Dois artigos recentes mostraram que a intervenção humana na floresta favorece a dominância do mosquito “Anopheles darlingi” e em quais momentos há picos de infecção pela doença
Dois estudos liderados pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP ajudam a entender como as ações antrópicas interferem no comportamento e na distribuição de mosquitos transmissores de malária na região amazônica.
O primeiro é o doutorado do biólogo Leonardo Suveges Moreira Chaves. Em um dos resultados, Chaves mostrou que as mudanças causadas pelo homem na vegetação da Floresta Amazônica diminuíram a biodiversidade de mosquitos e levaram o anopheles (Nyssorhynchus) darlingi a se tornar o principal vetor da malária na Amazônia, aumentando o risco de transmissão da doença.
Outro achado importante foi que ambientes florestais fragmentados, habitados por pessoas vulneráveis em casas precárias, são as fontes dessa espécie, enquanto habitats de florestas contínuas ou completamente desmatados, sumidouro.
“Fomos a assentamentos rurais em que havia ocorrência de malária e vimos essa relação: conforme o homem muda a paisagem, a comunidade de mosquitos também sofre alterações, favorecendo a dominância do Ny. darlingi”, explica Chaves. O trabalho deu origem a um artigo publicado em 2021 na revista Plos One.
O segundo estudo faz parte do também biólogo Gabriel Laporta, pesquisador do Centro Universitário FMABC. Para o trabalho, que foi publicado também no início de 2021 na Scientific Reports, Laporta analisou dados de mosquitos anophelinos capturados anteriormente e os utilizou para investigar o quanto o desmatamento impulsiona a ocorrência de malária em paisagens rurais.
O maior risco da doença ocorre em locais onde o desmatamento acumulado atingiu cerca 50% da cobertura vegetal fragmentada. O primeiro pico ocorre após dez anos do início do assentamento, e o segundo, 35 anos depois.
“Decidimos partir de uma teoria já descrita anteriormente – a malária de fronteira – e colhemos dados in loco das comunidades”, ressalta Laporta. Esse é um conceito que diz que a ocorrência de malária é consequência não só da presença do vetor, mas também das condições socioeconômicas de uma comunidade.”
As investigações de Chaves e Laporta fazem parte de um projeto maior, coordenado por Maria Anice Sallum, bióloga e professora do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Uma equipe de cientistas viajou, entre janeiro de 2015 a novembro de 2017, para 12 municípios da Amazônia brasileira, e conseguiram capturar mais de 25 mil espécimes de mosquitos, de 173 espécies em 17 gêneros diferentes.
Com esse grande número de insetos em mãos, foi possível montar um banco de dados, atualmente disponível para outros cientistas.
“A gente não consegue entender a doença, o que acontece, quais são os determinantes da malária se você não vai a campo”, descreve Maria Anice. “É importante, também, observar a situação do ambiente físico, biológico e social.”
As principais causas do aumento do risco de malária em países endêmicos, incluindo o Brasil, são o desmatamento, mudanças nas comunidades de mosquitos, perdas de biodiversidade ligadas à agricultura, projetos de desenvolvimento de infraestruturas como usinas hidrelétricas, piscicultura, atividades de mineração, além da urbanização e invasão de terras indígenas para extração ilegal de madeira e mineração.
“O Brasil já foi modelo no controle de vetores e da própria malária”, afirma Maria Anice. De fato, para proteger e promover a conservação da floresta amazônica, o Brasil desenvolveu um sistema avançado de vigilância ambiental para monitorar incêndios e o desmatamento, por meio de mapas baseados em imagens de satélite.
As políticas de expansão de terras indígenas em áreas protegidas e áreas desabitadas foram bem-sucedidas ao longo dos anos. “Mas, desde 2019, o garimpo ilegal e o desmatamento cresceram muito na região”, relata Chaves.
Desenhando o estudo
Para desenvolver sua pesquisa, Chaves selecionou os mosquitos capturados em 79 unidades de coleta – assentamentos rurais que compreendiam, principalmente, fazendas de subsistência – em 12 municípios nos Estados da Amazônia brasileira do Acre (Acrelândia, Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Rodrigues Alves), Amazonas (Itacoatiara, Guajará, Humaitá, Lábrea, São Gabriel do Pará), ( Pacajá), e Rondônia (Machadinho D’Oeste).
Cada unidade correspondia a uma residência com um habitat chamado de peridomicílio (área externa, distante cerca de 5 metros da entrada da residência), que se separavam umas das outras por aproximadamente 2,25 km (correspondente ao raio de voo do anopheles darlingi).
“Em cada ponto amostral, escolhemos três tipos de paisagem: uma muito preservada, outra com certo grau de desmatamento (que variava entre 40% a 60% de cobertura florestal remanescente) e por último, uma área em que a porcentagem de floresta era inferior a 40%”, explica Maria Anice. “Além disso, era primordial ter presença de malária no local.”
Foram utilizadas três técnicas para prender os insetos. A primeira, chamada de humano protegido, foi feita próxima da residência. Os cientistas, devidamente paramentados, aguardavam os mosquitos que se aproximavam para se alimentar deles.
A segunda foi feita com armadilha de Shannon, usando luz e atração humana, e instalada na borda da mata. Os pesquisadores simulavam barracas muito simples – um quadrado de pano branco com um telhadinho, de acordo com Maria Anice – e penduravam uma lâmpada que atraía os insetos.
Por último, para observar o comportamento alimentar dos mosquitos, foi colocada uma rede entre o criadouro (margem da floresta) e a casa. A tela, que tocava o chão, foi dimensionada para que mais insetos caíssem na armadilha.
De acordo com Maria Anice, a quantidade de mosquitos com sangue e infectados com plasmódio surpreendeu a todos. “Se eles estavam contaminados, significa que se alimentaram de alguém antes. Conseguimos capturá-los antes que transmitissem a malária”, explica a professora.
De hora em hora, os lotes de mosquitos eram fechados. Todo o material coletado (25.323 mosquitos) veio para São Paulo para ser devidamente identificado.
Depois das análise e tabulação dos dados, as espécies mais abundantes encontradas foram aquelas da subfamília Anophelinae (56%), com Ny. darlingi representando 83% do total de coleções de Anophelinae no peridomicílio. Outros, como a tribo Mansoniini (19%), Culicini 19% e Aedini 4%, também foram identificados. Mosquitos das tribos Aedeomyiini, Uranotaeniini e Sabethini representaram 1% do total coletado.
“No campo presenciamos várias ações relacionadas ao desmatamento, como forno de carvão, caminhões com toras de madeira circulando madrugada adentro, áreas recém-desflorestadas etc.”, comenta Chaves.
Malária de fronteira
A principal pergunta que Laporta queria responder era em quais configurações uma floresta tropical apresentaria um maior risco de transmissão da malária.
Para iniciar as investigações, Laporta partiu de uma teoria conhecida como “Malária de Fronteira”, descrita nas zonas de divisa com a Amazônia. Esse padrão está principalmente associado à ocupação de terras para expansão do agronegócio e da pecuária. Num primeiro estágio, as áreas recém-desmatadas são fortemente impactadas pela rápida intensificação da transmissão da doença, seguida de uma estabilização. Após vários anos, essa incidência diminui.
Os mecanismos subjacentes associados a esse estágio de transmissão são fatores ecológicos (desmatamento e perda de biodiversidade), que favorecem o aumento na abundância do vetor da malária e na taxa de infecção por Plasmodium. Fatores sociais, como habitações humanas melhoradas e melhor acesso a produtos para tratar malária levam a uma diminuição das taxas de infecção humana e de mosquito.
A grande novidade da tese de Laporta é que ele se baseou na coleta de dados realizada em assentamentos rurais. Esse desenho fornece informações detalhadas da escala da paisagem local e da incidência da malária. Dados de 21.242 espécimes de anofelinos pertencentes a 37 espécimes, coletados em 80 locais de 5 km2, em 12 municípios e quatro Estados da Amazônia entre 2015 e 2017, foram analisados.
Laporta também usou imagens de satélite, importantes para dar uma “visão geral” do que vem acontecendo na Amazônia ao longo dos anos.
A Malária de Fronteira diz que há dois picos de transmissão da malária – dez e 35 anos após o início de um assentamento, seguida de uma desaceleração da incidência da doença depois do décimo ano, possivelmente devido à diminuição dos níveis de desmatamento, à melhoria do ambiente socioeconômico e melhor acesso a diagnóstico e tratamento. Por outro lado, a patogenicidade do local em termos de vulnerabilidade e receptividade à transmissão do Plasmodium permanece.
Um segundo pico de malária é observado 35 anos após o início de um assentamento e está associado a uma segunda onda de colonização, expansão das fronteiras locais de desmatamento, aumento da população humana resultante do crescimento das famílias e migração de colonos de outras áreas endêmicas de malária para uma área recém-colonizada.
Diferentemente do preconizado pela teoria anterior, os resultados das investigações de Laporta estimaram dois picos para a ocorrência de vetores. O primeiro ocorreu entre dez e 12 anos depois do início da organização de um assentamento por P. vivax, N. darlingi ou por vetores locais de malária. O segundo ocorreu entre 36 e 38 anos depois do início do assentamento por P. vivax – Ny. darlingi, quando os vetores secundários estavam ausentes.
“O que queremos dizer é que as duas dimensões – temporal e espacial- são essenciais para entender a dinâmica da doença na Amazônia”, diz Laporta.
Problema grave de saúde pública
A malária é considerada uma das doenças de maior impacto na mortalidade e morbidade em populações de países tropicais e subtropicais. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que, em 2019, 229 milhões de novos casos da doença foram notificados no mundo, além do registro de mais de 409 mil óbitos.
Já o Ministério da Saúde relata que em 2020 foram registrados 145 mil casos da doença em todo o País – mais de 99% deles somente na região Amazônica brasileira.
A malária, também conhecida como sezão, paludismo, maleita, febre terçã e febre quartã, é uma doença infecciosa febril aguda, transmitida pela picada da fêmea do mosquito anopheles infectada por protozoários do gênero Plasmodium. No Brasil, três espécies estão associadas à malária em seres humanos: P. vivax, P. falciparum e P. malariae.
Os sintomas mais comuns são calafrios, febre alta, taquicardia, dores de cabeça e musculares, entre outros. Geralmente, a infecção por P. falciparum costuma ser mais grave – há um risco maior de se desenvolver a malária cerebral, responsável por cerca de 80% das mortes pela doença.
Ocorre, na grande maioria das vezes, em populações pobres e marginalizadas. “Quando viajamos para as regiões de estudo, presenciamos todos os processos de degradação acontecendo ali, na nossa frente”, relata Chaves. “Percebemos que as pessoas estão, na verdade, em busca de uma renda para sobreviver.”
Como prevenção, são aplicadas medidas individuais e coletivas. Cada pessoa pode usar mosquiteiros impregnados com inseticidas, roupas que protegem pernas e braços, telas em portas de janelas, além do uso de repelentes.
Já a prevenção coletiva inclui a eliminação dos criadouros do vetor, limpeza das margens dos criadouros, melhoria das moradias, uso racional da terra, entre outras.
Legado
Como Maria Anice contou ao Jornal da USP, as análises também conseguiram identificar o horário de pico da infecção dos mosquitos. “Acontece durante toda a madrugada, mas se acentua entre meia-noite e 3 da manhã”, relata. “Esse é um fato importante e nos mostra que o uso de mosquiteiro impregnado com inseticida tem um efeito positivo.”
A transmissão fora do domicílio também merece atenção, pois as medidas de controle devem ser diferentes. “Tem um grande número de insetos voando fora da casa e, por isso, a população precisa se proteger enquanto cozinha ou toma banho, por exemplo”, alerta a professora.
Maria Anice relata, ainda, que alguns locais da Amazônia apresentaram índices de transmissão tão altos que podem ser comparados aos da África subsaariana. “Em Machadinho D’Oeste (RO), por exemplo, uma pessoa infectada gera 58 novos casos de malária”, conta. “Claro que nem todos os locais são assim, mas Lábrea (AM), Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima (AC) também tiveram o mesmo comportamento. A novidade do nosso trabalho é que conseguimos quantificar esse índice, conhecido como R0.”
Novos projetos continuam em desenvolvimento no grupo de pesquisa de Maria Anice. Um deles está sendo feito em parceria com o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. “Trabalharemos com técnicas de sequenciamento do genoma para ver se há mutações na população de Anopheles Darlingi que indiquem adaptação deles a novas condições ambientais”, conta Maria Anice.
Mais informações: e-mail [email protected], com Maria Anice Sallum; e-mail [email protected], com Leonardo Suveges Moreira Chaves; e e-mail: [email protected]
PUBLICADO POR: JORNAL DA USP
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