EPOPEIA ACREANA
Apontamentos Sobre a Revolução Acreana – III
Notas Inéditas de Plácido de Castro ([1])
A 10 demos combate ao inimigo, derrotando-o completamente. Este se compunha de 100 homens e o combate durou apenas 35 minutos, terminando com avultadas perdas nas forças contrárias. Destruímos trincheiras e casas e regressamos a “Xapuri”. Levamos em redes oito homens feridos, inclusive um Capitão. De “Xapuri” marchamos com quatrocentos homens para o Barracão Santa Cruz, no Alto Acre, onde diziam achar-se uma numerosa força boliviana.
Encontrando apenas vestígios do inimigo, resolvi a marcha novamente para o Tauamano, a fim de atacar “Porvenir”. Só existia um prático de tal caminho, um italiano, Ernesto, mas este homem tomou-se de tanto pavor que não conseguiu acertar o caminho.
Segui para o Igarapé do Bahia a fim de por ali entrar em “Porvenir”, mas em caminho recebi comunicação de “Bom Destino” dizendo que os navios mercantes já começavam a chegar a “Caquetá”. Urgia, portanto, descer, e assim o fiz. Nos primeiros dias de janeiro, as nossas forças se achavam em “Bom Destino”, “São Jerônimo” e “Caquetá”.
Neste porto fiz várias compras aos comandantes dos navios e iniciei o sítio de “Porto Acre”. Mandei abrir um varadouro contornando o terreno onde se deveria ferir o combate.
No dia 13, achando-se tudo pronto, marquei o combate para o dia seguinte, às 10 horas da manhã. Oficiei ao Governador boliviano, em “Porto Acre”, oferecendo-lhe o nosso hospital de sangue para nele serem recolhidos e tratados os feridos. Respondeu-me em linguagem descortês, recusando o meu oferecimento ([2]). Às sete horas da noite ocorreu um desastre em nossas forças. Ao partir do ponto em que se achava o comando em chefe [ao Sul da linha Cunha Gomes], uma lanchinha, rebocando um batelão com 60 homens, este adernou. Teriam todos morrido afogados se não fossem as prontas providências que dei no momento e o auxílio que recebemos das tripulações dos navios ali fundeados. Felizmente a noite era de claro luar. Apenas morreram quatro homens. Às 11 horas da noite suspendi a ordem do ataque que estava marcado para o dia seguinte.
A 14, em pessoa, distribui as forças nas posições que deveriam ocupar, para partirem para o combate. Acampei acima de “Porto Acre” com o Batalhão “Independência”, sob o comando do bravo e leal Cel José Brandão. Neste dia se me apresentou o Dr. Gentil Norberto, dizendo querer entrar em combate, disposto a cumprir todas as ordens que eu lhe desse. Coloquei-o como meu ajudante.
Às 9 horas do dia 15 de janeiro rompemos as hostilidades e às 2 horas da tarde já ocupávamos posições em campo aberto a 120 metros das trincheiras inimigas. As nossas perdas nesse dia subiram a 50, entre mortos e feridos. A sede nos devorava.
Na noite de 15 para 16 foi tal o trabalho de sapa e de abastecimento às linhas, que, ao amanhecer, todas as nossas forças estavam entrincheiradas e abastecidas de víveres e água, sendo esta acondicionada em sacos “acauchados” ([3]). Urgia que fizéssemos descer o navio “Independência”, a cujo bordo tínhamos borracha, com a qual devíamos comprar munições. O Coronel Alencar foi encarregado da missão de forçar a passagem de Porto Acre. Os bolivianos, plagiando Humaitá ([4]), tinham colocado uma corrente para vedar a passagem. Uma das extremidades dessa corrente, porém, estava em terreno que já havíamos conquistado. Entretanto, foi dificílimo cortar essa corrente.
Não faltaram “entendidos” que dissessem ser impossível a passagem do navio. Isto muito impressionou o Coronel Alencar, que, devendo achar-se na véspera do dia marcado para a passagem em uma volta acima de Porto Acre, deixou-se ficar em “São Jerônimo”, pedindo-me dali dispensa do comando, por se achar doente do fígado e desconfiado de estar atacado de pneumonia. A este conjunto confuso de enfermidades nas ocasiões de grandes lances, eu costumo chamar “cagacite aguda”, não sei se com propriedade ou não. Dispus, então, as forças em terra e fui para bordo do “Independência”, a fim de forçar a passagem na manhã do dia seguinte. Levei comigo uma força de infantaria de cinquenta homens e a dispus, 25 homens em um bordo e 25 no outro ([5]), comandados por dois subalternos.
Estas forças ficaram bem entrincheiradas, assim como eu e o meu ajudante de ordens, Capitão Antônio de Souza Coelho, que ficamos no meio da praça de armas, no momento da passagem. Pela madrugada vi, com grande espanto, a bordo, o Coronel Rodrigo de Carvalho. Perguntando-lhe o que fazia, respondeu-se:
– Também quero glórias.
Pensei comigo que alguma cousa de extraordinário se passava naquela criatura efeminada, que não podia ouvir o sibilo das balas e que ali estava para passar por entre um chuveiro delas, pois o convés do navio seria varrido pela fuzilaria inimiga.
Às 6 horas da manhã, colocados todos nos seus postos, verificado o entrincheiramento da casa das máquinas, feito com 30.000 kg de borracha, mandei suspender ferro. O Coronel Rodrigo de Carvalho não foi encontrado a bordo. A passagem foi feita garbosamente, debaixo de uma estrondosa salva de balas. Belo aspecto apresentavam as linhas sitiantes e sitiadas, formando duas curvas concêntricas de fumo.
Passado o perigo e quando o “Independência” já navegava no “estirão” abaixo de “Porto Acre” saiu o Cel Rodrigo de Carvalho da casa das máquinas, onde estivera durante toda a manhã, abrigado abaixo da linha d’água. E de bordo era quem mais entusiasmado agradecia as saudações das nossas forças.
Na manhã do dia 23 de janeiro foi hasteada a bandeira branca nas trincheiras bolivianas. Cessou o fogo, e ao acampamento do Comandante em Chefe acreano veio conferenciar o Sr. Moysés Santivañez, que, em nome de D. Lino Romero, Delegado do Governo da Bolívia, propôs a suspensão das hostilidades, a fim de serem enterrados os mortos.
Compreendendo que outra era a sua intenção, pois não se compreendia que estando entrincheirados, não pudessem enterrar os seus mortos, respondi-lhe:
‒ Neste momento estamos discutindo a sorte dos vivos e mais tarde trataremos dos mortos, que não ficarão insepultos.
O meu Quartel-General era em um ponto muito accessível às balas e distante das trincheiras inimigas apenas 300 m. Acontecia, porém, que esse lugar estava mascarado por muitas bananeiras, e eu podia, sem ser visto, ver comodamente o inimigo de muito perto.
Durante a conferência com o Sr. Santivañez, notei que ele examinava atentamente o local e olhava insistentemente para as suas trincheiras, talvez admirado de me achar ali a cômodo, sem ser hostilizado. Fracassada a sua missão, regressou ele às suas trincheiras, mas apenas nos deu as costas fiz retirar dali o meu acampamento para outra posição bem abrigada. Ao prosseguirem as hostilidades, notei que não fora em vão que o Sr. Santivañez havia estudado a posição em que me achava, pois as bananeiras foram varridas a bala.
O fogo recrudesceu de parte a parte; era tão intenso como no primeiro dia do combate. Caiu a noite e com ela não se acalmaram os combatentes ‒ as estrelas e a límpida lua, que tanto encanto nos dão, iluminavam as cabeças humanas acima dos bordos das trincheiras, descobrindo magníficos alvos.
Na manhã seguinte, novamente foi hasteada a bandeira branca no acampamento inimigo, pedindo momentâneo descanso. Aquela bandeira branca àquela hora não podia enganar – era a rendição.
Apresentou-se-me novamente o Sr. Santivañez porém, desta vez, propondo-me a capitulação sobre as bases que em nome do delegado do Governo boliviano, me apresentava.
Era uma serie de cláusulas inúteis e uma muito ofensiva aos nossos brios, em que nos comprometeriamos a respeitar as famílias. Respondi-lhe oferecendo-lhe garantia de vida a todos os bolivianos e passagem até Manaus. Caso não lhes agradasse essa proposta, era inútil proporem outra; e podiam prosseguir as hostilidades, pois não havia tempo a perder. Veio, então, ao meu acampamento D. Lino Romero, que me declarou aceitar as condições que lhe propusera. Oferecendo-me que escolhesse o local em que deveria ser lavrada a ata de capitulação, escolhi a sua trincheira principal.
Depois de dar as ordens aos meus comandados, para ali segui com D. Lino Romero, levando comigo apenas o meu corneteiro. Ao penetrarmos as trincheiras bolivianas, fui apresentado por D. Lino Romero aos oficiais superiores e, no momento em que cumprimentei o Coronel Ruiz, disse-me este:
– Pero V. es muy joven.
Ao que lhe respondi delicadamente:
– É a idade mais adequada às aventuras da guerra.
Dado começo ao trabalho, lavrei a ata em português e o Dr. Santivañez a traduziu para o espanhol e a deu ao delegado do Governo boliviano e aos oficiais superiores. Perguntando D. Lino Romero ao Coronel Ruiz se tinha alguma coisa a acrescentar, disse este:
– Hay que nombrar la bravura de ambas las partes.
Ao que lhe respondi:
– De nossa parte não houve bravura, mas estou pronto a aceitar a menção da bravura das forças inimigas.
D. Lino Romero, porém, disse que julgava desnecessário, visto serem bastante eloquentes os dias da resistência. Foi a ata por todos assinada. A força boliviana formou toda e a entrega das armas começaria pelos oficiais superiores. Disse eu a D. Lino Romero que o nosso ideal era a emancipação do Acre e que a cerimônia da entrega da espada do vencido, conquanto fosse um ato muito apetecido pelos grandes exércitos, não nos confortava o coração, porque era um ato que aumentava o infortúnio daqueles já infortunados pela derrota. Tomou então a palavra o Dr. Romero e agradeceu-me em nome de seus companheiros em belíssima oração. Ao cair da noite, o “Independência” tinha a bordo todos os prisioneiros.
Os combatentes que sobreviveram ao combate foram, entre militares e civis, bolivianos e estrangeiros, quatrocentos e poucos, e os sitiantes 670 quando se iniciou o sítio. Não sei, de memória, quantos teriam, sobrevivido. Havia nessa ocasião pouca água para os navios subirem o Acre.
No dia 25 organizei a alfândega com pessoal da Revolução. Despachamos nesse mesmo dia alguns navios.
A 26, por ocasião de uma revista geral passada às nossas tropas, no planalto de “Porto Acre”, o Dr. Baptista de Moraes tomou a palavra da sacada de uma casa e, em nome de todos os oficiais combatentes da Revolução e dos civis presentes, aclamou-me Governador do Acre e Comandante em chefe das forças.
Nesse mesmo dia ficou o Governo organizado com três ministérios – o da Fazenda, ocupado pelo Coronel Rodrigo de Carvalho, que tinha grande prática de assuntos aduaneiros, e os da Guerra e Justiça, acumulados pelo próprio Governador. O primeiro decreto, expedido nesse mesmo dia, adotava a língua portuguesa como a oficial do estado e reconhecia as propriedades e posses de terras ocupadas. Por decreto foram fixados os limites do novo estado, foi licenciada por trinta dias mais de metade da força, o que mais tarde verifiquei ter sido um grande erro. Soubemos então que o Brasil mandara ocupar o Acre, ao Norte do Paralelo 10°20’. Fiz seguir o Coronel Brandão com quatrocentos homens para “Xapuri” no “Independência”. Atacado de violenta febre, fiquei em “Porto Acre”.
Em março segui para “Xapuri” e me dispunha a ir novamente ao “Tauamano”, quando tive notícia de que por aqueles dias chegariam ao Acre as forças do Exército Brasileiro.
Deixando em “Xapuri” o Coronel José Brandão, desci para “Porto Acre”, a fim de receber o General brasileiro, que era o Sr. Olympio da Silveira. Recebi-o da melhor forma. Deu-me a ler alguns jornais do Rio pelos quais soube que vinha ele assumir o Governo do Acre por nós conquistado; entretanto, pessoalmente nada me disse. Passando por “Porto Acre” não se quis deter, mas em data de 2 ou 3 de abril publicou uma proclamação, dizendo assumir o Governo daquela região.
Fingindo não compreender o quanto aquele ato ofendia a minha autoridade, baixei um decreto entregando-lhe aquela parte do território, transferindo o meu Governo para “Xapuri” e a alfândega para “Capatará”.
Todo o Exército Brasileiro ali estava raivoso contra mim; dia e noite murmuravam os oficiais, como bem ensaiadas carpideiras; uns diziam que por minha culpa estavam ali sofrendo, outros se queixavam por haver deixado as suas famílias, outros ainda, como o Major Alcino Braga diziam:
‒ Isto é ultraboliviano.
Transformaram-se em professores da Constituição e começaram sem o menor escrúpulo, a implantar a indisciplina, que os caracterizava, entre os meus soldados, dizendo-lhes que eu era paisano [cidadão era para eles sinônimo de cachorro] e, como tal, os não podia comandar e muito menos os obrigar ao serviço militar, e que se fossem queixar ao General Olympio, que daria providências. (CASTRO)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 21.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CASTRO, Genesco de Oliveira. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia São Benedicto, 1930.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Escritos a pedido de Euclides da Cunha quando com ele o autor viajava, em 1906, de Manaus para o Rio. Pretendia aquele escritor ocupar-se dos sucessos que trouxeram o Acre para o Brasil. (CASTRO)
[2] El día 14, Plácido tuve la galantería de anunciar oficialmente al delegado Romero su próximo ataque al puerto y proponerle una sola ambulancia en la colecturía de Caquetá para la asistencia de los heridos de ambas partes. Lo que no aceptó Romero. [Resumen Histórico de la Campañas del Acre, 1899-1903 ‒ Colonel Manuel J Vásquez Benjamin Azcui]
[3] Acauchados: revestidos com a goma elástica (borracha).
[4] Guerra da Tríplice Aliança: O complexo defensivo da Fortaleza de Humaitá, no Rio Paraguai, na área terrestre, era constituído de muros e casamatas fortemente artilhadas e, no leito do Rio, por minas e três grossas correntes de ferro que impediam a navegação no trecho dominado pela Fortaleza.
[5] Bordos: bombordo e boreste.
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