Epopeia Acreana

Hiram Reis

O Perigo Americano – II 

Às expedições de flibusteiros norte-americanos, organizadas de 1849 a 1851, sob o comando de Narciso Lopez, com o fim de libertar a ilha de Cuba, e de Walker à América Central, se devem atribuir os receios da diplomacia brasileira, que, de acordo com a opinião corrente na Europa, supunha aquelas tentativas favorecidas pelo governo dos Estados Unidos. Tal suspeita tomou corpo, quando esta potência rejeitou o acordo proposto pela França e Inglaterra, de renunciarem as três nações, solenemente, quaisquer pretensões sobre aquela ilha, e impedirem, coletivamente, iguais tentativas da parte de indivíduos ou de outra potência. A razão da recusa foi ‒ “que a política dos Estados Unidos, fora, uniformemente, evitar, tanto quanto possível, alianças ou acordos com outros Estados e ficarem livres de obrigações internacionais, exceto aquelas que afetassem diretamente os interesses dos Estados Unidos”.

Essa recusa parecia evasiva; mas na terceira mensagem evasiva, o presidente Fillmore declarou que assegurara aos ministros daqueles duas nações que os Estados Unidos “não mantinham desígnios contra Cuba, e que, ao contrário, consideravam a sua incorporação à União”, naquele tempo; um sério perigo. Mais tarde, em 1854, surgiram, em Nova-Orleans, expedições de flibusteiros iguais às de Narciso Lopez, sob o comando de Quitman, antigo governador do Mississipi, o qual foi preso por ordem do governo, e obrigado a respeitar as leis de neutralidade.

Ocorreu também, no mesmo ano, o bombardeamento da cidade nicaraguense, S. Juan del Norte, pelos norte-americanos. Para a diplomacia brasileira, nada valiam os protestos dos Estados, de renúncia absoluta às expansões territoriais, ao passo que assumiam proporções extraordinárias e terríveis os menores incidentes que pudessem justificar as nossas irredutíveis suspeitas.

Os precedentes, entretanto, não as justificavam. Foi, sem contestação, o glorioso exemplo dos Estados Unidos que estimulou os povos neoespanhóis à conquista da independência, pela qual os norte-americanos manifestaram não só o mais vivo interesse, como prestaram apoio material.

Entre os seus estadistas mais notáveis, Henry Clay foi o primeiro a esposar francamente a causa dos Estados hispano-americanos, e ainda recordamos com entusiasmo o seu famoso discurso, talvez o mais vigoroso e eloquente que jamais proferiu ‒ o flamejante pronunciamento que empolgou a Câmara dos Representantes, em 24.03.1818.

Foi então que aquele hercúleo orador apresentou uma emenda ao projeto, decretando verba para as despesas com os comissários nomeados pelo presidente Monroe para estudarem as condições políticas das colônias espanholas, acrescentando que fosse votada a soma necessária para o ordenado e ajuda de custo de um ministro acreditado nas províncias unidas do Rio da Prata.

Nesse e noutros discursos sobre o mesmo assunto, traduzidos para o espanhol, e lidos solenemente perante os exércitos das repúblicas do Sul, Henry Clay delineou magistralmente a política que tem sido sempre observada desde Washington a Cleveland.

A sua opinião vitoriosa era que os Estados Unidos tinham o mais profundo interesse na independência da América espanhola, e jamais havia ocorrido, na política internacional do país, questão de tamanha transcendência e na solução da qual tivessem mais a arriscar interesses concernentes não só à política como ao comércio e navegação.

Dizia ele: 

Não há dúvida que a América espanhola, uma vez independente, qualquer que seja a forma de governo adotada, sua administração será animada pelos bons sentimentos e guiada pela política americana; obedecerá às leis do sistema do Novo Mundo, de que fazem parte, muito diferentes das que regulam os destinos dos povos do continente europeu.

Monroe, em sua primeira mensagem ao Congresso, afirmou que, se as colônias espanholas alcançassem a independência, o governo americano não procuraria, nem aceitaria delas vantagens comerciais ou de outra natureza, que não fossem extensivas às outras nações.

Tornar-se-ão Estados independentes, livres de qualquer obrigação para conosco, senão aquelas em que for de seu interesse o contraírem-se sobre as bases de uma perfeita reciprocidade.

Como afirmação solene dos princípios capitais dessa doutrina, depois de vários Tratados de Aliança, feitos por iniciativa de Bolívar com o fim de se unirem contra a Espanha, as repúblicas sul-americanas projetaram o Congresso do Panamá, no qual as nações americanas formariam um solene pacto ou liga contra o inimigo comum, a Espanha, ou outra qualquer potência que a auxiliasse ou por qualquer forma tomasse atitude de inimigo.

Nenhum ensejo mais propício poderiam sugerir os acontecimentos para colocar toda a América sob a superintendência, senão domínio, dos EUA; entretanto, Adams; em sua primeira mensagem de 06.12.1825, assim se exprimiu sobre o convite:

O convite foi aceito e serão nomeados ministros para representarem os Estados Unidos e tomarem parte nas deliberações, de modo compatível com a neutralidade, da qual não é intenção nossa, nem dos outros Estados americanos, nos desviarmos.

Tal deliberação foi brilhantemente justificada em mensagem ao Congresso, afirmando que, antes de aceitar o convite, havia ponderado se ela poderia influir na transformação da política internacional, e respeitado o Conselho de Washington, em sua mensagem de despedida, estabelecendo a grande norma de conduta relativa às nações estrangeiras ‒ expandir as relações comerciais com as menores conexões políticas possíveis, que o “Pai da Pátria” qualificara de alianças. Mas as circunstâncias eram outras, e o comparecimento dos Estados-Unidos não importaria infração daquelas normas. Apesar de amplamente justificada a deliberação, o Senado rejeitou-a, por ser contrária a tradição e honesta política de evitar alianças comprometedoras. Mais tarde, mediante nova mensagem, a mesma deliberação foi aprovada.

Representantes do Peru, América Central, Colômbia e México se reuniram em Panamá a 18.06.1826. O Chile, Argentina e Brazil, se bem que houvessem aprovado a organização do congresso, não compareceram, assim como os Estados Unidos cujos representantes não chegaram a tempo, talvez de propósito. Desse Congresso resultou um Tratado, que só foi ratificado pela Colômbia.

Outras tentativas foram feitas no mesmo sentido: o Congresso de Lima, em 1847, com o fim de manter a independência, soberania e a integridade territorial das repúblicas neoespanholas; o Tratado Continental de 1846, entre o Peru, Chile e Equador, no qual preponderava o intuito de hostilidade contra os EUA por causa das mencionadas expedições de flibusteiros. E, em uma comunicação do governo de Costa Rica, ao da Columbia, em 1862, desponta o terror de serem correntes, nos Estados-Unidos, doutrinas que poderiam ser fatais às nacionalidades ainda mal firmadas, e que as vandálicas expedições de 1855 e outras até 1860 foram interrompidas por intervenção, embora tardia, de potências europeias. O segundo Congresso de Lima, em 1864, para organizar a união latino-americana, foi inútil como os anteriores.

Quando, em 1854, apareceu o famoso “Ostend manifesto”, dirigido ao secretário Marcy pelos Ministros Buchanan, Mason e Soulé, demonstrando as vantagens da aquisição da ilha de Cuba, o permanente perigo de ser possuída por uma potência estrangeira e o interesse da Espanha em vende-la por $120.000.000, a tradicional política internacional foi mantida pela rejeição das ideias do manifesto.

O mesmo sucedeu quando Buchanan, eleito presidente, renovou o projeto de aquisição da ilha, na segunda mensagem e nas de 1859 e 1860.

A história dos nossos dias oferece testemunho irrecusável de que os Estados-Unidos jamais adquiriram por meio de violência ou conquista, ou pelo processo inglês de expansão da influência, começando pelas Chartered Companies, a intrusão depois, e protetorado mais tarde, e, finalmente, a extorsão, como está acontecendo no Transvaal, uma polegada de Território.

O caso do Texas, citado pelos que lhe conhecem a história de ouvida vaga ([1]), a incorporação à União foi determinada por espontânea iniciativa do seu povo, cuja independência, alcançada pelas armas de 1836, fora reconhecida pelos Estados-Unidos, em 03.03.1837, e pela Inglaterra, em 1842; sendo de notar que os presidentes Jackson, Van Buren e Tyler, inspirados pelo conselho do imortal Washington, haviam recusado propostas feitas pelo governo daquele Estado, para evitar questões com o México. As anexações de territórios mexicanos poderiam ter sido resultado natural da guerra provocada pelas permanentes perturbações da fronteira, crueldades infligidas pelas autoridades mexicanas a cidadãos norte-americanos, e os lamentáveis resultados de ódios religiosos, herdados da fatal cegueira do sistema colonial espanhol.

As hostilidades começaram a 28.03.1846 e terminaram pelo Tratado de Guadalupe-Hidalgo. Os mexicanos abandonaram suas pretensões ao Texas e cederam a Alta Califórnia e o Novo México, que os Estados-Unidos poderiam adquirir, com o direito da vitória, por $ 18.500.000.

Em 02.02.1848, celebraram os dois países um Tratado de Limites e Comércio, no qual foi estipulado que os Estados-Unidos pagassem ao México a soma de $ 15.000.000 em compensação dos Territórios adquiridos, ficando mais o governo mexicano exonerado da responsabilidade dos danos sofridos por cidadãos norte-americanos. Outro Tratado de Limites foi concluído a 30.12.1853, em virtude do qual o governo americano pagou mais ao México a soma de $ 10.000.000.

Tais aquisições foram legítimas transações, iguais à da Luisiana, cedida pela França conforme o Tratado de 30.04.1803, mediante a indenização de 60 milhões de francos, além do valor das indenizações devidas por ela a cidadãos americanos; a da Flórida, cedida pela Espanha, em virtude do tratado de 22.02.1819, por $ 5.000.000; e Alasca, adquirida da Rússia, segundo o Tratado de 30.03.1867, por $ 7.200.000. Não são menos contraproducentes aos receios de anexação os fatos relativos a S. Domingos e Haiti, fortemente documentados no conhecido Digesto de Wharthon.

A aquisição de Alasca parecia animar a política de Seward, que, adversário das anexações antes da guerra de secessão, adotara depois de extinta a escravidão, persuadido de não haver já sério obstáculo à expansão da jurisdição dos Estados Unidos no continente norte-americano. Assim, não só encetou as negociações, em janeiro de 1866, com o ministro dinamarquês para a compra das ilhas San Thomas e S. João, como tratou de anexar as de S. Domingos e Haiti, com o fim de obter posição estratégica nas Antilhas, no interesse da defesa e comércio nacionais.

Essa política foi adotada, em 1869, pelo presidente Grant, que concluiu, na mesma data, 29 de novembro daquele ano, o Tratado de anexação da República Dominicana e a convenção do arrendamento da baía e península de Samana, como ato de adesão à doutrina de Monroe, medida de defesa nacional e predomínio sobre o comércio através o istmo de Darien, desenvolvimento da marinha mercante, estabelecimento de mercados consumidores e oposição à escravatura em Cuba, Porto Rico e Brasil.

Apesar do interesse com que foi recomendado e das razões que o justificavam, o Tratado foi rejeitado pelo Senado, em obediência às mesmas ideias que o induziram a repelir o Tratado, de 30.06.1868, de cessão das ilhas S. Thomaz e S. João, aceita pelos respectivos habitantes por um plebiscito, de janeiro de 1868, mediante a indenização de $ 7.500.000.

A anexação das ilhas Sandwich vinha de 1850, tendo como partidários os Secretários de Estado Marcy, Seward, Fish e Blaine. Catequisados por missionários norte-americanos, que, desde 1820, os organizaram em povo cristão, com a linguagem nativa gramatizada e com instituições políticas, era natural o pendor dos indígenas do arquipélago para os Estados-Unidos, cujo governo, entretanto, sempre recusou as reiteradas propostas de anexação, até que a revolução de 07.01.1893 proclamou a República sob a administração de um governo provisório. Esse movimento foi protegido pela atitude do ministro Stevens e pelo apoio das tropas norte-americanas, desembarcadas em Honolulu a pretexto de proteger a legação, o consulado e as propriedades dos cidadãos norte-americanos. Era tão natural como reação legitima ao corrupto governo indígena e tão propício aos interesses morais e materiais do arquipélago, que não encontrou oposição. O corpo diplomático de representantes da França, Inglaterra, Portugal e Japão, reconheceu imediatamente a nova forma de governo estabelecida sem derramamento de sangue.

O Tratado de anexação foi celebrado em Washington, a 14.02.1893, entre Foster, Secretário de Estado do Presidente Harrison, e os comissários de Havaí: mas não foi tomado em consideração pelo Senado, donde foi retirado pelo presidente Cleveland para estudar, com investigações imparciais, a revolução e o estabelecimento do governo provisório.

A intervenção do Sr. Cleveland neste assunto, que poderia, sem responsabilidade, e respeitando o procedimento do seu antecessor, deixar à deliberação do Senado, não se limitou à retirada do Tratado de Anexação; pensava ele que o governo devia, como reparação, restaurar a rainha deposta, e não levou a efeito tal propósito porque reconheceu ter ele pouca probabilidade de êxito, sem grande resistência do governo provisório e sem derramamento de sangue. Resignou-se ao fato consumado e enviou ao Congresso as informações e documentos colhidos por emissários de sua confiança, terminando a sua mensagem com o seguinte trecho:

Entregando este assunto aos poderes e deliberação do Congresso, desejo acrescentar a segurança de que terei muito prazer em cooperar em qualquer plano que seja adotado para a solução do problema em que estão empenhadas a honra, integridade e moralidade americanas.

O vivo debate que esse caso provocou no Congresso, a prolongada discussão e o fato de só ser resolvida a anexação na presidência de McKinley provam que, fieis à sua política internacional, os americanos relutaram em adquirir um Território que deverá ser ardentemente cobiçado, por sua posição especial no centro do Pacífico e ponto de escala obrigatório das comunicações entre a costa Ocidental da América do Norte e a costa Oriental da Ásia. (OS ANNAES, N° 79)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 31.12.202I – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

OS ANNAES, N° 79. Páginas Esquecidas – O Perigo Americano ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Os Annaes, n° 79, 03.05.1906.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Ouvida vaga: outrora chamada também de “voz pública” e atualmente boato ou “Fake News”.