Os ambientalistas discutem a Amazônia como se as únicas pessoas de carne, osso e alma presentes naqueles 5 milhões de quilômetros quadrados fossem os índios
Existe no Brasil uma população invisível para a elite intelectual, para os banqueiros que se converteram à religião da natureza e para todo o vasto mundo da militância ambientalista que se espalha pelo país afora — na mídia, nos grupos de “esquerda”, nos artistas de novela. Há de tudo aí. Profissionais e amadores, os bem-intencionados e mal-informados e os bem-informados e mal-intencionados, mais um Xis-Tudo de crenças, desejos e interesses. Todos se dizem unidos na missão de salvar “o meio ambiente” em geral e a “Floresta Amazônica” em particular; cada vez mais, agora, há entre eles milionários e grandes empresas. Muito bem: toda essa gente, que está sempre pronta a exibir sua carteirinha de fiscal do bem, não consegue enxergar que na Amazônia há uma população de 20 milhões de brasileiros.
A militância ecológica vê tudo na Amazônia. Vê árvores, rios e pedras. Vê nascentes. Vê a composição do solo e a diversidade biológica. Vê as terras altas e as terras baixas. Vê o bioma. Vê incêndios e motosserras. Vê índio. Vê o tamanduá-bandeira. Só não vê os 20 milhões de brasileiros, que não são planta e nem bicho, e que vivem ali — esses simplesmente não existem. Pior que invisíveis, eles atrapalham. Sua existência, na visão íntima dos ambientalistas, perturba as árvores e os animais; ninguém diz assim, com todas as palavras, mas há uma vaga convicção de que não teriam o direito de estar lá, como se fossem invasores ou grileiros do espaço onde vivem. Na verdade, segundo esse evangelho, o brasileiro da Amazônia está ocupando, mais ou menos ilegalmente, um território que deveria ser dos “povos indígenas” — ou, pior ainda, da “comunidade internacional”. Não tem nada de estar lá, se intrometendo em “patrimônio da humanidade”. É um estorvo.
Os 20 milhões de habitantes da Amazônia têm tanto direito de morar lá quanto em São Paulo, no Ceará ou qualquer outro lugar dentro das fronteiras do Brasil. Têm as mesmas obrigações dos demais brasileiros, as mesmas liberdades e a mesma proteção da lei. São seres humanos como todos os outros. Mas a sua presença não é reconhecida, para efeitos práticos, pelos militantes da “floresta”, nacionais ou suecos. Alguns ainda se lembram, de vez em quando, de mencionar de passagem sua existência (“populações ribeirinhas”, não mais), mas na maior parte do tempo os ambientalistas discutem a Amazônia como se as únicas pessoas de carne, osso e alma presentes naqueles 5 milhões de quilômetros quadrados, ou 60% do território do Brasil, fossem os índios. Mineração, indústria, portos, navegação, ferrovias, estradas, agropecuária, exploração da madeira — tudo isso, mais o resto, é discutido e decidido como se os brasileiros que vivem na Amazônia não existissem. Existe a reserva indígena. Existe a mata. Existe o boto cor-de-rosa. Existe tudo, menos o homem que não é nenhuma dessas coisas.
J. R. Guzzo
ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: REVISTA OESTE
Deixe um comentário