EPOPEIA ACREANA

Inimigos na Trincheira! – VI

Quo Vadis?, n° 189
Manaus, AM – Sábado, 24.10.1903
No País da Miséria – Ainda a Revolta
V  

Ao ouvir a narrativa das façanhas acreanas da última revolta lembra a gente aquele heroísmo selvagem dos montanheses da Escócia tão magistralmente descrito nos romances de Scott ([1]), ou recorda comovido os tempos fabulosos de Morven através da lira contestada e nostálgica de Ossian ([2]). São homens que abandonam os lares sem dar ouvido às súplicas da esposa, desprezando as lágrimas dos filhos para lutar com honra, entoando no momento sublime da queda o Hino Santo da liberdade, Brigam dez contra cem, não lhes importando no ardor da peleja a hipótese do desastre, a agrura do martírio, a certeza da morte. São trincheiras de pedra desalojadas à ponta de baioneta; posições conquistadas a ferro e fogo no choque violento de peitos generosos; navios apresados nas águas traiçoeiras do Rio, malgrado a metralha que corta o espaço e os monstros que fremem no fundo do abismo.

Abatem-se pontes sob um chuveiro de balas, ardem barracas no incêndio da flecha indígena, escalam-se barrancos em duelos de morte, corpo a corpo, a terçado e a faca! Depois, um montão de cadáveres que apodrecem pelas ribanceiras desertas uns, outros que a corrente arrasta para longe, pelo Purus, até largá-los nas águas legendarias do Solimões. E o Solimões geme de mágoa e vai deixá-los, quem sabe onde? E a fogosa imaginação do ouvinte revive o tipo de Burley ([3]) para afogá-los nos remansos do Acre, levando pelo gasnete ([4]) o inimigo feroz. E o espírito inclinado à poesia nebulosa remira compungido a espada enferrujada que flamejou nos pulsos dos heróis com aquela sagrada bravura da raça divina de Fingal ([5]). Mas oh! Como é diversa a história! Fácil tarefa seria despir dessa autoridade de lenda os poucos encontros que a revolta teve de sustentar com um inimigo digno dela nos intuitos, na ignorância, na vilania e na fraqueza. Era esse o nosso primeiro intuito. Mas: pretendíamos analisá-los à luz da estratégia e da tática e além disso contar a história da Expedição Olympio, do desarmamento das Forças do Plácido, dos pretensos prejuízos acreanos, da miséria, da fome e da morte que tantas vezes contemplamos na infinita desolação das terras do Acre. Não o fazemos já. Certo, não nos arreceamos das prováveis contradições nem nos incomoda a desaprovação deste ou daquele indivíduo, ainda quando se trate de um amigo desinteressado da chamada causa acreana.

Manaus, 17 de outubro de 1903.

Alípio Bandeira, 2° Ten de artilharia (JQV, n° 189)

Quo Vadis?, n° 229/230
Manaus, AM – Domingo e Quarta-feira,06 e 09.12.1903
No País da Miséria – Ainda a Revolta (“Reeditada”)
VI/VII 

À luz da estratégia e da tática disse eu que examinaria as lutas da Revolta Acreana, inadvertido de que não é possível entrar com os ensinamentos da arte militar na apreciação de um bando de desordeiros armados sem disciplina, sem ordem, sem determinação e sem ideal. Se, é certo, que com Wenceslau Sallinas algumas explorações e reconhecimentos para os lados de Porto Rico, Gironda e Palestina tiveram o cunho militar reduzido à prática que esse cidadão adquiriu em várias guerrilhas das Repúblicas Americanas do Sul, não é menos exato que afora isso, tudo que fez a Revolta não passa de ataques desprovidos de prévia concepção, de cálculos estratégicos, de disposições táticas, como os fariam e como os fazem os chamados cangaceiros do Norte.

Tenho, pois, que retirar a promessa para limitá-la ao que é possível fazer dadas as circunstâncias. Cingir-me-ei, portanto, a contar a história verdadeira dos tiroteios acreanos, pelo que tenho de despi-los da auréola de heroísmo com que correu mundo para gáudio, proveito e fama dos chefes. A 4 reduzem-se esses decantados feitos de guerra: o 1° e o 2° tiveram lugar na Volta da “Empresa”, o 3° em Porto Alonso, o 4° no Barracão Bahia, junto ao Igarapé do mesmo nome.

No 1°, comandado por Plácido de Castro, da parte dos acreanos e pelo Coronel Rojas do lado oposto, travou-se a luta em igualdade de condições – desprezada a fadiga em que devia estar a gente de Rojas que acabava de fazer uma longa travessia a pé em caminhos cheio de dificuldades como são todos os do Acre. Plácido chegava por um varadouro ao Barracão “Veneza”, do francês Leon, ao mesmo tempo em que por outro varadouro oposto entrava Rojas. Encontra­ram-se os dois no pequeno campo à frente da casa. Era manhã. O Major acreano Júlio Jataí, ao ver surgirem na orla da mata os primeiros bolivianos, deu aviso ao seu chefe no momento em que este subia a escada do citado barracão. Plácido desceu imediata­mente, dispôs a sua força e, em poucos minutos, travou-se a ação. Meia hora depois, Plácido estava completamente derrotado e fugia quase só por um caminho que vai ter a Empresa, ponto em que tomou uma canoa que foi deixá-lo em Catuaba, à 6 horas de viagem, descendo o Rio.

Dos 140 acreanos que comandava ficaram mortos 30, parte foi sair em “Bagé” na margem esquerda à 3 horas de subida, parte em “Capatará” muito acima e o resto desertou para o Iaco, inclusive o Major Jataí que ainda hoje lá estaria se não tivesse ido ao Acre a Expedição Olympio. Augusto Maria da Rocha Neves, prisioneiro da Revolta e amigo de Plácido ou pelo menos grato às atenções que diz ter recebido ele durante a prisão conta que, estando a tratar de uns feridos nos fundos do Barracão, quando cuidou em si estava só e deitou a fugir indo encontrar Plácido pelo meio da mata, já perto da “Empresa”. O 2° feito deu-se entre os mesmos chefes. Rojas, vencedor, em sua vez de ter perseguido o inimigo, como lhe ordenavam aliás as regras mais elementares da arte militar, deixou-se ficar na “Volta da Empresa” a consumir o resto da cerveja que os acreanos não puderam acabar do Barracão Leon.

Não tinha feito trincheiras e nem ao menos se lembrara de defender a parte do Rio que dominara e onde somente encontraria água para beber. Suas forças estavam reduzidas à metade pela moléstia e pelos maus tratos. Plácido voltou com o dobro da gente de Rojas, cercou-o e 6 dias depois rendia-se o chefe boliviano depois de ter curtido três de fome e sede. Morreram aí 7 acreanos. No 3° encontro os bolivianos dispunham de uma posição magnífica. Porto Alonso fica sobre uma vasta esplanada a cavaleiro do Rio que nesse ponto não tem mais de 70 metros na enchente. Tinham trincheiras na frente, no flanco direito e na retaguarda e uma espécie de fortins que dominava o flanco esquerdo ladeado por uma entrada do Rio. Plácido ocupava na margem oposta este flanco e à frente e graças ao valor e à habilidade de Sallinas e um pouco também à bravura de José Antônio Duarte, conseguiu manter-se 9 dias, depois dos quais se rendeu Porto Alonso tendo ainda munição de boca e de guerra para uma semana. Plácido tinha maior número de soldados e perdeu aí 18 homens.

No 4° tiroteio comandava a Força do Barracão Bahia o Major acreano Joaquim Nunes, preposto ([6]) de José Galdino, o qual dispunha de 80 e tantos soldados. Era uma bela posição descobrindo ao mesmo tempo o Rio e a mata, com um campo de 600 metros de frente por 300 de fundo aproximadamente e tendo alguma importância estratégica, por isso que daí parte um varadouro que vai ter a porvenir ([7]) no Tauamanu ‒ Rio de que é principal proprietário Nicoláo Suarez, boliviano e um dos mais temidos inimigos da Revolta. Nunes, como era de costume entre os acreanos [e nisto consistiam suas trincheiras] abriu grandes valados ([8]) em frente da casa, para o lado do Rio, portanto, e nele se distava ([9]) com sua gente todas as vezes que ouvia rumor. A gente de Suarez veio pela retaguarda e a de Nunes meteu-se nos buracos, de onde apenas botava a cabeça de fora para responder ao fogo inimigo. Com esse sistema de atirar, compre­ende-se facilmente, era necessária uma enorme quantidade de disparos para as trincheiras acreanas pela retaguarda e pelo flanco esquerdo. Nos próprios valados ficaram mortos 40 e tantos Soldados de Nunes, afora os que tendo-se rendido foram aí mesmo fuzilados. Calculam exageradamente em 70 o número de acreanos perdidos nesse tiroteio do Igarapé da Bahia. Tal é resumidamente a narração verdadeira dos “Combates da Revolução”. Dela se conclui:

1° que mesmo incluindo os fuzilados e as vítimas do “espicha” Gentil & Brandão, os quais montam a 15 ou 16, não chega a 150 o número dos mortos acreanos;

2° que a única vez que Plácido de Castro bateu-se em igualdade de condições com um militar, foi vergonhosamente batido e fugiu;

3° que no segundo feito da “Empresa”, Plácido lutou com o mesmo militar efetivamente bravo, mas desleixado e incompetente, o qual tendo apenas a metade da Força de que dispunha o Chefe acreano, carecia de recursos de boca e de guerra e ocupava uma posição imensamente longe de qualquer socorro;

4° que a Wencesláo Sallinas por um lado e por outro à cobardia da gente boliviana do Porto Alonso, se deve a tomada dessa Praça;

5° que o desastre da Bahia foi uma triste amostra da estupidez e do medo, da desordem e da fraqueza acreana;

6° finalmente, que Plácido será, como dizem, um homem valente, mas não teve em que dar prova de sua bravura.

Sei que além desses decantados “combates” muitos outros inventou e propagou a Revolta do Acre. Para que não me chamem de ignorante no assunto, e a fim de que se perceba o motivo por que os não cito, contarei história de alguns:

Um dia o comandante do “Rio Afuá”, sendo avisado do que os acreanos pretendiam apossar-se do seu navio, dirigiu-se ao Coronel Rojas pedindo-lhe garantias. Rojas deu-lhe 8 soldados que foram para bordo. O navio estava encalhado defronte da “Empresa”. Plácido atracou-o com 80 e tantos homens, a guarnição rendou-se e o “Rio Afuá” ficou desde então considerado presa boliviana de guerra e serviu à Revolta com o nome sugestivo de “Independência”. De outra vez Sallinas comandava uma pequena Força em reconhecimento perto do Porto Rico. Plácido chegou acompanhado do Alexandrino e de um Tenente-Coronel Alencar [não é o diplomata] que envergava uma vistosa farda de galões dourados. Estavam dentro de uma mata na qual havia uma vedeta ([10]) boliviana, que vendo Alencar destacar-se dos outros pela elegância do dólmã ([11]) supôs naturalmente que esse era o chefe e fez-lhe fogo. Alencar, impulsionado pela violência do choque, deu um grande pulo o caiu morto. Plácido e Alexandrino [conta Sallinas, amigo aliás, de ambos] atiraram-se ao chão e foram se arrastando até a primeira sapopema ([12]) para esconder-se enquanto a invisível sentinela fugia por sua vez.

Pois bem, esse fato é narrado como uma proeza acreana e o pobre homem vítima da sua vaidade pueril ‒ apontado como um herói da Revolução. E deste modo o resto. Em torno de acontecimentos simples como esses se inventaram-se lendas, sagraram-se mártires num exagero calculado e fabuloso e os jornais, como é de hábito, propalaram aos quatro ventos os grandes exemplos acreanos de coragem, de patriotismo e de abnegação.

Hyppólito Moreira, que era uma espécie de correio da Revolta e Francisco Oliveira, um Rio-grandense do norte entusiasta que nunca entrou em fogo e que, parece, agir de boa-fé, foram a princípio os ecos principais dessas mentiras de guerra que tanto faziam rir um caçador da “Empresa”, Felix Gralhada, conhecedor minucioso da gente e das manhas acreanas. Que boa gargalhada não daria ele, o Felix, se lhe dissessem que um almanaque do Rio calcula em 200 o número de mortos e em 400 o de prisioneiros bolivianos de porto Alonso!

Assim se escreve a história entre os chamados amigos da chamada Causa Acreana. Que bom proveito lhes faça. Mas que o País conheça essa história tal como é para não andar entoando loas disparatadas a meia dúzia de aventureiros que nunca de virtudes deram provas, senão de uma ganância intransigente e funesta.

Manaus, novembro de 1903.

Alípio Bandeira, 2° Ten de artilharia (JQV, n° 229/230)

Quo Vadis?, n° 232
Manaus, AM – Sexta-feira, 11.12.1903
No País da Miséria – Os Prejuízos Acreanos
VIII   

A acreditar-se o que dizem alguns chefes da revolta não é com pouco dinheiro que se conseguiria indenizá-los dos prejuízos que tiveram. O mesmo espírito de exagero com que transformaram em atos de heroísmo os simples tiroteios de buraco e em verdadeiras catástrofes a morte de meia dúzia de caboclos anima os acreanos – oh, com maior vigor ainda! – no tocante às perdas pecuniárias que sofreram e que abnegadamente encaram. Não há no Acre quem não se diga arruinado pelo sorvedouro da Revolução que ninguém poupou. E se os patrões calculam por centenas e milhares de contos de réis a contribuição que lhes coube, não é de admirar que os pobres trabalhadores, que foram de fato, as verdadeiras vítimas, orcem por dezenas a sua. Hyppólito Moreira, Coronel e correio acreano, por ordem de Plácido de Castro, acompanhou de Porto Alonso até Empresa o primeiro contingente da Expedição Olympio, composta do 4° Batalhão de Artilharia e da ala esquerda do 15° Batalhão de Infantaria.

A bordo, em palestra com oficiais do 4° disse Hypólito que quando rebentou a Revolução abriu seus armazéns e entregou-lhe 200 contos de réis em mercadorias. E ao chegar à palavra “armazéns” Hypólito fez um gesto circular como para indicar que muitos eram. José Galdino calcula em 3.000 contos a soma por ele despendida com a revolta. Rôla, de “Benfica”, em 180 contos o seu prejuízo. E nesse diapasão de contos o mais curioso é que cada um assegura ter sido o maior, senão, o único contribuinte. Não é isso, contudo o que dizem outros chefes e menos é o que afirmam os pobres seringueiros e os desolados turcos efetivamente esbulhados nas ninharias que possuíam. Segundo esses, os tais prejudicados apossavam-se de tudo que lhes caia nas garras e nada do que era deles deixavam resvalar nos misteriosos cofres da “Revolução”.

Assim, de acordo com a opinião geral, Hyppólito era, como seus irmãos, um simples cargueiro da “Empresa” sem fundos de reserva conhecidos, quando foi associar-se a um velho analfabeto do “Bagaço”, que sentindo perto a morte queria regularizar os seus negócios.

Morto o velho do “Bagaço”, Hypólito ficou com uma pequena fortuna que em pouco tempo esbanjou, de sorte que ao rebentar a revolta andava comendo na cauã alheia por não ter o que comer na sua e por não achar quem lhe vendesse fiado.

José Galdino ([13]), ao passo que enterrava as suas mercadorias para não serem consumidas pela soldadesca, arrecadava quanto feijão e milho encontrava nas barracas dos trabalhadores e até quinquilharias e sedas requisitou de espanhóis e turcos para consumo da tropa. Rôla ([14]), finalmente, cujo negócio não chegava para repartir com as despesas da força acreana, conseguiu encher um seu armazém de mercadorias compradas para a revolta com dinheiro dela. De modo que a verdade vem a ser afinal de contas esta: que as pessoas que nada perderam e muito lucraram com a última aventura acreana, são justamente aquelas que de maiores prejuízos se queixam.

Houve, sem dúvida, patrões que por gosto ou contra vontade tiveram de concorrer com alguma coisa, sobretudo no começo da rebelião, quando ela não dispunha ainda dos recursos que tantos foram mais tarde. Maia e Leite do “Xapuri”, Raymundo Vieira Lima, Francisco Antônio e Theotônio, de “Iracema”, José Dias, do “Riozinho”, etc. deram, a princípio por vontade e por força depois, gêneros e víveres para sustento da tropa. Mas todos eles multiplicam por 10 o prejuízo sofrido e depois desta fácil operação aritmética acrescentam ainda coisas de que não fazem cálculo por não valer a pena em comparação da enorme importância principal. E ninguém estranha, ainda que critique, a mentira; nem há mesmo que estranhar diante da audácia de um Hyppólito Moreira ou de um José Galdino.

Para que se faça uma ideia justa do que são as reclamações do Acre e também para acentuar ainda uma vez o caráter do seu povo, contarei o seguinte fato característico: em viagem de canoa para cima eu e o Major acreano Júlio Jatahy descansamos em casa de um caboclo cearense que sustentava com o seu trabalho um pobre negro aleijado e cachaceiro.

Logo que chegamos começou o negro a queixar-se dos prejuízos que lhe dera a revolta e que andavam em 50 contos de réis.

‒  E quem era o senhor? Perguntou-lhe Jatahy.

‒  Eu era fornecedor e … outras coisas da Revolução – respondeu o negro velho espichando a conjunção das outras coisas.

No Acre o indivíduo habitua-se facilmente a arrotar fortuna que nunca teve e além disso vicia-se em querer tudo de graça e nada ceder do que é seu.

O Dr. Paula Freire, médico do Exército, que por ordem do General Olympio não só tratou dezenas de patrões e seringueiros, mas forneceu-lhes gratuitamente medicamentos muitas vezes caríssimos, desejando levar para o Sul um saco de caucho encomendou-o e pediu a quantos clientes teve. Pois esse homem, apesar dos 6 meses que demorou na “Empresa”, teria voltado do Acre sem o desejado saco se na última hora Francisco de Oliveira não lhe mandasse um. Nas vésperas de sua partida passou-se pela porta conduzindo um par de sapatos de borracha, um seringueiro a quem mais de uma vez tratou de moléstias.

O Dr. para experimentá-lo perguntou-lhe se não lhe dava os tais sapatos e o caboclo respondeu prontamente que custavam 8:000 rs [8.000 réis]. Não é meu intuito [e isso seria uma flagrante injustiça] dizer que os patrões do Acre nenhum prejuízo tiveram na manutenção da Força Armada. Para que perdessem bastava que fosse diminuindo o fabrico da borracha, o que naturalmente resultou do desvio do pessoal com que contava.

O que eu quero tornar claro é que os principais chefes, Plácido de Castro, Gentil, Gastão, Hyppólito Moreira, Brandão, José Galdino, Alexandrino, Rôla, etc., esses nada perderam mesmo porque nada tinham a perder.

De todos José Galdino é o único que por ser negociante podia passar por pessoa abastada. Mas ninguém ignora no Acre que José Galdino deve 1.115:000$000 réis, a Fiúza, do Pará 90 e tantos a neves, 11, a Joaquim Esteves, comandante do “Maria Thereza”, afora uma infinidade de outras contas menores; como também ninguém ignora que os dois seringais que possui deve-os ainda a Augusto Neves e aos herdeiros de Victor Maia.

Os demais, excetuados Plácido, Gentil e Rôla, fazem parte dos chamados “vagabundos do Bagaço”, que caracteriza não só a falta de ocupação mas também a de meios pecuniários. Quanto ao trabalhador esse perdeu tudo quanto tinha desde o feijão até o rifle e ficou a dever o que comeu durante a revolta. De sorte que acaba ele o seu débito estava aumentado de 5 ou 6 contos de réis, além de que era preciso comprar de novo as coisas mais necessárias.

Bode expiatório de todas as traficâncias comerciais, compra mercadorias avaliadas por preços fabulosos e recebe pelo produto do seu trabalho o preço que lhe marca o patrão em falsas contas de venda. Mas esta miséria não satisfaz a ganância acreana. Inventam-se revoluções. E o rude seringueiro tem que fingir-se soldado, há de sujeitar-se a todos os desmandos oriundos da estupidez a serviço de más índoles e perde o tempo e perde o trabalho e perde a saúde, que já tinha precária e é feliz! ‒ oh muito feliz! ‒ quando não perde a mulher.

E na própria terra da promissão atrás da qual esperançoso correra deixando longe o velho telheiro paterno e amigo, aí mesmo é que vai ser torturado pela escravidão, pela moléstia e pela fome, até que um dia três fúnebres tiros de rifle anunciem pelos arredores a chegada da morte. E lá fica o desgraçado num barranco remoto, na infinita nostalgia do mato, num canto ignorado e triste Canaã ([15]) negra do Acre. Povo infeliz, cujo sofrimento compunge, cuja cobardia revolta!

Manaus, outubro de 1903.

Alípio Bandeira, 2° Tenente de Artilharia (JQV, n° 232)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 07.02.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia     

JQV, N° 189. No País da Miséria – Ainda a Revolta – V – Brasil – Manaus, AM, Quo Vadis?, n° 189, 24.10.1903.

JQV, N° 229,230. No País da Miséria – Ainda a Revolta (Reeditada) – VI/VII – Brasil – Manaus, AM, Quo Vadis?, n° 229/230, 06 e 09.12.1903.

JQV, N° 232. No País da Miséria – Os Prejuízos Acreanos – VIII – Brasil – Manaus, AM, Quo Vadis?, n° 232, 06 e 11.12.1903.

OAP, n° 293. Coronel João de Oliveira Rôla – Brasil – Sena Madureira, AC – O Alto Purus – n° 293, 17.05.1914.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Scott: Sir Walter Scott, o criador do verdadeiro romance histórico.

[2]   Ossian: na mitologia céltica, Ossian, é o Rei de Morven, na Escócia. Em 1760, James MacPherson divulgou o resultado de uma pesquisa pelas Highlands através de um poema épico, escrito por um bardo chamado “Ossian”.

[3]   Burley: um dos tipos mais comuns de tabaco produzidos na Virgínia.

[4]   Gasnete: gasganete ou garganta.

[5]   Fingal: em 1829, Felix Mendelssohn Bartholdy passa o verão na Escócia e, ao visitar a Ilha de Staffa – arquipélago das Hébridas, conhece a “Gruta de Fingal” que o inspira a compor o poema sinfônico “As Hébridas”.

[6]   Preposto: representante.

[7]   Porvenir: desembocar.

[8]   Valados: vala pouco profunda para defesa de uma propriedade.

[9]   Distava: ficava.

[10]  Vedeta: sentinela.

[11]  Dólmã: túnica usada pelos oficiais do Exército.

[12]  Sapopema: raiz tabular que cerca o tronco de muitas árvores.

[13] José Galdino D’Assis Marinho: José Plácido de Castro, em fevereiro 1902, estava demarcando o Seringal “Vitória”, de José Galdino, Alto-Acre, quando foi convidado a assumir comando das Forças Acreanas.

[14] Coronel João de Oliveira Rôla: é um dos gloriosos veteranos legionários da velha guarda do inolvidável Plácido, ele que é um dos mais beneméritos fundadores do Território e como tal, no Acre, um dos homens mais justamente prestigiosos; não desse prestígio fictício, oriundo das posições oficiais e como elas transitório, mas prestígio de verdade, cuja explicação está, principalmente, na honradez do seu nome, na pureza dos seus sentimentos, na discrição de sua natural modéstia, na cordura de sua índole, na bondade de seu ânimo, virtudes estas já experimentadas e postas à prova durante quase três lustros de sua laboriosa existência no Acre. (OAP, n° 293)

[15]  E nos trouxe a este lugar, e nos deu esta terra (Canaã), terra que mana leite e mel. (Deuteronômio 26:9)