Epopeia Acreana
Manifesto dos Revolucionários Acreanos – II
O Cruzeiro do Sul, n° 008
Cruzeiro do Sul, AC ‒ Sábado, 30.06.1906
Manifesto dos Revolucionários Acreanos
(Continuação)
Os bolivianos, quando se apossaram da cidade do Acre, limitaram-se a construir umas três ou quatro barracas, cuidando mais de cobrar impostos de exportação do que de promover o desenvolvimento da região que tinham conquistado perfidamente. A justiça cifrava-se ([1]) no absolutismo do corregedor Antônio Leite Barbosa que aproveitava o prestígio das suas funções para tratar dos seus lucros particulares, como se verifica de um mandado que expediu a um seu devedor, ordenando-lhe sumariamente que fosse pagar à sua mulher umas contas atrasadas. Esta ocorrência publicada na imprensa de Manaus e do Pará, dá a medida exata do caminho seguido, pela Bolívia na sua curta administração. Mais: o Sr. Dr. José Paravicini, com o fim de fomentar o concubinato entre os brasileiros, decretara que os antigos juízes continuassem a fazer casamentos civis, os quais eram nulificados, pela constituição católica da Bolívia. Que moralidade – a deste ministro! Luiz Galvez, assim que se proclamou o advento do Estado Independente do Acre, lançou os alicerces duma capital garrida, edificando barracões elegantíssimos, visto escassearem naquelas paragens os materiais de construção. Quem quer que passou pela capital do novo Estado Brasileiro atestará a salubridade que ali se goza e a regularidade agradável das ruas que formam a novíssima população, erguida com o desinteressado concurso de brasileiros.
O Presidente do novo Estado, probo nas suas tentativas, decretou imediatamente a organização administrativa. Constituíram-se logo o poder judiciário e os distritos militares. A polícia estabeleceu-se em todo o território e as repartições privativas começaram a funcionar, desde a Secretaria do Governo à junta de Higiene e Capitania do Porto. Quem assim trabalha revela intuitos sãos e nunca o fim de anarquizar. No Acre não existiam autoridades brasileiras e o Estado Independente outorgou-lhas, revestidas do todo o acatamento. Esta organização, de resto, era, há muito reclamada por aqueles laboriosos povos. Por esta maneira ficou garantidíssima a paz em todo o território, sendo respeitados com generosidade os seringueiros bolivianos e prosseguindo as fainas quotidianas em completo repouso, sem aparecer o menor motivo para queixas dos dirigentes da revolução, que estavam empenhados, unissonamente ([2]), em demonstrar ao público as suas intenções liberais e humanitárias. O zelo do governo provisório atingiu o ponto de adquirir uma sortidíssima farmácia, que mais tarde foi destruída pelo vandalismo da Comissão Boliviana! Este espírito de concórdia acabava por uma vez com o “regimen” do caciquismo ([3]) no Acre, onde até à data legislava impunemente o rifle, manejado por Leites, Felícios e outros, cujos nomes é desnecessário gravar. Os dísticos da bandeira sacrossanta – “Ordem e Progresso” – passaram a ser uma realidade esplendorosa em toda a região do Acre e Xapuri, voltando aos ânimos à confiança que os carrascos bolivianos não conseguiram insuflar-lhes. Esta é a verdade inegável, digam o que disserem os caluniadores.
III ‒ Os Primeiros Incidentes
Era natural que, prevenidos como estavam todos, se dessem alguns incidentes nos primeiros tempos. A imprensa, mal informada sobre a lisura dos promotores da Revolução Acreana, desencadeara sobre o chefe aclamado uma tempestade assombrosa de epítetos ([4]) crus, pretendendo levar para o grotesco uma rebelião sagrada, que só visava a defesa da Pátria Brasileira. Não se lembravam esses cavalheiros, que tão irrefletidamente falavam dos sucessos do Acre, de que os chefes do movimento enviavam para as praças do Pará o Manaus, anualmente, o melhor de dois milhões de quilos de borracha ([5]), o que equivale a 26.000 contos de réis, cotando o quilo da goma elástica ao preço mínimo de 13.000 réis. Esqueciam esses indignados que os trabalhadores do Acre, que se ufanam de ser a pedra angular da grandeza amazônica, poderiam tomar uma represália violenta, gerando uma crise intensíssima na Amazônia.
Não se recordavam os incendidos ([6]) censores de que quem tinha a velar por 26.000 contos de réis nunca se transformaria em bandoleiro desceria a sacrificar o seu bem estar e a sua autonomia particular; adquirida à custa de tanto suor, tantas doenças e tantas vítimas, combatendo por uma causa ruim e censurável, que afetasse os interesses da Amazônia em especial e os do Brasil em geral. Assim foi que aconteceram os incidentes do vapor “Cidade do Porto de Moz”, plausivelmente elucidados pelo Sr. Gentil Pereira, da casa Marques Braga & Ciª, e da lancha “Garantia da Amazônia”, suficientemente aclarados também.
O Estado Independente praticou uma transação lícita, ficando o finado Sr. Victor Bezerra com um documento em seu poder. O que executou este malogrado cidadão não passou de um negócio bastante favorável à sua empresa, prestando-se até a subir o Xapuri, na qualidade de inspetor do tesouro acreano. A responsabilidade contraída será respeitada pelo Estado, assim que o embolso dos impostos seja feito. E, caso queiram os herdeiros apelar para os tribunais, em Santa Cruz, na Bolívia, é que a ação se proporá. O acordo amigável é, por consequência, a mais imediata das soluções. Nós não encampamos leviandades, doa a quem doer. Ambos estes incidentes, cujo desarrolar ([7]) é o mais legítimo possível, provocaram à imprensa duros comentários.
A luz fez-se, no entanto, e todos se capacitaram de que não havia pretexto para tamanho alarma. Mas as inverdades, como ordinariamente sucede, divulgaram-se e ganharam raízes na opinião pública. Lá diz o saber popular: ‒ Das injustiças sempre fica alguma coisa. E destas clamorosas inveracidades restou, pelo menos, a confusão nos espíritos, que este nosso manifesto deve arredar por completo, se acaso as praças de Manaus e do Pará dispensam à Comissão signatária, como até aqui hão generosamente dispensado, o crédito que há vinte anos lhe fornecem em transações múltiplas, onde por grande parte figura a nossa palavra ilibada, livre de qualquer contrato ou escritura. Um superior conceito as tem orientado. Os signatários, que na sua maioria usufruem um feliz viver, não precisam de recorrer a artimanhas políticas. A nossa política é a da honra e dignidade brasileiras e com este lema é que iniciamos e sustentaremos o Movimento Revolucionado do Acre, esclarecendo com toda a lealdade os episódios que têm esmaltado os nossos constantes esforços.
Da Revolução pretendemos unicamente a glória de trabalhar pela reivindicação dos seculares direitos brasileiros à região por nós arroteada e engrandecida. Nada mais, nada menos.
IV – O Caso do Riozinho
Constara no Riozinho ao Coronel Antônio do Sousa Braga, por intermédio de diferentes amigos, que Luiz Galvez havia proibido o embarque da borracha para o Pará e Manaus. O Cel Braga, lesado no seu comércio e antevendo sombrios desastres, determinou usar da força de que dispunha e prender o Presidente Galvez, a fim de revogar o decreto aludido. Assim se fez, embarcando-se imediatamente a goma elástica em depósito. Mais tarde, excetuando-se uma conferência entre Cel Braga e Galvez, este participou ao novo Presidente; os motivos, da sua deliberação e que consistiam no receio que tinha de que os bolivianos, que estavam já de posse de Puerto Alonso, se apropriassem da borracha armazenada, causando um enorme prejuízo aos comerciantes acreanos.
Braga, então, vendo a hombridade cívica de Galvez, reconheceu a sua correção e não hesitou em confiar-lhe do novo a Presidência, visto estar convicto da sua honestidade no movimento, apesar das difamações que injustissimamente se tem propalado. Renunciou o elevado cargo, visto a sua saúde encontrar-se bastante alterada e ter que dar cumprimento a uma espinhosa comissão dos revolucionários e tratar de urgentes negócios nas praças do Pará e de Manaus, sob a condição expressa de se indultarem todos os presos políticos, o que realmente se cumpriu. As cartas do Cel Braga e comandante Álvaro pormenorizam o deturpadíssimo caso do Riozinho. Estas missivas, como outras publicações, farão parte do corpo do documentos que a Comissão brevemente publicará em livro; para ser distribuído em toda a Federação Brasileira e no estrangeiro.
Adrede ([8]) vem o desfazer a inventiva de que os acreanos têm por Luiz Galvez um fanatismo. Não! Os insurretos admiram e seguem este benemérito da revolução, como enalteceram o Coronel Antônio de Souza Braga, porque ambos puseram os seus valiosos e leais serviços ao dispor dos batalhões.
Ali não há pessoas a guindar ([9]), mas sim princípios invulneráveis a barricar ([10]). Ali não se atende a caprichos momentâneos, nem a cálculos interesseiros, mas sim à soberana vontade popular, que é unânime em advogar a causa do Brasil, qualquer que seja o dirigente das suas hostes, uma vez que o seu caráter se comprove em surtos de abnegação.
Fanático é o religioso, que caminha para o abismo, se lhe acenarem com a cruz e a fé, inda que fementidamente ([11])! Fanático é o politiqueiro, que muitas vezes se deixa embair ([12]) por cantos de sereia e arremessa à perdição a família e a vida! Fanático é o militar, quando obedece cegamente à estrela dos generais e lhes entrega os peitos, no mais temerário dos recessos, no mais hiante ([13]) dos perigos! (OCS, n° 008)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.01.2022 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
OCS, n° 008. A Questão do Acre – Brasil – Cruzeiro do Sul, AC – Jornal O Cruzeiro do Sul, n° 008, 30.06.1906.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Cifrava-se: resumia-se.
[2] Unissonamente: unanimemente.
[3] Caciquismo: arbitrariedade.
[4] Epítetos: adjetivos, apelidos, qualidades.
[5] Só do Rio Acre. A sua produção, no entanto, é hoje superior a 4 milhões de quilos. [Este escrito é de 1.900] (Fran Paxeco)
[6] Incendidos: inflamados.
[7] Desarrolar: desdobramento.
[8] Adrede: a propósito.
[9] Guindar: exaltar.
[10] Barricar: defender.
[11] Fementidamente: enganosamente.
[12] Embair: enganar.
[13] Hiante: ávido.