EPOPEIA ACREANA 

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Inimigos na Trincheira! – XI

Jornal Comércio do Amazonas, n° 063
Manaus, AM – Domingo, 13.03.1904
Contra um Farsante  

O Dr. Gentil Norberto pede-nos a publicação do seguinte em resposta ao artigo do Sr. Alípio Bandeira:

De novo voltou o farsante Alípio Bandeira pelas colunas da “Folha do Norte” com um artigo onde, a par de muitas asneiras, reeditou a série de calúnias que tornaram o seu nome [dele Alípio] conhecido e decantado em toda a Amazônia. Não se defendeu o pretensioso Tenente das graves acusações que lhe fiz. Não citou, sequer, um “documento em seu favor”, uma só “testemunha” que viesse confirmar os seus infames dizeres. Caíram por terra todas as suas mentiras, e aqueles que compraram as descompostu­ras do Alípio devem estar amargamente arrependidos. Alípio – o fujão, Alípio – o covarde, com poucos dias estarás na Capital Federal, rindo gozando o dinheiro dos tolos que tiveram a ingenuidade de comprá-lo para descompor os chefes acreanos e suas famílias, como se a palavra de um tipo sem caráter, como Alípio, pudesse influir na opinião pública. É admirável a fatuidade ([1]) deste tolo pretensioso, positivista manqué ([2]).

Querendo fazer espírito e dar noções de erudição barata, Alípio atira contra os “coronéis acreanos” algu­mas palavras desairosas, filhas do despeito e da inveja que nutre deles. Os “coronéis acreanos”, saiba o Ten Alípio, tinham sob suas ordens mil e tantos soldados, dispunham, na ocasião, de mais elementos que as Forças Federais, e foram tacitamente reconhe­cidos pelos governos do Brasil e da Bolívia em virtude do convênio assinado em La Paz, e mais de que tudo isso, foram eles, exclusivamente eles, com os seus bravos companheiros, que integraram a Pátria brasi­leira, que restituíram aos vinte mil brasileiros que residem no Território do Acre as leis e a bandeira que tinham perdido com a anuência criminosa dos poderes públicos.

E o que representa Alípio Bandeira? Nada na ordem das coisas! Daí o feroz despeito do detrator das famí­lias acreanas. Alípio é um covarde, disse. Com efeito, aproveitando a nossa ausência de Manaus, escreveu uma série de artigos, que o público desta cidade co­nhece, contra as famílias acreanas, de quem tinha re­cebido carinhoso agasalho no Acre, e contra os acrea­nos, a quem pedia instantemente as demarcações dos seringais, pois as “ilusões douradas” de que fala em sua primeira carta, nunca o abandonaram.

Ao termos conhecimento, “três meses depois”, das infâmias de que éramos vítimas, descemos imediatamente para Manaus e começamos a provar pela imprensa desta cidade, a falsidade das alegações do biltre ([3]) Alípio Bandeira, que ainda ali se achava. Em uma ocasião azada para sustentar as suas acusações. Pois bem, não fugiu nem mugiu, apesar de alguns artigos atacarem com provas a sua honra de militar.

Já nas vésperas de partir para o Rio, Alípio embarcou no vapor “Maranhão” que por aqui passou para o Sul em 20 deste mês, escreveu o artigo que foi publicado na imprensa de Manaus, quando eu ali já não estava, e reproduzido na Folha do Norte. Entretanto, o meu artigo, atacando Alípio, foi publicado em Manaus no dia 28 do mês passado.

Esperei “doze dias” pela resposta e como ele não aparecesse vim ter ao Pará: onde me chamavam negócios particulares. Alípio, como está provado, fugia de ter uma discussão direta comigo. Diz Alípio que se quisesse ir ao Acre obteria, como nós, assinaturas em seu favor. Por que não experimentou? Continuo, como tenho feito até agora, a opor às palavras de um biltre, documentos firmados por pessoas conceituadas.

Belém, 29 de fevereiro de 1904 ‒ Jornal do Comércio.

Eis os documentos:

Acampamento da Força Federal de ocupação da região Setentrional do Acre na “Empresa”, 14.09.1903

Ilustre am°. Sr. Coronel Dr. Gentil Norberto

Antes de tudo, tenho como sempre a satisfação de cumprimentá-lo.

De posse de vosso precioso favor ([4]), expedido do Xapuri em data de 7 do corrente e em que o amigo me felicita pela solução a que chegou o grande patriota Rio Branco, com relação ao Acre, eu, possuí­do de grande: contentamento, por tão monumental, quanto desejado acontecimento, retribuo ao amigo as felicitações que me enviou: e, valendo-me da oportunidade, peço ao amigo aceitar e também ao Sr. Coronel Plácido e demais chefes acreanos, a quem o Brasil deve a reivindicação do seu direito à posse da região do Acre, as minhas sincera congratulações, pelo referido acontecimento e com elas um abraço como selo aos protestos de confraternização, amizade e muita consideração dispensados reciprocamente por pessoas dos nossos sentimentos que colocam o engrandecimento e glória da Pátria acima de tudo quanto é dado imaginar-se.

Agora que o caminho necessário ao progresso da região acreana está desbravado, nas condições de ser a referida zona administrada colam felicidade para o administrador e seus auxiliares e, conseguintemente, para bem da União, que imenso necessita da mais vigorosa fiscalização na arrecadação das rendas públicas, resta-me a mim que sou um descrente, fazer votos para o que o Governo se inspire exemplarmente, dando “a César o que é de César” pertencer aproveitando nos altos cargos da administração os amigos Sres. Plácido e Gentil que tudo fizeram pela integridade da Pátria, que afinal venceu devido ao não pouco sangue derramado pelos amigos e seus comandados, que, além disso, são credores de toda estima, admiração e consideração pelo muito que sofreram sob os rigores da peste, da fome e, até, de indébitas humilhações, filhas da mais hedionda ingratidão, sem que, entretanto, houvessem articulado um queixume sequer, dado a conhecer o muito desalento que decididamente lhes invadiu a alma de verdadeiros patriotas.

Já tendo amolado por demais, fazendo ponto, abraçando ao amigo e pedindo-lhe para transmitir meus cumprimentos e um abraço aos Sres. Coronéis Plácido e Alexandrino Alencar.

Do amigo, amigo certo e afetuoso criado Cypriano Alcides. […]

Ilm° Sr. Dr. Gentil Norberto.

Respondo o seu prezado favor de hoje.

O juízo que o sr. Coronel Cunha Mattos expendeu com relação aos dois relatórios do Tenente Alípio Bandeira, de que fala a sua carta foi o mais desfavorável ao dito oficial, por isso que ali estava bem caracterizada a sua desorientação, documentos inteiramente contradito­rios entre si, e que portanto, a contradita que fez o Dr. às asserções, dos ditos documentos oficiais foi a pura expressão da verdade. Desta minha resposta podereis fazer o uso que vos convier.

Amg. e crd. obrg. Ananias Reis.

Belém, 29.02.1904 […] (JCA, n° 063)

Encerramos este capítulo com um texto, do autor José Francisco de Araújo Lima, na sua obra “Amazônia – a Terra e o Homem”, que resume fielmente a aurora e o ocaso desta estrela fulgurante da nacionalidade que foi Plácido de Castro:

A ação militar dos Batalhões de Voluntários patriotas, que combateram os bolivianos no Acre e os peruanos no Alto Purus, caldeou uma alma heroica, brava e audaz, que galvanizou na história Pátria uma das mais inequívocas expressões de coragem cívica e de capacidade para a luta.

E esse estado de espírito expurgou, defecou a alma daquela gente de todos os intuitos malsãos, de todos os instintos ferozes, de todos os estigmas aviltantes, que uma ancestralidade criminosa lhes houvesse por ventura infiltrado no ser moral.

Os hábitos guerreiros, incrementados pela reação contra a ocupação e as invasões estrangeiras, pode­riam ter deixado o fermento do caudilhismo ou, pior, do cangaceirismo, nos costumes das populações do Alto Amazonas. Nada mais propício do que o meio físico para cumpliciar-se nos assaltos e nas correrias; a mata é um intrincado labirinto em cujas malhas estreitas se ocultam e disfarçam as feras e os ho­mens; os rios correm aceleradas milhas a favorecerem a fuga precípite ([5]); os furos, os sacados, os atalhos, são pousos e esconderijos estratégicos para as tocaias e as emboscadas. Ali não há as estradas nem as encruzilhadas forçadas; há sim o emaranhado prote­tor da floresta, em cujo tecido o homem se refugia e se segrega, escapando à caça e à batida. Planta exótica, estiolou-se no seu novo habitat aquela bravura selvagem, incidentemente criminosa, que faz o chamado heroísmo dos bandidos. E daquele tronco, por fenômeno de transmutação psicológica, brotou uma floração sadia e opulenta de patriotismo reivindicador. A valentia, adormecida na latência de um atavismo recalcado, exercitou-se em sã bravura e despertou sob a forma de heroísmo autêntico, patrió­tico e restaurador da soberania nacional.

A tendência ao cangaceirismo foi contrariada, regenerada pelo salutar ambiente de labor indefesso, na luta e na paz. Também não vingou ali a semente do caudilhismo. Veiculado na energia dominadora de Plácido de Castro, o levedo do caudilhismo transporta-se das planícies enxutas dos Pampas para as planícies encharcadas da Bacia Amazônica; mas só fermenta no ardor bélico de Plácido de Castro, que tinha dentro em si a chama ardente a iluminar a alma coletiva, a inflamar aqueles corações túmidos de brio rubro e nacionalista, de patriotas que, desde 1899 com Luiz Galvez, aspiravam à liberdade da região, conclama­vam os brasileiros contra o descaso da nossa chancelaria e repeliam a ocupação estrangeira e a afronta à soberania pátria, sonhando com a fantasia da República do Acre.

Guião ([6]) sereno, arguto e estrategista, Plácido de Castro dominou aqueles falangiários ardorosos, no sentido de uma melhor tática de guerra, e denodadamente levou-os à vitória.

Coroada a sua obra por um feito que dilatou a glória diplomática do nome de Rio Branco, o herói-guerreiro sentiu o ambiente muito mais propício ao trabalho do que à luta, trocou o fuzil pelo teodolito e aventurou-se à conquista pacífica das terras, onde avaramente se escondiam os mananciais, os filões de ouro líquido. E dentro em pouco era possuidor do maior seringal do Acre.

Foi quando o despeito e a cobiça, gerados por interesses mal satisfeitos, aliançaram-se para derrubar o General dos exércitos acreanos. Vitimou-o o egoísmo desenfreado, no entrechoque de ambições exaltadas, já então pacificada a região; aplacado o furor guerreiro do herói, é despertado em seu espírito o sentido utilitário da vida em face da riqueza amazônica. (ARAÚJO LIMA)

Plácido de Castro
(D. Plabo) 

Dos inóspitos climas acreanos,
Depois de porfiar meses inteiros
Em luta contra febres e guerreiros,
Praticando prodígios sobre-humanos;

Apôs trabalhos ásperos e insanos,
Voltas de novo aos lares prazenteiros
Ó tu, Plácido ‒ para os brasileiros ‒
Ó tu, Terrível ‒ para os bolivianos ‒

És recebido agora entre banquetes,
Ao concerto de vivas e foguetes,
Enchendo, de alegria a nossa terra:

‒ Bem mereces por tuas aventuras
Tantos banquetes, festas e doçuras
Tu que chegas do Acre duma guerra!

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 18.02.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

ARAÚJO LIMA, José Francisco de. Amazônia – a Terra e o Homem ‒ Brasil – São Paulo, SP ‒ Companhia editora Nacional, 1937.

JCA, N° 063. Contra um Farsante – Brasil – Manaus, AM – Jornal do Comércio do Amazonas – n° 063, 13.03.1904.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Fatuidade: empáfia.

[2]   Manqué: fracassado.

[3]   Biltre: infame.

[4]   Favor: bilhete.

[5]   Precípite: veloz.

[6]   Guião: estandarte.