Estudo que analisou quase 23 mil amostras em áreas de desmatamento recente e antigo mostra que diminuição da variedade implica também em queda no número de papéis desempenhados pelos animais no ambiente

Imagem acima: foto de um peixe Cascudo (família dos Locariidae). Crédito: Gabriel Brejão. – Postada em: Jornal da UNESP

A onda de desmatamentos promovida na Amazônia a partir da década de 1980 impactou a diversidade de peixes que habita os riachos da região. As espécies mais sensíveis às alterações na paisagem local estão cedendo espaço às mais resistentes, resultando na formação de populações mais homogêneas e menos variadas. É o que diz um estudo publicado na revista Neotropical Ichthyology de autoria de pesquisadores do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp São José do Rio Preto, em colaboração com pesquisadores da USP, dos EUA e da Colômbia.

A proposta da pesquisa era comparar a biodiversidade encontrada em dois cenários: os riachos situados em áreas preservadas e os cursos d’água em locais cujo entorno sofreu com o desmatamento e a degradação do solo. A análise também levou em consideração o histórico destes processos de  desmatamentos: foram examinadas imagens de satélites obtidas a partir de 1984 para classificar as paisagens entre as de desmatamento mais recentemente (depois de 1999) ou mais antigo (antes de 1999). Além disso, foram coletadas quase 23 mil amostras de peixes de 75 micro-bacias na bacia hidrográfica do rio Machado, em Rondônia, recolhidas tanto em regiões mais preservadas quanto em áreas afetadas pela pecuária.

Os estudiosos também coletaram diversas medidas para caracterizar os riachos, tais como profundidade, largura, o tipo de substrato que há no fundo e as características do seu entorno. A análise das amostras de peixes envolveu a identificação das espécies e sua classificação de acordo com a provável função que exerciam naquele ecossistema, estimada a partir de suas medidas e características corporais. “A partir de uma série de medidas, calculamos índices que determinam se o peixe em questão estava mais adaptado para ficar na superfície da água, próximo da margem, ou mais no fundo, onde há correnteza. Desta forma fomos entendendo a relação dos peixes com o ambiente”, explica o biólogo Gabriel Brejão, primeiro autor do estudo

Primeiros estudos em rios de São Paulo

O artigo se baseou no projeto “Peixes de riachos de terra firme da Bacia do Rio Machado, RO”, liderado por Lilian Casatti, que é docente do Ibilce-Unesp, colaboradora do estudo e que foi orientadora da tese de doutorado de Brejão. Ela já vinha pesquisando a integridade biótica dos riachos do noroeste paulista desde o início da década de 2000, mas os índices desproporcionais de desmatamento que ocorre há séculos na região – onde subsiste apenas 5% de floresta nativa – faziam com que o ambiente apresentasse pouca variação. Tal cenário de baixa diversidade passou a se configurar, após anos de estudo, como um obstáculo para que a docente obtivesse os resultados esperados para suas hipóteses.

Surgiu então a ideia de analisar os riachos da Amazônia, onde o desmatamento é mais recente e, portanto, ainda há mais áreas que foram pouco impactadas pela atividade humana. Este cenário permitiria mais possibilidades para testar suas hipóteses, e a mais parâmetros de comparação entre diferentes regiões. “Na Amazônia, ainda se pode encontrar espécies representantes de uma fauna mais exigente, porque lá ainda há floresta e boa diversidade de ambientes. Esse quadro favorece a ocorrência de um conjunto de espécies com diferentes papéis ambientais”, diz a docente. A pesquisa na região Norte do país começou em 2010. Em 2011, Gabriel Brejão integrou-se ao grupo para conduzir seus estudos, que basearam sua tese de doutorado. As amostras foram coletadas entre 2011 e 2012, durante o período de doutorado de Brejão em Biologia Animal no Ibilce-Unesp. Foi o doutorado de Brejão, concluído em 2018, que deu origem ao artigo , publicado em 2021.

Queda na diversidade afeta papéis desempenhados pelos peixes

O resultado das análises posteriores mostrou que ocorreu uma significativa substituição de espécies nos riachos cujo entorno sofreu com desmatamento recente (após 1999). Isso significa que espécies mais sensíveis às consequências do desmatamento estão abandonando aqueles riachos, enquanto espécies mais adaptadas estão prevalecendo ou ocupando estes locais. Em contrapartida, apesar do índice mais elevado de substituições entre espécies, as taxas de rotatividade de funções são baixas. Isso indica que as espécies ‘sobreviventes’ possuem semelhantes quanto às suas características físicas e, portanto, a variedade de funções desempenhadas pelos peixes termina por se reduzir num cenário de ecossistemas mais limitados.

“Se analisarmos o quadro em um riacho mais preservado, veremos que não há variação de temperatura muito alta ao longo do dia devido à presença de árvores que bloqueiam os raios solares”, detalha a docente Lilian Casatti. Ela explica que esses riachos também contam com um fundo mais diversificado, contendo cascalho e areia, entre outros elementos. Também é possível encontrar organismos em locais com fundo de areia, enquanto outros estão associados a troncos. E como ainda existe mata ciliar nestes lugares, insetos e frutos desta vegetação caem na água, proporcionando alimentação para esses peixes.

“A diversidade de grupos alimentares é maior, e isso tem uma implicação no “metabolismo” do riacho”, diz Casatti. Esse riacho mais preservado vai ter animais que vão conseguir processar matéria orgânica e predar insetos. Inclusive insetos que podem transmitir doenças para humanos. Por exemplo, a fase larval de alguns pernilongos ocorre na água, e quem comeria essas larvas na água são justamente algumas espécies de peixe. “Se essa oferta de alimentos deixar de existir, os peixes vão sumir do riacho e buscar outros locais”, diz.

Um dado curioso obtido a partir do estudo é que os riachos de áreas com florestas preservadas e aqueles de áreas com desmatamento mais antigo (antes de 1999) apresentam taxas de substituição de espécies ‘praticamente iguais’. Ou seja, em ambas as situações, a situação ecológica apresenta maior estabilidade quando comparada à situação dos riachos cujos entornos passaram por um processo de desmatamento mais recente.

Essa semelhança, no entanto, não é necessariamente algo positivo. Há uma diferença decisiva entre riachos de desmatamento antigo e riachos de florestas mais preservadas: os primeiros apresentam menor diversidade funcional entre as espécies presentes — mesmo fenômeno observado nos casos de desmatamento mais recente. “A gente acaba até brincando, quando estamos há muito tempo coletando e chegamos a um lugar de desmatamento mais antigo, quanto à lista de espécies: ‘vamos encontrar aqui as espécies x, y e z’. E normalmente acerta. Porque é o que sobrou, é o que passou por todos os filtros possíveis e está resistindo ali. Na floresta, por outro lado, nunca se sabe o que vamos encontrar”, comenta Brejão.

“Estamos falando de um processo em que um riacho habitado por 20 ou 30 espécies passa a abrigar apenas 5 ou 10 espécies ao longo do tempo. Às vezes, é possível até que isso leve a um aumento na população, porque certa espécie encontrou condições favoráveis e acabou dominando aquele ambiente. Mas serão menos espécies. A título de comparação, se num riacho localizado em uma floresta a gente encontrou 30 espécies e uma média de 10 a 15 indivíduos por espécie, num riacho numa área desmatada podemos coletar algo como 15 espécies. Só que a população de uma delas pode chegar a mil indivíduos, enquanto que as demais terão cinco, dez ou vinte cada”, explica Brejão.

– JORNAL DA UNESP