquer motivo, como geralmente se supõe; era, ao contrário, um espírito calmo mas altivo, de ânimo sempre pronto a repelir qualquer ofensa, suscetível e insubmisso, revoltado contra os abusos da autoridade, e a prepotência legal, que lhe feriam a vaidade e os pundonores de chefe exclusivo e autocrata que fora daquela terra. Sabia acatar o poder, mas que esse lhe não fosse abalar o prestígio, chocando-se com a autoridade moral que exercia no Acre. Amando a luta, que nela se afizera desde mui jovem, e tendo por ela irresistível pendor, sabia, entretanto, evitá-la, quando se lhe afigurava improfícua, zelando assim a responsabilidade do seu nome e prevenindo, porventura, o fracasso das glórias adquiridas. Para isto empregava todo o seu estorço, desde a cabala à surdina, à propaganda pública; do argumento convincente à súplica comovente, em nome dos altos interesses da pátria, junto àqueles que a exigiam. Disto deu cabal prova no Congresso de Bagé, em maio de 1906, quando, numa assembleia tumultuária, de representantes de todos os Seringais do Acre, se propôs a revolta do Departamento em represália ao descaso do Governo Federal às exigências do Território. A esse tempo, com a morte do Coronel Pedro Braga, ocorrida a 5 de março desse ano [1906], entrara em liquidação a firma de que faziam parte ele e o Coronel João Rôla; Plácido comerciava, pois, por sua conta exclusiva, e, embora, como político, o seu prestígio estivesse abalado com a surda guerra que lhe moviam os prefeitos, comercialmente, o seu conceito crescera, e era a ele ainda, que tantos interesses tinha agora na região, a quem se recorria nos momentos difíceis para a vida econômica e social do Departamento
Venceram as suas razões, ponderadas e oriundas que eram de quem as sabia emitir e sustentar; e o Acre, sempre ludibriado, contemporizou ainda uma vez com as decepções que lhe infligia o governo, para dentro de dois anos apenas, com o assassinato que já lhe tramavam, ficar privado do seu maior defensor. Eis aí, em pálido bosquejo, a personalidade extraordinária desse insigne patriota, a quem já hoje, que nem sempre ela é tardia, fazem justiça os seus próprios inimigos, O Acre presta-lhe agora as mais subidas e sinceras homenagens, como o seu libertador que foi, o seu reformador, o palinuro ([5]) que o guiou à conquista da liberdade e do progresso; e como o momento é de reparação, justo é que se diga também, fazendo-lhe ainda justiça, que ele não foi o fundador do Estado Independente do Acre, cujo advento tivera lugar três anos antes, proclamado a 14.07.1899, por Luiz Galvez Rodrigues de Árias, mas o seu restaurador a 06.08.1902 com o início da revolução que triunfou a 24.01.1903. […]
E, por último, quem foi tão ativo e econômico, e simples e sóbrio, e resistente e pertinaz, e ousado e previdente; tão ambicioso para adquirir como quase avarento para guardar; quem soube aproveitar todas as circunstâncias favoráveis e vencer todos os obstáculos para chegar ao seu fim, numa terra onde outros, sem tais elementos, chegaram a ricos, estaria fora das previsões humanas e das leis naturais que regem o destino das coisas, se não conseguisse fazer razoável fortuna dentro de um longo lustro, próspero e fecundo, talvez o mais próspero para a Amazônia e o mais fecundo para o Brasil. Plácido de Castro, com toda a probidade que eu lhe proclamo, não estaria logicamente dentro do que é natural e humano, se tivesse morrido na pobreza, que nem a sua fortuna foi tal que o indenizasse do demasiado que fez para consegui-la.
Soares Bulcão. (JAP, N° 305)
Panteão da Pátria e da Liberdade
Demorou mais de um século para o Brasil fazer, finalmente, justiça a um dos seus mais bravos heróis. Plácido de Castro – o Libertador do Acre, foi entronizado no Panteão da Pátria e da Liberdade e teve seu nome escrito no Livro dos Heróis da Pátria como o mais novo herói brasileiro. O Panteão, construído entre 1985 e 1986, idealizado como um espaço para homenagear os heróis nacionais, está localizado no subsolo da Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Atos do Poder Legislativo
Lei N° 10.444, de 02.05.2002
Inscreve o nome de Plácido de Castro no “Livro dos Heróis da Pátria”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1° – Será inscrito no “Livro dos Heróis da Pátria” que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, o nome de José Plácido de Castro, o Libertador do Acre, Plácido de Castro.
Art. 2° – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 2 de maio de 2002; 181° da Independência e 114° da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 09.03.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JAP, N° 305. Plácido de Castro ‒ Brasil – Sena Madureira, AC – Jornal Alto Purus – n° 305, 09.08.1914.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Tacanhismo: mesquinhez.
[2] Sovinagem: avareza.
[3] Campônio: camponês.
[4] Amanho: cultivo.
[5] Palinuro: piloto.
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