EPOPEIA ACREANA
Inimigos na Trincheira! – II
A meio caminho de “Xapuri”, recebe o caudilho importantes notícias procedentes do Rio Caramanu, onde mantinha, permanentemente, um destacamento para observação e vigilância. Pelas informações e por seus cálculos, as forças do Presidente General Pando deviam subir pela zona de “Porto Rico”.
Dias de grande atividade para Plácido de Castro, a qual se denuncia até no estilo nervoso em que assinalou suas ocorrências no diário de guerra:
Parti a todo vapor para o “Xapuri”, fazendo baixar por “Boa Fé”, próximo de “Iracema”, toda a guarnição de “Xapuri”, bem como o Batalhão que se achava próximo ao “Igarapé da Bahia” [Batalhão Acreano, sob o comando do Ten-Cel Xavier]. Com esta força, que foi paga de víveres para cinco dias, acondicionados em jamachis ([1]) e em alguns cargueiros, segui para “Gironda”, tendo feito seguir na frente o Major Daniel Ferreira com cinquenta homens, com ordens de assumir o comando da vanguarda. Chegando eu a “Gironda”, rompia a vanguarda fogo contra “Porto Rico”, que logo é sitiado com forças que enviei. Fiz seguir também o piquete de descoberta para “Lisboa”. Dispus tudo e baixei com o resto das forças no dia seguinte a fim de dar o assalto a “Porto Rico”.
Está para findar o mês de abril. Com quatro dias de contínuo e intenso combate, as forças bolivianas começam a dar mostras de debilitação.
Ainda bem. Porque a situação dos revolucionários ameaça tornar-se inquietante. Em carta ao comandante do piquete estacionário em “Boa Fé”, datada de 25, Plácido fizera “sentir a necessidade de uma medida extraordinária, no sentido de melhorar os meios de transporte”, pois “a fome é nossa inseparável companheira nesta região”. O problema é vencer a fome, que a vitória já se delineou de modo claro. O Exército do Gen Pando se encontra inapelavelmente sitiado. Pela frente e pelos flancos, envolvem-no os mil e duzentos acreanos sob o comando de Plácido de Castro. Na retaguarda, um grande Lago cujo limite extremo se continua por um pantanal intransponível ([2]).
Plácido considera iminente a hora da rendição do poderoso inimigo. Questão de mais um golpe de habilidade, que ele chega a esquematizar mas não pode levar a termo, porque um acontecimento de todo inesperado modifica integralmente a situação. Chega o Major Gomes de Castro, do Quartel General das forças de ocupação, que traz um ofício do Gen Olympio da Silveira para Plácido de Castro:
Governo Militar e Comando em Chefe das Forças de ocupação do Território Setentrional do Acre.
Quartel-General na Empresa, 19 de abril de 1908.
Sr. Cel. Dr. José Plácido de Castro,
Saudações.
Pelo jornal Amazonas, de 26 de março findo, que vos remeti, tereis tido conhecimento do convênio diplomático de 21 do dito mês, entre o nosso Governo e o da Bolívia.
Tive confirmação oficial do mesmo e de acordo com ele tenho de tomar várias medidas que vos serão comunicadas verbalmente em “Capatará” pelo Coronel Torres Homem, Chefe do Estado-Maior junto a este Governo, esperando que ali comparecereis para o aludido fim.
Renovo meus sentimentos de alto apreço e consideração.
Saúde e fraternidade.
General Olympio da Silveira.
Sem perder um minuto, Plácido de Castro despacha o Coronel José Brandão para “Porto Rico” ‒ agora com incumbência diversa daquela com que imaginava completar o sítio ‒ sob a recomendação de dar à sua viagem a maior rapidez possível.
Brandão parte em canoa tripulada por vários remadores ágeis. Leva ordem de fazer cessarem incontinenti as hostilidades contra o invasor. Mas não o chega a fazer. Porque, ao aproximar-se do reduto das forças revolucionárias, já era alta noite, tornando-se impossível a comunicação imediata com o adversário.
E no dia seguinte, Pela manhã, quando se preparava para cumprir a missão, defrontou a bandeira branca, que o General José Manuel Pando mandara hastear, a fim de fazer ciente o inimigo de que também fora inteirado do “modus vivendi” estabelecido entre o Brasil e a Bolívia, por instrumento de 21 de março de 1903.
No dia imediato ao de sua chegada, 27 de abril, regressa o Major Gomes de Castro, levando ao General Olympio da Silveira a resposta de Plácido:
ESTADO INDEPENDENTE DO ACRE
N° 8. “Gironda”, 26 de abril de 1903.
Ao Cidadão General de Divisão Olympio da Silveira.
Rio Acre.
Com prazer acuso o recebimento das vossas cartas de 16 e 19 do corrente, de “Empresa”, que respondo:
Tomei conhecimento do convênio a que vos referis, entre o Brasil e a Bolívia, e estou firmemente disposto a respeitá-lo integralmente, como todas as deliberações do Governo da minha Pátria.
Atualmente o Exército Acreano ocupa toda a região compreendida de “Porto Rico” para Oeste, pelo Rio Tauamanu acima, compreendendo “Costa Rica”, “Porvenir”, etc, sendo que me achava disposto a ocupar toda a fronteira do Estado Independente do Acre, sem, contudo, ultrapassá-la um palmo.
Em vista, porém, das comunicações que me fizestes do acordo, não irei além do ponto em que me acho, tendo ontem mesmo escrito um cartão ao comandante da guarnição de “Porto Rico” [pois já estava com essa praça quase em sítio], pedindo-lhe suspensão de armas até a chegada do vosso ofício.
Não me posso furtar ao dever de declarar-vos a agradável impressão que me causou a extraordinária pontualidade do Sr. Major Gomes de Castro, que com a mais nítida compreensão da sua delicada missão, atravessou a distância que nos separa do Acre em menos de três dias, vindo chegar no momento mais propício, pois com dez horas de tardança não teria evitado o assalto a “Porto Rico”, e, por conseguinte, sério derramamento de sangue.
No momento em que esse oficial chegou, acabava de ser dividida a força para seguir a tomar posições. Ao Sr. Major Gomes de Castro instruí sobre as nossas posições e terrenos por nós ocupados.
Queirais, pois, deliberar se é conveniente ou não minha ida agora a “Boa Fé”, antes da retirada do grosso das tropas acreanas para “Xapuri”, ponto de aquartelamento.
Saúde e fraternidade.
J. Plácido de Castro.
Logo após a partida do Major Gomes de Castro, regressa o Coronel José Brandão, que fora mandado como emissário a “Porto Rico”. Traz para ser lida pelo seu verdadeiro destinatário – o Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias – o documento escrito pelo comandante da guarnição sitiada:
Ejército Nacional.
Jefatura del Batallón 5° de línea, Barraca Puerto-Rico, abril 26 de 1903.
Al Señor Jefe de las Fuerzas que atacan Puerto-Rico.
Banda del Río.
Señor,
Comunico á Ud. que el Señor Capitán General del Ejército boliviano me encarga de decir a Ud. que por acuerdo de 27 de marzo de 1903, suscrito en La Paz, entre el Exmo. Señor Eliodoro Villazon, Ministro de Relaciones Exteriores de Bolivia y el Exm° Señor Eduardo Lisbôa, Enviado Extraordinario del Brasil ante el Gobierno de Bolivia, ha quedado totalmente definida la situación internacional creada entre ambos países.
Tengo el honor de incluir a Ud. copia del mencionado acuerdo, impresa en La Paz e recibida hoy. Las tropas bolivianas no han avanzado del Orton, conforme el inciso b de la cláusula 3° del acuerdo.
Corresponde a Ud. retirar las suyas, a no ser un “móvel” ([3]) distinto y por mi ignorado, el que guíe sus procedimientos, de cuja ejecución Ud. será responsable.
Puede efectuarse con plena seguridad la retirada de sus fuerzas a Gironda y Chapury. Hemos permanecido a la defensiva y en ella nos mantendremos, siguiendo instrucciones del General Pando, Capitán General del Ejército.
Sin más objeto, tengo el honor de suscribirme a atento servidor.
German Cortes, Jefe del Batallón 5°.
Plácido de Castro agasta-se vivamente com a alusão pérfida ‒ “a no ser un ‘móvel’ distinto” ‒ e responde com azedume e energia:
ESTADO INDEPENDENTE DO ACRE
Gironda, 27 de abril de 1903.
A Germán Cortés, Chefe do 5° Batalhão e Comandante da Guarnição de Porto Rico.
Às 11 e meia horas da noite de ontem, recebi o vosso ofício, datado também de ontem, comunicando-me o acordo havido entre os governos do Brasil e Bolívia e do qual tivestes a gentileza de enviar-me uma cópia. Ontem mesmo vos escrevi um cartão neste sentido, pois, tendo na tarde do dia anterior conhecimento do acordo, por comunicação que me fez o Sr. General Olympio, Comandante das tropas brasileiras no Acre, mandei incontinenti, à Força Acreana que ocupa posições em frente de Porto Rico, ordem para suspender as hostilidades, pedindo-vos no mesmo cartão idêntico procedimento.
Isso fiz assim que chegou à minha presença o emissário do General Olympio, que segue agora para aí.
Dizeis competir-me retirar as forças acreanas de frente de Porto Rico, a menos que “um móvel por vós ignorado” guie a minha conduta e que neste caso serei eu o responsável. Sinto que assim vos tenhais exprimido em um documento de paz…
O móvel que guia meus passos nesta luta não deve ser por vós ignorado, mas se o é, vos declaro que luto pela autonomia do Acre.
E, quanto à minha conduta, tem sido julgada pelos vossos patrícios vencidos como cavalheirosa.
Quanto ao tornar-me responsável pelos meus atos, sempre o fui, mormente na luta que sustentamos.
Sobre a retirada das tropas acreanas das posições que ocupam em frente de “Porto Rico”, só depois que me entender com o General brasileiro poderei resolver, apesar de agirmos independentemente, como é natural supor. Suspendendo as hostilidades, passamos como vós à defensiva e vós e as vossas forças poderão confiar em nossa fidelidade.
Saúde e fraternidade.
J. Plácido de Castro, Comte. em chefe do E. Acreano.
E ainda não satisfeito, decide entender-se pessoalmente com o Capitão Germán Cortés, como se lê em cartão escrito por Plácido a 28 de abril.
Um cartão eloquentíssimo, aliás, para caracterizar o feitio simplório do caudilho, e por onde se vê que, só nessa altura dos acontecimentos, o comandante de uma tropa sitiante de forças chefiadas pelo Presidente de uma República, resolve lembrar-se de pedir que lhe remetam a espada e o fardamento!
Coronel Hipólito: Acho-me a caminho para o nosso acampamento em “Porto Rico” onde vou entender-me com o Comandante da guarnição boliviana. Comigo também segue o representante do General Olympio. Mande-me com urgência um portador trazendo minha espada e meu fardamento, bem como as últimas notícias.
Mande para cá o Tenente Dantas, ainda que esteja com parte de doente. Organize o serviço de comboios, pois a fome aqui já não vai muito fácil de suportar-se.
J. Plácido de Castro.
Quer a espada. O fardamento. As botas também, como pede na carta de dias após, em que volta a referir as torturas da fome:
Coronel Hipólito:
Estamos em suspensão de armas.
Peço-lhe o obséquio de regularizar a vinda dos comboios a fim de não passarmos mais fome. Com o meu fardamento, mande-me as botas e espada. Mande-me também no comboio tabaco, sabão, sal e açúcar, além das demais mercadorias. Diga ao Gentil que não entre com gente, que siga para “Xapuri”, e mande a lancha estacionar em “Boa Fé”.
Plácido.
[Margem esq. do Orton, em frente a “Porto Rico”] (LIMA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
LIMA, Cláudio de Araújo. Plácido de Castro, um Caudilho Contra o Imperialismo – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1952.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Jamachis: ou jamaxis. Espécie de cesto, feito de timbó, e em que os nativos transportam gêneros e mercadorias nas costas.
[2] Esse fato, negado por alguns críticos militares da campanha de Plácido de Castro, é comprovado por uma carta do próprio General Pando, reproduzida no livro de Nicolau Suarez. (LIMA)
[3] Móvel: termo escrito propositadamente em português. Poderia o missivista ter redigido a palavra “motivo” que possui igual grafia e significado em ambas as línguas.
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