Epopeia Acreana
O Perigo Americano – III
Se desses precedentes passarmos aos dos nossos dias, veremos a mesma política de abstenção mantida durante a revolução cubana. Apesar da opinião dominante nos Estados-Unidos em favor da libertação da ilha e dos planos de expansão comercial, MacKinley só se empenhou no conflito depois da monstruosa provocação feita pela destruição do Maine (?), fundeado no porto de Havana, sob a garantia do pavilhão espanhol. Não é possível contestar que Cuba, Porto Rico e as Filipinas eram ótimo despojo; seriam legítima conquista, se o vencedor fora a Inglaterra. Entretanto, o governo americano evitou fundar os seus títulos no direito da força (?); observou a respeito à mesma linha de conduta seguida no caso do México, indenizando à Espanha da perda daquelas colônias. A história não fornece iguais exemplos de generosidade, de fidelidade e tradições honrosas e de respeito à justiça e ao direito: uma nação formidável, laureada por feitos heroicos, dotada de meios de ação inéditos e maravilhosos e apoiada na justiça de sua causa, tratar o vencido em condições de igualdade e resolver, por um Tratado, aquilo que seria conquista legítima consequência necessária da estupenda vitória. Ocorre relembrar a inconsistência sentimental dos conceitos da opinião brasileira sobre a atitude dos Estados-Unidos no conflito cubano.
‒ Plutocratas ([1]) sem alma ‒ bradavam pela imprensa as penas mais eloquentes e autorizadas ‒ assistem impassíveis à luta dos heróis que pugnam pela liberdade contra a tirania espanhola. Argentários ([2]), frios, veem correr o sangue generoso, como se fora o de lutadores em um “match de box”!
‒ Plutocratas gananciosos ‒ exclamavam, em estos de indignação, as mesmas penas, inspiradas na simpatia pelo infortúnio dos fracos, quando os norte-americanos venceram a Espanha e ocuparam Cuba ‒ caíram sobre a presa e lhe aniquilaram as esperanças de liberdade, o patriótico sonho de Maceo ([3]) e de outros mártires da independência! …
Esse sentimentalismo contraditório e desvairado, nas suas generosas e veementes manifestações, nunca se inspirou no estudo desapaixonado dos fatos, desfigurados e deturpados à feição do secreto temor que o provocava ‒ o espectro do “Perigo Americano”, atuando, depois de uma síncope de 30 anos, não só na opinião da massa, senão na das classes dirigentes. E tal é o poder do preconceito, tão profundamente se infiltra, que a independência de Cuba e a sua entrada, como pessoa jurídica, no convívio das nações, não conseguiu demove-lo.
Vem, então, a derradeira objecção da resistência: Libertou-se Cuba do domínio espanhol, para ser devorada pelos “trusts”. Com tal critério, não é para admirar que topemos no absurdo.
Do rápido exame dos precedentes da política internacional dos Estados Unidos resulta a negação completa de tendências de absorção ou anexação de Territórios por meios violentos, e é logico concluir que, não se infringiram as suas tradições honrosas nas relações com os povos vizinhos, não há razão para se suspeitar que cobicem Territórios da América do Sul, onde eles não puderam, até hoje, expandir a influência comercial.
Depois da abertura do Amazonas, em 1867, esfriou, no Brazil, a agitação contra os norte-americanos, que desapareceu com a visita do Imperador à Exposição de Filadélfia, em 1876. Desde então, tendo conhecido de perto o caráter dos norte-americanos e se assegurado de que deles não provinha ameaça às instituições monárquicas, deixou de alimentar as carunchosas suspeitas e, em consequência, o “Perigo Americano” perdeu o apoio da coroa. Não será aventuroso acrescentar que no espírito lúcido de Pedro II ficou funda impressão do regime de governo e dos maravilhosos resultados da democracia, impressão que, não será difícil demonstrar, atuou de modo benéfico recordar que ele se ufanava de ser um monarca democrata e chegou a gabar-se, com aparente ironia, de ser o primeiro republicano do Brasil. O Imperador promoveu com patriótico empenho o estreitamento dos laços de amizade e as relações comerciais entre os dois povos, sendo o seu último esforço, nesse sentido, o comparecimento do Brasil à Conferência Internacional em Washington.
Durante o longo período de repouso do germe de agitação, incidentes diplomáticos da maior gravidade, como o caso da Flórida e Alabama e outros, foram resolvidos satisfatoriamente, sem quebra das relações amistosas das duas potências, com provas irrecusáveis da boa vontade dos EUA para com o Brasil. O imperialismo norte-americano, as tendências de expansão comercial, vitoriosas com o plano político de MacKinley e muito legítimas da parte de um povo que produz mais do que consome, trouxeram à perspectiva de políticos de curtas vistas ou de exploradores levianos de tudo quanto possa enfraquecer o prestígio da República, o velho “Perigo Americano”, como sinistra ameaça à integridade da Pátria. Palavras de um orador político, opiniões esparsas na imprensa, foram, então, avidamente colhidas como elementos de prova inconcussa das tendências de absorção. Assim, porque o Senador Morgan, propagador das comunicações interoceânicas pela arrojada empresa do canal da Nicarágua, referindo-se às contínuas perturbações políticas que ainda hoje estão agitando a América Central, dominadora do Território onde o canal tem de ser aberto, afirmou que os povos latinos daquela região necessitavam da tutela enérgica e da vigilância permanente do governo norte-americano, para serem removidos os obstáculos continuamente opostos à integração da humanitária obra de Lesseps ([4]), houve logo quem pretendesse impressionar a melindrosa fibra do patriotismo indígena, entrevendo naquele discurso uma ameaça, apesar de ser evidente que o estadista citado não se referira ao Brasil, que só remotamente é interessado no corte do istmo do Panamá ou em outro qualquer meio de comunicação entre o Caribe ou o golfo do México e o Pacífico.
Na desorientação de um pânico pueril, que não passa de lamentável sintoma da nossa fraqueza ou afrouxamento das energias da nossa raça, chegamos à revolta contra a hegemonia norte-americana no Novo Mundo, como se ela não fosse fato sem contestação, posição de supremacia, nobremente conquistada sobre todas as nações cultas, pela expansão estupenda daquele povo, nos últimos cinquenta anos, com as armas incruentas da civilização, da educação moral e cívica, o desenvolvimento industrial e científico e, sobretudo, pelas instituições, democráticas, cimentando um vitorioso regime de liberdade e civismo, que os povos da América latina tentam, em vão, arremedar.
Entre os fatores dessa suspeita intermitente a largos intervalos e que, agora, se avoluma, deve ser destacado o livro do pranteado polemista e erudito homem de letras, Eduardo Prado, que, com a “Ilusão Americana”, impugnou as instituições adotadas pelo Brasil, acentuando, com admirável e encantadora ironia, defeitos de costumes, erros de política e outros casos especiais, que não podem oferecer ao critério do filósofo e do estadista, elementos seguros para o julgamento de um povo, e a afirmação dos resultados negativos de suas instituições. Eduardo Prado pretendeu demonstrar que aquilo que nos seduzira ao ponto de copiarmos a Constituição dos Estados Unidos, o progresso sem precedentes na história da humanidade, as arrojadas empresas de iniciativa industrial, produzindo prodigiosa riqueza pública e privada e as conquistas científicas que assombram o mundo, não passam de ilusório aspecto de um organismo corrompido, falsos ouropéis a enfeitarem um povo dissoluto e desalmado, que lincha negros, tolera o mormonismo e outras seitas absurdas, e é governado por banqueiros falsários, trustes de plutocratas imbecis e pela politicagem imoral da Tammany Hall.
Esse livro, continuação da campanha de Frederico de S., encontrou franco acolhimento entre os reacionários intransigentes, adversários da República ainda não resignados, e a esmagadora maioria dos mal informados, porque os mais esclarecidos apenas sabem dos Estados Unidos o que leram em Tocqueville, há 40 anos, em Bryce, para nós acatado expositor de direito constitucional, ou em livros humorísticos de viajantes pouco criteriosos no comentário de fatos colhidos na rápida passagem por uma terra que não tiveram tempo de estudar e compreender.
A verdade, entretanto, é que essa “Ilusão” se antolha às decrépitas nações do Velho Mundo como definitiva conquista da civilização, realizando de um lance aquilo que elas obtiveram, mediante um bárbaro processo muitas vezes secular, e atingindo ideias apenas entrevistas por outros povos na tênue nebulosa da utopia. Essa “Ilusão”, que nos apavora, dita leis à indústria com as suas invenções geniais; prima nas ciências pelos seus mestres, instituições de educação e as maiores e mais ricas universidades; regula, enfim, a política internacional com as suas honrosas praxes e humanitários princípios, demonstrando sempre qualidades inestimáveis de iniciativa e energia no incomparável regime de liberdade, em que florescem cerca de oitenta milhões de habitantes. É forçoso concluir que, se tudo isto não passa de uma ilusão, é preferível à realidade desoladora, ao triste aspecto de velhas nações europeias, povos que, parece, terminaram a sua missão na história. Eduardo Prado desempenhou, brilhantemente, o seu papel de adversário intransigente; mas as suas deduções são tão falsas e obscuras, quanto seria paradoxal concluir do assassinato de MacKinley que a República não presta, é uma forma de governa incompatível com o desenvolvimento e a felicidade dos povos.
Quem estudar, imparcialmente, os fatos; reconhecerá, sem dificuldade, a inconsistência do preconceito que os inimigos da República, assim como grande parte dos seus mais veementes defensores, pretendem agora exumar. Ficou demonstrado que é infundado.
Para provar que nos arrasta a contradições flagrantes, basta rememorar que, nos últimos tempos, flutuamos entre a confiança e a suspeita. Ontem, perpetuávamos o nosso reconhecimento aos Estados Unidos, por, sua intervenção benéfica na revolta de 6 de setembro, estrangulada ao primeiro disparo dos canhões Yankees sobre a “Guanabara”, votando um monumento a Monroe. Hoje, nos arredores da sua malsinada doutrina, julgando-a pelos conceitos humorísticos de Evarts, dos quais a política europeia deduziu a fórmula ‒ “América para os Americanos do Norte”. E no entanto, ela tem sido formidável obstáculo ao imperialismo europeu, sempre cobiçoso em expandir-se nos ubertosos ([5]) Territórios da América do Sul, realizando os sonhos da Antártica e da França Equinocial…
Surge, agora, o arrendamento do Acre, considerado indício veemente da iminência do “Perigo”.
Não há dúvida que o Contrato Aramayo, suscita um incidente sério e deprimente dos créditos e do prestígio da Bolívia. Resta, entretanto verificar se o governo norte-americano aprova e apoia o procedimento de seus representantes, na assistência velada que deram aos especuladores aventureiros organizadores do sindicato.
Na pior hipótese haverá, quando o caso for entregue à diplomacia, discussão de princípios de direito internacional, como sejam
1° Se um governo pode transigir com a soberania nacional, transferindo-a por contrato ou investindo dela um indivíduo ou corporação mercantil, estrangeiros com atribuições discricionárias para administrar, lançar impostos e organizar forças de mar e terra, na fronteira não delimitada de nação amiga;
2° Se esta é obrigada a reconhecer como legítima a transação, e entreter relações com esse soberano comercial exótico, sem delegação por voto expresso da nação;
3° Se é válida, em face do direito internacional público e privado, a enfiteuse ([6]) de Território mantido em posse mansa, pacífica e legitimada de cidadãos de nação amiga;
4° Se a navegação do Rio Purus pertence de direito, exclusivamente, às nações riparias ([7]), ou si ele e seus afluentes constituem vias de comunicações internacionais.
A exceção da dúvida relativa à navegação, é de esperar que o governo norte-americano esteja de acordo com o do Brasil, a não ser que, por uma aberração inqualificável e monstruosa, prefira à nossa amizade o interesse de aventureiros cobiçosos dos seringais dos igapós do Acre, ou renuncie às honestas normas de política e às tradições preciosas que constituem a sua glória. Domingos Olympio (OS ANNAES, N° 79)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
OS ANNAES, N° 79. Páginas Esquecidas – O Perigo Americano ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Os Annaes, n° 79, 03.05.1906.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Plutocratas: pessoa influentes em razão da fortuna que possui.
[2] Argentários: capitalistas.
[3] José Antonio de la Caridad Maceo y Grajales (1845/1896), um dos líderes do Exército Libertador de Cuba durante a Guerra da Independência, conhecido como o “Titã de Bronze”, em referência ao tom de sua pele e estatura. Os espanhóis o apelidaram de “Leão Maior”.
[4] Ferdinand de Lesseps: diplomata e empresário francês que ficou conhecido por promover a construção dos canais de Suez e do Panamá.
[5] Ubertosos: fecundos.
[6] Enfiteuse: é instituto do Direito Civil e o mais amplo de todos os direitos reais, pois consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre a coisa de tal forma que o terceiro que recebeu [enfiteuta] passe a ter o domínio útil da coisa mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. (lfg.jusbrasil.com.br)
[7] Riparias: biomas que se distinguem pela interação entre vegetação, solo e um curso d’água.
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