O Supremo Tribunal Federal (STF) tem um encontro marcado com o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e a proteção da Floresta Amazônica brasileira. Na sessão do próximo dia 30, por iniciativa das ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber, com o respaldo do presidente da Corte, ministro Luiz Fux, foram incluídos na pauta de julgamento os seguintes processos: ADPF 760 (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia — PPCDAm), ADPF 735 (Operação Verde Brasil 2), ADPF 651 (Fundo Nacional do Meio Ambiente), ADO 54 (omissão do Governo Federal no combate ao desmatamento), ADO 59 (Fundo Amazônia), ADI 6.148 (Resolução Conama 491/2018 sobre padrões de qualidade do ar) e ADI 6.808 (MP 1.040/2021, convertida na Lei 14.195/2021, sobre concessão automática de licença ambiental).
O objeto convergente de todas as sete ações é a proteção da Amazônia — por exemplo, o combate ao desmatamento — e, consequentemente, o enfrentamento do aquecimento global e das mudanças climáticas. As maiores “contribuições” brasileiras à emissão de gases do efeito estufa são derivadas do desmatamento. Portanto, falar de proteção da Amazônia é falar de proteção climática. A iniciativa do STF de pautar neste momento o julgamento de tais ações decorre, a nosso ver, tanto do cenário fático absolutamente urgente e preocupante de aumento progressivo do desmatamento na Amazônia verificado nos últimos três anos, conforme dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe [1], quanto da onda — ou melhor, tsunami! — de flexibilização da legislação ambiental brasileira em pleno curso no Congresso. O “pacote legislativo antiecológico” — objeto, aliás, de protestos recentes e expressivos da classe artística em Brasília — inclui, entre outros temas, a flexibilização da legislação sobre licenciamento ambiental, mineração e garimpo (inclusive em territórios indígenas), regularização fundiária e uso agrotóxicos, bem como a criação de obstáculos à demarcação de terras indígenas. O aumento progressivo do desmatamento na região amazônica nos últimos anos coincide com o enfraquecimento das ações de fiscalização dos órgãos ambientais encarregados da execução das políticas públicas correlatas, como é o caso, no plano federal, do Ibama e do ICMBio. Infelizmente, temos testemunhado uma tentativa de “passar a boiada”, desconstruindo quatro décadas — a contar da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) — de uma evolução progressiva, tanto em termos legislativo quanto administrativo, da política ambiental brasileira. Não por outra razão, algumas das ações pautadas para julgamento têm como objeto central o enfrentamento da omissão ou atuação deficiente do Governo Federal na execução das políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento na Amazônia (ex. ADPF 760). Um dos exemplos mais ilustrativos do laissez-faire da atual política ambiental do governo federal diz respeito à sua condescendência e permissividade para com a presença humana e atividades ilegais (extração de madeira, garimpo etc.) em Unidades de Conservação e Territórios Indígenas, o que, por exemplo, tem potencializado a violência contra povos indígenas na região amazônica.
Na contramão da História e do que se poderia esperar dos nossos agentes políticos — Legislativo e Executivo — , a tentativa em curso de flexibilização da legislação ambiental e enfraquecimento e desestruturação das políticas públicas ambientais no Brasil ocorre num dos momentos mais graves relacionados à proteção da “maior floresta tropical do mundo”. Recentemente, foi demonstrado cientificamente que a Floresta Amazônica se tornou hoje mais “fonte de emissões” do que “sumidouro ou estoque de CO²”, como consequência direta do desmatamento e do aquecimento global, conforme apontado em artigo científico publicado na Revista Nature em 2021, como resultado de pesquisa capitaneada pela cientista brasileira Luciana Gatti.[2]
Na Amazônia brasileira, o desflorestamento se aproxima hoje do percentual de 20% em relação à sua cobertura florestal original — já muito próximo, portanto, do denominado “Tipping Point de Savanização”[3] —, tomando, assim, um rumo similar à tragédia ecológica verificada na Mata Atlântica.[4] Como referido pelo ministro Luís Roberto Barroso, ao comentar a situação dramática que se verifica hoje na Amazônia: “o desmatamento costuma seguir uma dinâmica constante: extração ilegal de matéria, queimada, ocupação por fazendeiros e produtores (gado e soja) e tentativa de legalização da área pública grilada”.[5] O aumento do desmatamento na Amazônia registrado pelo Inpe nos últimos anos deveria mobilizar o Estado brasileiro no sentido do fortalecimento, tanto em termos legislativo quanto administrativo, das políticas públicas voltadas à prevenção e combate ao desmatamento, inclusive por força dos princípios constitucionais da proibição de retrocesso, da proibição de proteção insuficiente ou deficiente e da progressividade aplicados à temática ambiental. Não o contrário disso!
Tal “estado de coisas ambiental — inconstitucional e inconvencional! —” revela, por si só, flagrante violação aos deveres estatais de proteção ambiental e climática derivados do regime constitucional ecológico calcado normativamente no artigo 225 da CF/1988. No tocante ao direito fundamental ao meio ambiente, a jurisprudência do STF reconhece uma dimensão ecológica inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana, exigindo-se, nesse sentido, um patamar mínimo de qualidade e integridade ecológica como premissa a uma vida digna e ao exercício dos demais direitos fundamentais. Igual entendimento resultou consagrado pela Corte IDH na OC 23/2017, ao atribuir novo status e autonomia ao direito humano ao meio ambiente, o que, mais recentemente, foi replicado na sua jurisdição contenciosa, especificamente no Caso Tierra Nuestra vs. Argentina (2020).
À luz de tais premissas, é plenamente possível reconhecer a configuração de um direito fundamental à integridade do sistema climático ou direito fundamental a um clima estável, integro e seguro, como já tivemos oportunidade de sustentar em sede doutrinária[6] (e, no caso dos coautores Ingo W. Sarlet e Tiago Fensterseifer, inclusive oralmente na audiência pública realizada pelo STF em 2020, no âmbito da ADPF 708 — Caso Fundo Clima). A integridade e estabilidade climática integra tanto o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente quanto o conteúdo do chamado mínimo existencial ecológico, podendo-se falar, inclusive, de um mínimo existencial climático, como indispensável a assegurar uma vida humana digna.
É imperioso, por essa ótica, o reconhecimento de deveres estatais de proteção climática, derivados diretamente do artigo 225 da CF/1988. O sistema climático deve ser reconhecido como um novo bem jurídico autônomo de estatura constitucional, tal como sustentado pelo ministro Antônio H. Benjamin e consolidado na jurisprudência do STJ[7], somado à consagração expressa da proteção da integridade do sistema climático no Código Florestal (Lei 12.651/2012), artigo 1º-A, § único, e na Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009), art. 4º, I.
Esse cenário constitucional — e convencional — é reforçado na jurisprudência do STF, com o reconhecimento do status supralegal dos tratados internacionais que versam sobre o meio ambiente, como destacado em voto-relator da ministra Rosa Weber na ADI 4.066/DF (Caso Amianto), especificamente naquela ocasião em relação à Convenção da Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito (1989). Por essa razão, também a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima e o Acordo de Paris 2015 devem ser tomados como parâmetro normativo para o controle de convencionalidade por parte de Juízes e Tribunais nacionais (inclusive ex officio, como já decidido pela Corte IDH) da legislação infraconstitucional e ações e omissões de órgãos públicos.[8] Os tratados internacionais em questão reforçam a responsabilidade internacional do Estado brasileiro em relação à proteção da Floresta Amazônica.
Nesse contexto e seguindo o caminho trilhado por outros Tribunais nacionais e internacionais, o STF tem oportunidade histórica de escrever um novo capítulo na sua jurisprudência ambiental, notadamente na seara da proteção climática. O Tribunal Constitucional Federal alemão fez isso recentemente no julgamento do Caso Neubauer e Outros v. Alemanha, ocorrido em 2021. Na ocasião, o Tribunal reconheceu a violação aos “deveres estatais de proteção ambiental e climática” no âmbito da Lei Federal sobre Proteção Climática (2019), a qual teria distribuído de modo desproporcional — entre as gerações presentes e as gerações mais jovens e futuras — o ônus derivado das restrições a direitos fundamentais — em especial ao direito à liberdade — decorrentes da regulamentação das emissões de gases do efeito estufa. Na fundamentação da decisão, o Tribunal reconheceu que o direito fundamental à liberdade possui uma dimensão inter ou transgeracional, a qual deve ser protegida pelo Estado e se expressa por meio de “garantias intertemporais de liberdade” (intertemporale Freiheitssicherung).
Ao fazer um paralelo entre as realidades constitucionais alemã e brasileira, verifica-se que tanto o artigo 20a da Lei Fundamental de Bonn (1949) quanto o artigo 225 da nossa CF/1988 consagraram expressamente a proteção e salvaguarda dos interesses e direitos das futuras gerações, reforçando, assim, o regime jurídico de proteção ecológica e a caracterização de deveres estatais climáticos, inclusive numa perspectiva intergeracional. No caso da CF/1988, deve ser ressaltada a proteção “com absoluta prioritária” que deve ser assegurada à vida, à dignidade e aos direitos fundamentais — entre eles o direito fundamental a viver em um clima limpo, estável e seguro — titularizados por crianças e adolescentes, como expressamente consignado em dispositivo constitucional (artigo 227, caput).
É o direito ao desfrute de uma vida digna e do exercício pleno dos direitos fundamentais no futuro que está em jogo quando se trata da questão climática, como resultou consignado na decisão referida da Corte Constitucional alemã. A decisão em questão deu visibilidade jurídica para a “dimensão intergeracional” dos direitos fundamentais. É possível, nesse sentido, até mesmo constatar certa sub-representação político-democrática dos interesses das gerações mais jovens no Estado Constitucional contemporâneo, assim como das futuras gerações que ainda estão por nascer, protegidas, por exemplo, pelo caput do artigo 225 da CF/1988.
A sub-representação política referida está no fato de as crianças, adolescentes (até 16 anos completos) e as futuras gerações não votarem, ou seja, não elegerem diretamente os líderes políticos que irão tomar (ou não!) as decisões necessárias para assegurar o desfrute dos seus direitos fundamentais no futuro. Tal constatação reforça a importância do papel de “guardião” da vida, da dignidade e dos direitos fundamentais de tais indivíduos e grupos sociais vulneráveis atribuído constitucionalmente ao Poder Judiciário — e, em especial, ao STF. Proteger a Amazônia é proteger direitos e interesses tanto das nossas crianças e adolescentes quanto das futuras gerações (nossos filhos/as, netos/as, bisnetos/as etc. que ainda estão por nascer). A Amazônia também pertence a eles, bem como os serviços ecológicos por ela prestados — como a regulação do clima — são essenciais às suas vidas em condições dignas e ao exercício dos seus direitos fundamentais no futuro.
A decisão a ser tomada pelo STF no dia 30/3/2022 pode vir a representar, notadamente por envolver nada menos do que a proteção da maior floresta tropical do mundo, um dos casos de litigância climática mais importantes julgados até hoje por Tribunais Constitucionais, de modo a reforçar a relevância da denominada governança judicial em matéria ambiental e climática, notadamente quando diante de um contexto fático de omissão ou deficiência nas medidas legislativas ou executivas, inclusive, quando necessário, exercendo a sua função “contramajoritária”.
No ano de 2022, celebramos os 30 anos da Conferência e Declaração do Rio de 1992, os 50 anos da Conferência e Declaração de Estocolmo de 1972 e, de tabela, os 60 anos da publicação da obra A Primavera Silenciosa (1962) de Rachel Carson. Façamos, portanto, justiça às gerações jovens e futuras, de modo a não permitir o desvirtuamento da nossa Lei Fundamental de 1988 mediante uma “passagem da boiada”, que tem por objetivo a desconstrução legislativa e institucional de meio século de uma política ambiental conquistada arduamente. É nada menos do isso que esperamos da nossa Corte Constitucional no julgamento do próximo dia 30.
Por Ingo Wolfgang Sarlet, Gabriel Wedy e Tiago Fensterseifer
ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: CONJUR
ConJur – O STF como guardião da Floresta Amazônica
DefesaNet – LAWFARE – LAWFARE – O Supremo Tribunal Federal como guardião da Floresta Amazônica
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