EPOPEIA ACREANA

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

Apontamentos Sobre a Revolução Acreana – IV

Notas Inéditas de Plácido de Castro ([1])

Entretanto, esse Exército não tinha serviço de observação e reconhecimento. O seu acampamento era o atestado da inépcia dos seus chefes. As bocas de fogo estavam voltadas para o Rio, que era navegado por embarcações nacionais, e com as culatras para o varadouro que conduzia à Bolívia, distante apenas 50 metros.

Segui, pois, para “Xapuri”, a fim de prosseguir na campanha. Ao chegar à “Empresa” fui falar ao General Olympio, visto me haver ele comunicado que o General Pando atravessara o Abunã. Não tinham fundamento as informações que lhe haviam dado. Perguntou-me por que eu não esperava qualquer solução por parte do Governo brasileiro, ao que lhe respondi que, não tendo certeza dessa solução, eu ia invadir a Bolívia novamente pelo “Tauamano”, para levar ao inimigo a perturbação que ele nos traria se invadisse o Acre Meridional.

Estávamos em abril; nessa mesma noite segui viagem a bordo de um navio de Martins Ribas & C., que trazia carga para a Revolução. Em “Benfica” fi-lo descarregar no dia seguinte [Sexta-Feira da Paixão], seguindo viagem em lancha da Revolução. Ao chegar a “Iracema” tive comunicações de “Caramano”, onde tinha força em observação sob o comando do Major Salinas.

Fiz seguir o piquete que estava em “Iracema”, conjuntamente com outro postado ali perto e preparei-me para fazer a invasão por “Porto Rico”, onde eu previa deviam subir as forças do General Pando. Parti a todo o vapor para o “Xapuri”, fazendo baixar por “Boa Fé”, próximo de “Iracema”, toda a guarnição de “Xapuri” bem como o batalhão que se achava próximo ao Igarapé da Bahia [batalhão acreano, sob o comando do Tenente-Coronel Xavier].

Com esta força, que foi paga de víveres para cinco dias, acondicionados em jamachis ([2]) e em alguns cargueiros, segui para “Gironda”, tendo feito seguir na frente o Major Daniel Ferreira com 50 homens, com ordem de assumir o comando da vanguarda. Chegan­do eu à “Gironda” rompia a vanguarda fogo contra “Porto Rico”, que logo é sitiado com forças que enviei.

Fiz seguir também o piquete de descoberta para “Lisboa”. Dispus tudo e baixei com o resto das forças no dia seguinte, a fim de dar o assalto a “Porto Rico”. Já estávamos com quatro dias de fogo e o inimigo começava a enfraquecer. Pela manhã, quando fazia o Coronel José Brandão seguir para “Porto Rico” com as forças, recebi comunicação do General Olymplo da Silveira, em ofício que me entregou o Major Gomes de Castro, de que fora assinado o “modus vivendi” entre o Brasil e a Bolívia, de cujo conteúdo fui inteirado.

Durante todo esse dia a luta fora encarniçada em “Porto Rico”, prolongando-se pela noite a dentro. Em presença do Maj Gomes de Castro imediatamente dei contraordem às forças do Cel Brandão e mandei este descer a toda a pressa em canoa até “Porto Rico”, com ordem de suspender as hostilidades.

O Cel Brandão chegou à noite a “Porto Rico”, e quando pela manhã do dia seguinte se dispunha a comunicar ao inimigo o “modus vivendi”, este levantou bandeira branca para o mesmo fim. O Gen Pando fazia a mesma comunicação em ofício assim endereçado: “Al Comandante de las tropas que atacan Puerto Rico”. O Maj Gomes de Castro, no dia seguinte, levou a minha resposta ao Gen Olympio.

Chegou ao meu acampamento também o Alferes Azevedo Costa, do 36°, que trazia um ofício do Gen Olympio para o Gen Pando, ofício em que, segundo informou o referido Alferes, aquele propunha a este uma conferência. O dito Alferes adiantou-se logo em comunicar aos bolivianos que dentro de três dias o Gen brasileiro ali estaria.

Regressando do acampamento inimigo o tal Alferes se mostrou muito penhorado com o tratamento que recebera. Dizia que não pensava que o Gen Pando o tratasse tão bem, pois até lhe tinha dado barraca”. Seria possível que este oficial, portador do ofício do Gen brasileiro, pensasse em ser recebido a cacete?

Não duvido. Os bolivianos diariamente, desde então, me perguntavam pelo Gen brasileiro, que não vinha. Para furtar-me a vergonha daquelas perguntas, motivadas pelas informações do Alferes, resolvi ir ao Acre falar ao General Olympio, o que fiz em menos de três dias. Em caminho encontrei um oficial boliviano que, passando pelos nossos acampamentos, se dirigia a “Porto Rico”. Perguntei-lhe com que licença ia ele atravessando um caminho estratégico que acabávamos de abrir, ao que um oficial acreano, que o acompanhava, respondeu-me que com ordem do General Olympio [Grande perfídia!].

Ao chegar ao Acre, em “Boa Fé”, não encontrei o General Olympio, que havia baixado para “Empresa”. Estavam sofrendo fome as nossas forças no Tauamano, onde nos alimentávamos de milho seco e aipim, pelo que dei ordem ao ajudante General do Exército acreano, que fizesse reunir todos os muares existentes na vizinhança e os enviasse com víveres para “Gironda”. Um proprietário recusou-se a cumprir estas ordens, já estimulado pelos oficiais do 2° Batalhão, que o Gen Olympio fizera acampar em “Boa Fé”, minha base de operações. Esses oficiais estimularam os meus soldados à desobediência. Por minha ordem foi preso o tal proprietário, que era um João Costa, pelo ajudante-General e recolhido à guarda da força.

O General Olympio estava na “Empresa” e eu já no “Tauamano”, de regresso. Os oficiais do 27° Batalhão do Exército, sob o comando do Major Carneiro, foram tirar o preso, que na confusão se evadiu. Os poucos soldados acreanos, feridos pela indisciplina que lhes sugeriam os oficiais do Exército, dividiram-se. Uma parte deles continuou a acatar as ordens dos oficiais acreanos e a outra parte passou para o acampamento do 27° Batalhão.

O Comandante do 27° imediatamente oficiou ao General Olympio, relatando os acontecimentos da forma que lhe convinha. O General Olympio chega e, sem se entender com o Ajudante-General do Exército Acreano, manda formar incontinenti o 27° batalhão, e, com a brutalidade que lhe é peculiar, cercou a casa em que se achava, o meu Ajudante-General e o Quartel-Mestre-General e os prendeu, injuriando-os com o epíteto de assassinos. Em seguida mandou tomar conta da flotilha acreana, cujas bandeiras foram arriadas. Vários oficiais meus foram presos e metidos em barraquinhas de campanha, sob a guarda de um sargento. O meu ajudante de ordens que estava licenciado, foi também conduzido a uma dessas barraquinhas e todos postos de sentinela à vista. A covardia desses Alferes de infantaria espalhou logo o boato disparatado de que eu ia atacar o acampamento do 27° e, ao que diziam, era preciso tomar os varadouros. Infelizes! Um dos meus oficiais, Clynio Brandão, que assistiu ao início de todas essas cenas, caminhando noite e dia a pé, chega a “Tauamano” e me avisa de tudo.

Recebi este oficial às 12 horas da noite e à uma hora em ponto estava em marcha com trezentos homens, para o Acre, deixando o Coronel Brandão à frente das forças de “Porto Rico”.

No dia 11 de Maio cheguei ao “Ina”, onde encontrei um comboio. Vi logo que o comboeiro sabia de muita coisa. Fi-lo prender e o interroguei, confessando-me tudo que lá fora se dizia. Acampei para a refeição e seguimos à noite. Às 6 horas, mais ou menos, o meu piquete da vanguarda assinalou a presença de força. Feito o reconhecimento, verificou-se ser uma força de infantaria comandada pelo Tenente Veríssimo. Parte dessa força era de linha e parte de acreanos que para ela se haviam passado. O General Olympio, na suposição de que eu não viesse com força, mandou-o para me prender. O Tenente não soube explicar-se e, em lhe dizendo eu qual a sua verdadeira comissão, negou peremptoriamente, sob a sua “palavra de oficial do Exército”.

À noite continuei a marcha, este oficial regressou também com os seus soldados. Em chegando pela manhã a um ponto em que o varadouro se bifurca para “Boa Fé” e “Iracema”, fiz a minha força seguir para este lugar e disse ao Tenente que podia seguir para o seu acampamento, levando, porém, uma carta que nesse momento escrevi ao General Olympio, na qual lhe disse que, não compreendendo as razões do seu procedimento, havia resolvido não sair em “Boa Fé”, minha base de operações, mas em “Iracema”, onde tomaria, com os meus companheiros, o destino que a situação excepcional, que ele havia criado, me aconselhasse, ficando, porém, ele certo de que quem se tinha assim sacrificado pela Pátria, dificilmente se deixaria enxovalhar.

Os soldados acreanos que acompanhavam o Tenente quiseram acompanhar-me; eu, porém, os fiz voltar com ele ao 27° batalhão, onde deveriam ficar por se haverem tornado indignos de nós. À tarde chegamos a “Iracema” e momentos depois ali aportava uma lancha trazendo um Capitão do Exército com este recado do General Olympio:

– O Sr. General manda dizer que está de posse da sua carta e lhe envia esta lancha para que vá ter uma conferência com ele, garantindo-lhe que não será desfeiteado.

Respondi-lhe:

– Diga ao Sr. General que estou de posse do seu recado, que não aceito a conferência e que também não me deixarei desfeitear.

O Capitão regressou.

No dia seguinte publiquei uma ordem do dia, dissolvendo o Exército Acreano, visto o General brasileiro ter invadido o Acre Meridional e assumido clandestinamente o seu Governo, que aliás não estava acéfalo. Todos seguiram armados para as suas casas, e eu baixei com os meus oficiais que desejaram descer. Em caminho vimos, desolados, os armazéns da Revolução entregues ao saque, por ordem do General Olympio. Descemos para Manaus, encerrando desta forma a parte mais profícua da Revolução.    Plácido de Castro (CASTRO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

CASTRO, Genesco de Oliveira. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia São Benedicto, 1930.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Escritos a pedido de Euclides da Cunha quando com ele o autor viajava, em 1906, de Manaus para o Rio. Pretendia aquele escritor ocupar-se dos sucessos que trouxeram o Acre para o Brasil. (CASTRO)

[2]   Jamachis: espécie de mochila feita de cipó e de taquara; usada naquelas paragens. (CASTRO)