EPOPEIA ACREANA
Inimigos na Trincheira! – VII
Quo Vadis?, n° 234
Manaus, AM – Domingo, 13.12.1903
No País da Miséria – A Expedição Olympio
IX
O velho General, em cujo ardoroso coração vivem ainda as lembranças guerreiras do Paraguai e em cuja alma generosa a má-fé não encontra guarida, supôs a princípio que aquela gente tinha algum valor e que era animada de intenções patrióticas, por ventura mal entendidas, mas sinceras. A ilusão, entretanto, não podia durar. Dotado de uma atividade espantosa em pouco tempo tinha percorrido toda a extensão que vai da Boca do Acre à Foz do Xapuri, informando-se minuciosamente de tudo que dizia respeito à população, seus hábitos e seus desejos.
E, ao passo que travava relações com os patrões e conhecia o caráter dos chefes e do povo, recebia de toda a parte queixas e reclamações que bem lhe deixavam patentes os verdadeiros intuitos da pretensa Revolução. Mas a sua missão no Acre não lhe permitia tratar como fora de justiça e de necessidade os gananciosos mandões, cuja má vontade em breve conheceu. Assim tratou-os sempre como pessoas com quem não queria intimidade mas a quem de nenhum modo desejava hostilizar.
Esse procedimento aumentou o despeito dos chefes que logo perceberam não poder contar com o General para auxiliá-los na continuação das suas aventuras e que viam nele uma testemunha demasiado austera das misérias acreanas.
O General, contudo, não se preocupava desse desagrado que lhe era perfeitamente indiferente, senão vantajoso. Nas obras do acampamento e nos sofrimentos da Expedição tinha de sobra em que empregar sua atenção, sua incomparável atividade e a protetora solicitude do chefe verdadeiramente desvelado. Chegara ao ponto escolhido para a ocupação militar a 3 de abril e nesse mesmo dia começaram os grandes trabalhos do acantonamento e construção de armazéns e enfermarias.
Em poucos dias a mata da “Empresa” tinha recuado consideravelmente e no fim do mês o acampamento apresentava o aspecto de uma cidadela perdida na margem direita do Acre. A soldadesca ocupada no corte de madeira para as obras tinha também de descarregar os navios que chegavam diariamente e cujos comandantes, por medo da acelerada vazante do Rio, queriam ser prontamente despachados.
Sob um chuveiro eterno, que não conseguia, contudo, abrandar a canícula da região, devastavam as matas ou carregavam volumes das 6 horas da manhã às 6 da tarde numa fadiga desumana mas absolutamente necessária. À noite caia geralmente uma umidade intensa a que dão o nome de “friagem” contra a qual não havia agasalho eficaz. E o Rio secava pavorosamente. E o General temendo os estragos, pela chuva, dos poucos e maus gêneros alimentícios da Expedição, apressava cada vez mais a construção de grandes galpões para armazenagem.
O “Tapajós”, que levava os melhores gêneros e também ferramentas e objetos necessários aos serviços do acampamento, ficara encalhado no Rio Purus por inépcia ou desleixo dos respectivos práticos. O gado não passava de 300 cabeças, que ainda assim davam grande trabalho para serem alimentados em virtude da falta de campo. A farinha d’água era a única que havia por ser impossível – segundo se dizia ‒ a conservação da branca. Os Soldados habituados ao tratamento regular das guarnições, começaram a estranhar a alimentação limitada a charque, feijão, arroz e farinha, exceto nas quintas e domingos – dias de carneação dos pobres e famintos garrotes. Esses mesmos mal satisfaziam a fome acumulada, por isso, que além de ser pequena a ração não havia na “Empresa” nem temperos e nem verduras.
Passados os primeiros dias e, não podendo mais tragá-los, os soldados procuravam negociar a carne seca e a farinha recebidas ou deixavam-nas pelas matas se não queriam sujeitar-se às traficâncias da população. Porque ainda uma vez [e até nisso!] manifesta-se a miséria acreana: os vendilhões, ao passo que cobravam 2.000 réis por quilo de macaxeira ([1]) e 500 por uma laranja, ou recebiam por uma ninharia o charque e a farinha dos soldados ou esperavam para apanhar na mata a ração dos mais orgulhosos.
A caixa militar ([2]) não aparecia e o General esforçava-se debalde escrevendo e mandando portadores a Manaus em busca de recursos para a tropa. Em breve a grande maioria da soldadesca estava reduzida a alimentar-se de feijão e arroz nos dias em que não havia a carneação.
Ainda assim, e malgrado as fadigas do dia, eram de ver à noite os animados batuques dos caboclos pernambucanos do 27° ([3]). Ao som de qualquer lata velha formava-se o grupo dos cantadores e, enquanto o mestre puxava a cantiga:
Quando eu vim da minha terra
Não trouxe o meu coração
Porque o deixei guardado
Num canto do meu sertão.
O mavioso coro respondia harmoniosamente:
Olê, olê, olê, olê,
Num canto do meu sertão.
E aquelas doces canções cheias da dolente cadência das modinhas sertanejas, chegavam do outro lado do Rio nos acampamentos do 4° e do 36° como uma evocação saudosa da terra da Pátria tão amada e tão longe ou como uma nênia ([4]) da morte que já tantas vezes e tão cruelmente visitara a Expedição.
Ah! Eles bem sabiam – pobre gente! ‒ que no dia seguinte talvez algum dos cantadores houvesse de ficar no fundo da mata para ser vir de repasto aos abutres da noite numa terra onde não se cavavam 3 palmos sem dar n’água. Mas o Soldado brasileiro é assim mesmo: valoroso nos momentos difíceis e sempre e em qualquer caso de uma resignação elevada até a sublimidade. A 13 de abril, começara com efeito a dízima da morte. Uma tarde, o Sargento Ajudante do 4° sentiu-se mal, pôs-se a vomitar, baixou à enfermaria e 4 dias depois nos braços do Tenente Lobo morria de beribéri numa agonia infinita. Foi a primeira vítima. Daí por diante raro era o dia em que não faleciam 2 ou 3 Soldados.
Em meados do mês começaram a circular notícias extravagantes a respeito das Forças bolivianas que se aproximavam do acampamento brasileiro. Os acreanos, por medo ou velhacaria, propalavam esses boatos ao mesmo tempo que Plácido de Castro escrevia de Porto Rico ao General, dando-lhe a conhecer os seus temores da Coluna de Pando ([5]), contando o estado miserável da sua gente e pedindo-lhe que fizesse uma demonstração de forças por aquelas bandas.
O General, como era de esperar, deu a esses boatos e a esse pedido a importância que mereciam, quer dizer, não os tomou em consideração. Tendo desde o princípio dado ordens e regulado todas as providências necessárias à defesa do acampamento pouco lhe importava, para efeitos de guerra, que Pando ficasse longe ou viesse perto. Não o apanharia de surpresa. Todavia o General não era homem que se deixasse ficar na ignorância do terreno em que talvez tivesse de operar. Ordenou, pois, reconhecimentos, aberturas de estradas, construções de pontes, etc.
O acampamento do 15° Batalhão de Infantaria na “Volta da Empresa” foi ligado aos outros e ao Quartel General por um largo caminho de 10 min. Ao Capitão Uchoa encarregou de fazer a estrada para “Antimarí” e ao Ten Bernardino, a de “Gavião”. A 1ª devia servir para transporte no tempo da seca e era ao mesmo tempo uma linha de retirada; a 2ª estabeleceria comunicação com os centros para os lados da ocupação boliviana. Cessaram, entretanto, os boatos, por não produzirem efeito e por falta de verossimilhança ([6]), dado o conhecimento que a Expedição adquirira do terreno.
Entretanto as moléstias progrediam desoladamente. Apanhando a soldadesca cansada pelo trabalho excessivo e depauperada pela péssima alimentação, o beribéri e as febres palustres aumentavam diariamente o número de baixas e de mortos. A 22 de abril, o 27° de infantaria seguiu para “Boa Fé” e dos três Batalhões restantes na “Empresa” morriam em média 6 homens por dia. Muitas vezes um oficial que trabalhava com uma turma certa e que à noite despachava todos os Soldados perfeitamente ou aparentemente bons ao notar na manhã seguinte a falta de um ou dois tinha como resposta a notícia da morte. E era assim.
O beribéri matava tão depressa o mais robusto como o mais fraco dos homens. Uns começavam a definhar, reduziam-se a múmias e em 3 ou 4 dias estavam enterrados. Outros inchavam, inchavam disformemente e dentro de 48 horas morriam. Outros, finalmente, sentiam-se mal do estômago, entravam a vomitar e a sentir dores violentíssimas, gritavam como desesperados e com o último grito ia-se-lhe também a vida. Esses nunca duravam 24 horas. As enfermarias contavam diariamente de 80 a 100 doentes afora os que ficavam pelos acampamentos por não haver lugar nelas. A Expedição não tinha camas; o Hospital dispunha de 5 pratos e 5 talheres para servir a 80 ou 100 homens. Na “Empresa” e nos lugares mais próximos não havia louça para comprar e que houvesse! Para todo o serviço do Rio o General apenas tinha a lancha “Acre” desprovida dos mais indispensáveis acessórios.
À noite a umidade intensa que caía sobre as cobertas das casas como uma chuva constante apanhava os infelizes enfermos sem um cobertor que os protegesse daquele frio medonho. Os navios que por esse tempo desciam o Acre vinham carregados de oficiais e praças doentes que iam morrendo às dezenas pelo caminho.
Em fins de abril e princípio de maio aumentou o número de baixas para Manaus. Já nessa época tinham voltado 227 Soldados e 21 Oficiais. E a morte continuava desapiedadamente a destruição. No Hospital metia pena ver-se o estado e as condições dos esqueléticos enfermos.
O General visitava-os todas as manhãs e muitas vezes aquele coração habituado às grandes agonias das campanhas comoveu-se até as lágrimas diante do espetáculo de tanta penúria. E o velho guerreiro que trazia do Paraguai e Canudos a fama da mais imperturbável coragem não escondia o seu pranto que caía no seio da tropa como um bálsamo de consolação.
Sim, ele bem quisera e bem trabalhava para que a Expedição não sofresse as angústias que contemplava. Mas que poderia fazer além do que fez? A morte ameaçava todos, o luto entrava em todos os corações. Todavia ninguém desanimava no acampamento, porque todos confiavam no valor e na solicitude do chefe.
O General, diante da impotência de sua vontade para remediar tantos males e pela sensibilidade do seu generoso coração, era, porventura, quem mais sofria.
Foi nesta situação aflitiva, que lhe chegou de “Boa Fé” na noite de 8 de maio a notícia da prisão de Gentil Norberto, motivada pela inaudita arrogância desse presunçoso Coronel que tantas vezes antes e ainda algumas depois deu provas sobejas da mais lamentável pusilanimidade.
Manaus, novembro de 1903.
Alípio Bandeira, 2° Ten de Artilharia (JQV, n° 234)
Quo Vadis?, n° 235
Manaus, AM – Terça-feira, 15.12.1903
No País da Miséria – Ainda a Expedição Olympio
X
No dia seguinte [09 de maio] chegava um novo portador, o Capitão Jansen, trazendo mais positivas comunicações. O General embarcou nesse mesmo dia para “Boa Fé” e aí chegando soube do seguinte: Gentil e Gastão quiseram tomar à força uns burros pertencentes a um tal José da Costa ([7]), este queixou-se ao Major Carneiro, Cmt do 27° o qual pediu a Gentil que dispensasse Costa dessa contribuição. Foi o suficiente para que Gentil e Gastão rompessem em hostilidades dizendo que a Expedição Militar só entrara no Acre porque os acreanos consentiram, que formariam a sua força e expulsariam de “Boa Fé” o 27°, e outros iguais disparates.
O Major Carneiro prendeu-os, e os soldados acreanos, que esperavam apenas o momento da liberdade que não tinham coragem de preparar, baldearam-se para as Forças Federais aos gritos de – “Vivas ao Exército” – e insultos aos chefes da revolta. Para quem, pois, aprecia os fatos de longe esta será a causa primordial do desarmamento da gente de Plácido. Pelo que toca a Gentil Norberto poder-se-ia dizer também que o seu desgosto datava do dia em que foi pelo General impedido de surrar um velho de 70 anos que já tinha amarrado a um tronco pelo simples fato de ter esse homem se queixado ao General de que ele Gentil Norberto lhe tomara para servir à revolta o seu único filho de 16 anos de idade.
Mas quem estava no Acre sabe que a má vontade dos chefes acreanos começou a manifestar-se abertamente desde a instalação da Mesa de Rendas de Porto Alonso. Ao chegar a esse ponto o Sr. Enéas Valle, chefe da referida Mesa de Rendas, Rodrigo de Carvalho opôs-se à referida instalação dizendo que o Acre era um Estado independente, conquistado pelas armas revolucionárias e que só a eles pertencia. Enéas Valle seguiu até “Boa Fé”, onde se achava então o General Olympio e de lá voltou a 30 de abril acompanhado do Alferes Manoel Rodrigues que com um contingente de 20 praças foi a porto Alonso tornar efetiva a Posse da autoridade aduaneira. Rodrigo de Carvalho arvorou no “Independência” a bandeira do “Estado Independente do Acre”, embarcou em Porto Alonso tudo que quis e subiu o Rio com o fim de estabelecer em “Capatará” a alfândega acreana.
Antes, porém, de chegar ao seu destino soube do desastre de “Boa Fé” e abandonou o navio, retirando dele ainda tudo quanto quis. O General, dada a situação da Força revoltada que, sobre ter abandonado as fileiras, declarava não mais obedecer aos seus antigos chefes, mandou três vezes chamar Plácido de Castro, uma delas pelo próprio Coronel Gastão, a fim de resolverem o incidente. Mas Plácido, que vinha então de volta de Porto Acre, por medo ou despeito, recusou-se a ir ao acampamento do 27°, escreveu ao General declarando terminada a sua missão, e em vez de passar por “Boa Fé”, centro de suas operações e caminho natural do seu trajeto, foi sair abaixo, em “Iracema”, de onde desceu o Rio a 20 de maio na lancha “Itamarati”.
Diante dessa inesperada fuga o General mandou arrecadar o armamento acreano de “Boa Fé” distribuiu pelos soldados de Plácido a pouca mercadoria que restava naquele ponto e licenciou-os. Ele quis com essas medidas evitar o que poucos dias depois deu-se em “Xapuri”, onde ao saberem os acreanos da retirada de seu chefe arrombaram e saquearam um barracão cheio de mercadorias compradas com dinheiro da revolta e que sob a firma pessoal de Plácido de Castro ficavam armazenadas enquanto os soldados de Porto Rico alimentavam-se de milho torrado e frutos de palmeiras. Ao chegar à “Empresa”, Plácido não quis saltar em terra; vinha um tanto lamentoso e, segundo dizia, disposto a não voltar mais ao Acre. Não se esqueceu, contudo, de satisfazer o seu despeito num vergonhoso ofício que deixou em mãos de um amigo com a recomendação de só entregá-lo ao destinatário um ou dois dias depois de sua partida. Nessa triste peça esse homem tão ignorante quanto curto de inteligência julgou-se autorizado a chamar o General de Sargentão, esse dono, sem escrúpulo, de uma mulher e de um armazém de mercadorias alheias não trepidou em chamar de bandidos e bêbados aos oficiais do 27° de Infantaria ([8]) que nunca se meteram nos deboches do Acre.
Mas não se lembrou de que punha em dúvida a sua apregoada coragem quando só de longe e fora do alcance dos ofendidos atirava sobre o General e a oficialidade do 27° os seus grosseiros insultos. Esta será entre os acreanos, mais uma prova da sua bravura. O General, entretanto, tinha mais o que fazer do que dar atenção aos ofícios agressivos de Plácido de Castro. Em meado de maio, com efeito aumentara a falta de gêneros alimentícios e com ela o número de baixas e de morte.
Chegava de baixo a notícia do desastre da “Redelinda” que fora a pique com um carregamento de 100.000 réis, e correspondência acumulada de três meses. Chegava igualmente a comunicação da morte do Capitão Cícero Ramos, do Alferes Leocrácio e 20 praças do “Independência” e do “Lucania” encalhados. De Porto Alonso escrevia o Alferes Manoel Henriques, dando parte da morte de alguns soldados do seu Destacamento, do embarque de outros por doentes para Manaus e do lamentável estado de sua saúde. Subia, então, a 44 o número de oficiais e a 331 o de soldados que voltavam enfermos. O inverno tinha diminuído um pouco mas a “friagem” ([9]) recrudescia.
O Hospital estava cheio de Praças, mulheres e crianças. Três médicos somente faziam todo o serviço dos acampamentos e das enfermarias. O beribéri tornara-se uma verdadeira epidemia, contra a qual baldavam-se todos os esforços. Em fins de maio posto que as tropas estivessem mais habituadas com o espetáculo da penúria e da morte, já não havia na “Empresa” quem não tivesse a lamentar a perda de um amigo ou parente.
Em princípio de junho fez-se um grande forno para fabricação de pão e deste modo melhorou-se um pouco a alimentação da soldadesca. A moléstia, no entanto, continuava a destruição.
Já nessa época os embarques para Manaus faziam-se em batelões rebocados por pequenas lanchas quando apareciam ou trazidos a varejões até Cachoeira, no Purus.
Metia ([10]) verdadeira pena verem-se aquelas grandes levas de doentes atirados no fundo de um barco incomodo, debaixo de um Sol implacável, sem recurso algum, inclusive de dinheiro porque a Expedição não era paga desde o seu embarque em março. Assim viajou o Capitão Uchôa completamente paralítico de um golpe que apanhou sobre a espinha dorsal na abertura da estrada de Antimarí. Assim, doente de beribéri, viajou e morreu o 2° Ten Gurgel do Amaral, antes de chegar à Boca do Acre. Assim morreram dezenas de pobres servidores desclassificados da Pátria. E nessa situação desgraçada, debalde o velho General continuava a mandar portadores a Manaus.
Do Alto Acre chegavam novamente notícias aleivosas ([11]) de próximos ataques bolivianos. Wencesláo Sallinas oficiava ao General pedindo garantias para 2.000 brasileiros residentes em “Igarapé da Bahia” e “Porvir” ameaçados – dizia – pela gente de Nicoláo Suarez. De “Xapuri” vinha também a comunicação do escandaloso saque nas mercadorias de Plácido de Castro e de inventadas desordens. O Alferes Paes Barreto ([12]), numa penosa viagem de canoa, é mandado como Delegado a “Xapuri”, onde encontrou as antigas e costumeiras traficâncias daquela terra. O autor destas linhas embarca para “Bahia” ([13]), onde em vez dos bolivianos de Suarez e dos 2.000 brasileiros de Sallinas, viu apenas a destruição do incêndio e do roubo, tendo de dormir à beira do Rio por não haver casas nem moradores.
Nesta viagem de 2 meses em canoa, tocando, por assim dizer, em todas as casas, desde “Empresa” até “Bahia”, não encontrei uma pessoa à exceção de Rôla de “Benfica” [um dos melhores aquinhoados, ao que se diz, pela revolta] que não tivesse queixas dos chefes acreanos. De muitos Coronéis e majores, cujos nomes deixo de citar por não parecer desleal, ouvi que se Plácido voltasse ao Acre mandá-lo-iam assassinar em algum barranco deserto. Não o farão, certamente. Não por escrúpulo dessa vingança traiçoeira, mas por medo, em caso de insucesso.
A 11 de agosto, cheguei, à “Volta da Empresa”. O General tinha embarcado para Manaus a 02 desse mesmo mês. O estado sanitário melhorara desde princípio de julho. A morte do Capitão Mariano Campos em 4 dias de febre, foi a última e triste perda de fins de junho. O hospital contava apenas 10 ou 12 homens diariamente. O número de doentes que embarcava era uma insignificância diante das grandes levas do princípio.
Contudo o acampamento da “Empresa” tinha o aspecto de uma cidadela morta, onde apenas se encontrassem visitantes de finados. A tristeza invadira a própria soldadesca, inclusive os divertidos caboclos pernambucanos do 27°. O General embarcara, disseram-me, no meio das maiores manifestações de carinho por parte da Tropa Federal e do povo acreano. Às lágrimas de comovida gratidão juntaram-se, naquele dia, as da saudade que deixava o velho chefe da Expedição e amado libertador dos torturados do Acre.
Amanhã, estes últimos atirarão apodos ([14]) sobre seu nome. Será um modo de agradar aos chefes acreanos; um resultado do medo, que não do ódio, que não da indignação. Do honrado General brasileiro não se contarão traficâncias, nem crueldades, nem cobardias.
Manaus, novembro de 1903.
Bandeira, 2° Tenente de Artilharia (JQV, n° 235)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 09.02.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JDB, n° 231. Das Forças no Acre – Brasil – Rio de Janeiro,
RJ – Jornal do Brasil – n° 231, 19.08.1903.
JQV, N° 234. No País da Miséria – A Expedição Olympio – IX – Brasil – Manaus, AM – Quo Vadis?, n° 234, 13.12.1903.
JQV, N° 235. No País da Miséria – Ainda a Expedição Olympio – X – Brasil – Manaus, AM – Quo Vadis?, n° 235, 15.12.1903.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]..
[1] Macaxeira: mandioca.
[2] Caixa militar: recursos pecuniários.
[3] 27°: 27° Batalhão de Infantaria.
[4] Nênia: canto fúnebre.
[5] Pando: General José Manuel Pando Solares.
[6] Verossimilhança: probabilidade.
[7] Por uma notícia ultimamente publicada no “Amazonas”, sabe-se agora em Manaus como o ódio acreano vingou-se de Costa. O que talvez não se saiba é que é absolutamente falso que o Gen Olympio houvesse dado a esse cidadão armamento tomado aos acreanos como também publicou a referida notícia (A. Bandeira ‒ JQV, n° 235)
[8] Mentiras deslavadas do autor!!!
[9] Friagem: normalmente a friagem aparece em maio ou junho, na mudança da estação, mas pode surgir em julho, agosto ou setembro, notadamente nas Bacias dos Rios Acre e Iaco.
[10] Metia: Dava.
[11] Aleivosas: caluniosas.
[12] Das Forças no Acre: Manaus, 18. ‒ O General Olympio deixou as forças do Acre assim distribuídas: em “Iracema”, 30 praças, ao mando do Alferes Lima Mindello; em “Xapuri”, 15, ao mando do 2° Ten Alípio Bandeira; em “Igarapé Bahia”, 20, comandadas pelo Alferes Paes Barreto; em “Gavião”, 25, comandadas pelo Alferes Pinto Monteiro. (JDB, n° 231)
[13] Bahia: Igarapé Bahia.
[14] Ápodos: frases depreciativas.
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