EPOPEIA ACREANA

Volta da Empresa

Apontamentos Sobre a Revolução Acreana – II

Notas Inéditas de Plácido de Castro ([1])

Voltei no dia seguinte a “Bom Destino”, onde encontrei o Coronel Joaquim Victor da Silva. Assentamos que ele faria reunir todo o seu pessoal e se entrincheiraria no Barracão. Rumei, em seguida, por terra para o “Bagaço”, onde cheguei na tarde do dia seguinte.

Aí acordei com o Sr. Basílio Gomes de Lyra a reunião do pessoal deste pequeno povoado e do Seringal.

Daí segui imediatamente para “Liberdade” e em caminho encontrei-me com o Tenente-Coronel Alexandrino José da Silva, indivíduo analfabeto, mas com prestígio entre os seringueiros.

Encarreguei-o de proceder ao recrutamento. Chegando a “Liberdade” encontrei más notícias: em minha ausência o pessoal se revoltara sob a direção de um rapaz muito moço. Felizmente pude conciliar as cousas sem o emprego da força. Isto se passava mais ou menos a 15 de setembro.

Achando-me com cento e tantos homens, distribui-os no serviço do recrutamento e fiquei com 70 no acampamento, além de um piquete que fiz seguir para um lugar denominado “Missão”, por onde deveria passar o inimigo esperado.

Constando-me que um português de nome Antonio, residente na “Empresa” iria ao encontro dos bolivianos para lhes servir de guia, mandei prendê-lo. Infelizmente, dentre muitos pedidos para soltá-lo, recebi o do proprietário do Seringal “Primavera”, pessoa conceituada, e acedi.

Na noite de 17 para 18 recebi um aviso do piquete, dizendo-me que o inimigo se achava em “Missão”, em grande número e guiado por Antonio, o português, a quem em má hora eu havia soltado. Tinha apenas comigo 63 homens, mas com eles marchei à meia noite na esperança de compensar a diferença de número com uma emboscada que lhes pretendia fazer, a uma hora de viagem da “Empresa” onde chegamos às 05h30.

Contra a suposição de todos, inclusive a minha, os bolivianos, apesar de estarem em terreno completamente desconhecido, haviam marchado toda a noite, guiados por Antonio, o português, de forma que, ao romper do dia, se emboscaram no campo da “Volta da Empresa”, onde nós, ao entrarmos, recebemos em cheio a primeira descarga em pleno campo.

Apesar de serem todos recrutas, a confusão não se estabeleceu entre nós. Com dificuldade, mas com alguma presteza, consegui estender linha, que dificilmente conseguiu manter-se devido à falta de prática dos meus soldados, que a cada passo se agrupavam.

Cada soldado dos nossos tinha somente 50 tiros, munição bastante para um revolucionário previdente, insignificante, porém, para eles, que atiravam a torto e a direito, parecendo querer matar o inimigo com os estampidos.

Ainda assim o inimigo foi contido durante uma hora e cinco minutos, segundo observação dos vizinhos. Extinta a munição, a derrota pronunciou-se por nós, a despeito do esforço que fiz para evitar o desastre.

Vinte e dois mortos deixamos no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fugiram. Esta foi a estreia. Seguimos para a Empresa a reunir alguns companheiros dispersos. O inimigo, apesar de se achar a tiro de fuzil, não nos perseguiu, pois também teve as suas arranhaduras – 10 mortos, inclusive um Capitão, e oito feridos.

Depois do meio dia, deixei o prisioneiro José Maria da Rocha Neves com o farmacêutico e algumas praças para descerem com os feridos e segui com o pessoal restante para “Liberdade”, onde encontrei tudo deserto; o próprio dono da casa, tomado de terror, fugira com a família. Recolhi a bagagem e víveres e desci com destino a “Bagaço”, onde pretendia reorganizar as minhas forças. Em caminho encontrei, de descida também, um reforço de 30 homens, reunidos às pressas pelo Coronel Hyppólito Moreira, Major José Antônio e Tenente Antônio Coelho.

À noite chegamos à “Baixa Verde”, onde pernoitamos, e no dia seguinte a “Bagaço”. Observei que das minhas forças, parte estava vestida de azulão e parte de roupa clara e que no combate à mortalidade fora quase que somente entre estes. O caso era para ser levado em consideração, tanto mais que o fogo fora feito à queima roupa, a uma distância de 50 a 120 metros, em que se distinguem as próprias fisionomias. Resolvi, por isso, vestir os soldados com uniforme azul e o consegui em poucos dias, graças à boa vontade de todos. Aboli também o galão dos punhos e do boné, consistindo os distintivos em botões de madrepérola no lugar da carcela.

Estas medidas diminuíam o alvo dos nossos soldados e ao inimigo impediam que dele fossem conhecidos os nossos oficiais. Praticamente verifiquei os resultados desejados. A notícia da nossa derrota correu célere, apavorando os seringueiros e tornando a minha posição por demais difícil, pois por tudo se me responsabilizava.

Os mais entendidos, ou que se julgavam tal, diziam que se eu conhecesse do assunto não teria marchado com 63 homens apenas. Mandei pelas matas dois portadores para o Alto Acre, com correspondência para ser entregue à primeira força que encontrassem de descida, o que deveria acontecer, conforme as ordens que havia dado ao Comandante da guarnição de “Xapuri”. Nessa correspondência procurei iludir a situação, dizendo que o combate não tinha importância.

A 29 ou 30 de setembro, deixei “Bagaço”, marchando para “Panorama” com 180 homens, mais ou menos, que havíamos reunido. Pretendia com esta gente tentar um decidido assalto ao inimigo, que, segundo me constava, se estava entrincheirando. Ao tempo em que eu marchava para Panorama chegava à “Boca do Riozinho” o Coronel Antunes de Alencar [pois já se havia apresentado à Revolução, apesar da sua amizade com os bolivianos] com cento e tantos homens. Aí soube ele, de modo positivo, o desastre de 18 de setembro e desanimou completamente.

Reunindo os oficiais, lhes expôs os fatos com as tintas mais negras, propondo-lhes por fim a dispersão das forças, pois considerava a Revolução abortada, acrescentando:

‒ Ainda não fizemos uso das armas e, por consequência, não estamos comprometidos.

O desânimo invadiu o coração de seus comandados e todos teriam fugido naquele momento, se um enérgico protesto do Tenente-Coronel José Brandão e do Capitão Cérvolo não os detivesse.

Logo após estas cenas, chegou ao acampamento do Coronel Alencar um próprio meu, que lhes contou que eu estava com as forças reorganizadas e em marcha para “Panorama”. Não foram acreditadas as informações do meu emissário, antes foram ouvidas com reserva. Ofereceu-se, então, um moço, por nome Façanha, para ir pessoalmente até onde pudesse colher a verdade inteira, pedindo ao Coronel Alencar que não dispersasse a gente antes de sua volta.

Este rapaz foi descendo e, ao chegar a “Bagé”, soube do administrador deste Seringal o Sr. João Donato, que os bolivianos estavam entrincheirados e que eu, tendo reorganizado as forças, devia talvez achar-me em “Panorama”. Para certificar-se disto, mandou Donato um “mateiro”. Façanha voltou à “Boca do Riozinho” e aí, com a exposição do que soubera, deu um pouco de ânimo aos companheiros.

Pelo “mateiro” de João Donato inteirei-me do que se passava, e, incontinenti, mandei o Coronel Alexandrino e o Alferes Plinio, com 30 homens, ao encontro da força da “Boca do Riozinho”, com ordem de assumir o comando, se possível fosse, e de vir para “Nova Empresa”. Isto acontecia a 30 de setembro.

Nesse mesmo dia chegou ao “Riozinho” o Coronel Alexandrino, deixando o Alferes Plínio de observação em “Nova Empresa”, com 10 praças. No dia seguinte regressou ele para “Panorama”, deixando na “Boca do Riozinho” todos animados e de marcha para “Nova Empresa”, dizendo-me, porém, que lá não ficaria. Em matéria de disciplina ninguém entendia.

No dia seguinte, 2 de outubro, deixei-o em “Panorama” e fiz a mesma marcha com 25 homens, contornando “Empresa” e chegando à “Nova Empresa”, onde organizei a força que ali se achava. Fiz seguir comigo para “Panorama” todos aqueles cuja presença na força do Coronel Alencar embaraçava a disciplina.

Nessa ocasião, o Coronel Alencar e o Tenente-Coronel Gastão de Oliveira, tomando a palavra, em nome dos seus comandados, me aclamaram General. Não aceitei tal aclamação, que, além de inútil, criava um mau precedente de promoções por pronunciamentos. Determinei que o ataque às forças bolivianas na “Volta da Empresa” se faria a 5 de outubro e deixei em mão do Coronel Alencar o plano de combate, escrito e desenhado. Regressei a “Panorama” e no dia cinco atacávamos a “Volta da Empresa”, simultaneamente pelo lado de cima e pela retaguarda. Estando marcado o combate para as 10 horas da manhã, no momento em que o inimigo deveria estar descansando da formatura, tal não aconteceu, porque o Coronel Alencar mandou, às 09h30 atirar em uma sentinela inimiga, o que muito alterou o resultado, pois não pode o inimigo ser colhido de surpresa.

Empenhou-se o combate, sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras inimigas. À tarde a nossa posição de sitiantes já era bem definida, mas o inimigo estava bem defendido, pois, além das valas, ainda tinha por fora uma cerca de arame farpado, que impedia qualquer assalto. Por nossa parte estava em franca operação o trabalho de sapa, mas só depois de 11 dias de lutas pudemos, por meio de valas abertas em curvas reversas contra os aramados, chegar junto das trincheiras inimigas e obrigar o Coronel Rojas a entregar-se com seus comandados, que seriam apenas 150.

Os outros, em número de 30, haviam morrido. Neste combate verifiquei o ótimo resultado do sistema de fardamento que havia adaptado. Em seguida fiz marchar para “Capatará” os Coronéis Alexandrino e José Brandão, com as forças; eu desci com 60 homens, conduzindo prisioneiros, que deveriam baixar para Manaus.

Em “Caquetá”, acima da linha Cunha Gomes, acampei com eles e deixei que se correspondessem com os seus patrícios de “Porto Acre”. Depois acompanhei-os até o Antimarí. De regresso, em “Caquetá” à noite, recebi um ofício do Comandante da guarnição de “Bom Destino”, comunicando-me que ali chegara o Comandante da guarnição de “Xapuri”, em companhia de vários oficiais. Pela manhã do dia seguinte marchei para “Bom Destino”, onde cheguei à tarde. Soube do Coronel José Galdino que ele havia abandonado o seu posto em “Xapuri”, em virtude de uma carta que recebera do Coronel Rodrigo de Carvalho, pedindo-lhe que viesse, porque o Comandante em chefe se achava à morte e era preciso substituí-lo.

Na verdade me achava muito doente, mas o caso era outro: entrara nele a perfídia, pensavam que com a vitória da “Volta da Empresa” a guarnição boliviana de “Porto Acre” se entregaria e, nesse caso, eu, excluído por doença ou por morte, daria lugar a que pleiteassem o Governo do Acre, que era o sonho do Coronel Alencar, estando comprometidos a isso o Coronel Rodrigo de Carvalho e o Sr. Gentil Norberto, que a esse tempo ainda andava por fora, em dissidência, José Galdino era apenas o instrumento do plano.

Fiz este subir novamente o Acre comigo, até “Capatará” e aí lhe dei ordem para que fosse ocupar o seu posto em “Xapuri”.

Com a pequena força que trazia, reuni-me às forças que se achavam no “Iquiri”. Ali cheguei a 4 de novembro, e a 15, para comemorar o aniversário da República brasileira, enfeitamos o acampamento com as mais variadas palmeiras e parasitas, e marquei uma parada para as 10 horas da manhã, para revista geral das forças.

Terminava a revista, quando me chegou um aviso ur­gente de que o inimigo vinha a, cinco horas de via­gem, procedente de “Santa Rosa”, no Abunã. Desta­quei imediatamente 100 homens e com eles marchei, dando ordens para seguir o resto das forças por fra­ções. Três dias depois atacávamos a coluna boliviana de “Santa Rosa” e com franco sucesso. Nesse dia faziam dois meses que havíamos sido derrotados no primeiro combate, em “Volta da Empresa”.

Nesse mesmo dia, 18 de novembro, antes de começar o fogo, estando eu em um reconhecimento, acompanhado de quatro oficiais, uma sentinela inimiga emboscada deixou-me passar e a mais três oficiais, fazendo fogo contra o último, que, apesar de minhas ordens, ainda não havia reformado o fardamento e tinha galões nos punhos. A sentinela o tomou pelo chefe. O combate de “Santa Rosa”, que durou muitas horas [das 4 horas da tarde às 9 horas da noite], terminou por um vasto incêndio, que ateamos às casas e trincheiras inimigas.

A 20 segui com toda a força reunida, 400 homens, com destino à “Palestina”, no Rio Orton. Dois dias depois, chegando ao Coricon-Vial, ali acampamos. Momentos depois, uma dolorosa surpresa: chega-se a mim o Cel Alexandrino que, em nome dos oficiais, me pede que não os leve assim para a Bolívia, onde não poderiam saber o fim que os aguardava e dizendo-me que a fome já se fazia sentir.

Cheio de esperança e de fé, eu não podia me conformar com a volta naquele momento, pois na nossa marcha íamos encontrar fatalmente a vitória da Revolução. Mais tarde soube que esse oficial mesmo era quem concitava os outros a voltarem, dizendo-lhes que morreriam todos, como se quem vai à guerra vá procurar abrigar-se da morte.

Entretanto, voltei, depois de destruir a ponte de Coricon-Vial e, rapidamente, marchei para “Iquiri”, fui a “Capatará”, de onde segui na mesma noite para daí fazer seguir a força para “Itu”, ali chegando pela manhã.

Na tarde desse mesmo dia segui com uma força, por terra, para “Soledade”, e por água mandei outra, sob o comando do Coronel Alexandrino. Com 72 horas de marcha cheguei a este porto. Daí, unindo-me com a força que viera por água, segui para o “Xapuri”, onde fizemos uma grande revista. No dia 4 de dezembro seguimos com trezentos homens para “Costa Rica”, no Tauamano. (CASTRO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

CASTRO, Genesco de Oliveira. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia São Benedicto, 1930.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Escritos a pedido de Euclides da Cunha quando com ele o autor viajava, em 1906, de Manaus para o Rio. Pretendia aquele escritor ocupar-se dos sucessos que trouxeram o Acre para o Brasil. (CASTRO)