Epopeia Acreana  

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Contrato Aramayo-Whitridge – II  

Diário de Pernambuco, n° 204
Recife, PE – Domingo, 07.09.1902

Ontem e Hoje
(D’O Paiz de 29 de agosto) 

Com surpresa geral se soube ontem que o Dr. Campos Salles havia resolvido liquidar a Questão do Acre, concordando em gênero, número e grau com as alegações da chancelaria boliviana. É, pelo menos, o que nos diz o nosso ilustre colega da “Gazeta Notícias”, sempre excelentemente informado em tudo quanto diz respeito à nossa política exterior.

Tendo o Sr. Pinilla solicitado do nosso governo que este lhe indicasse, de um modo claro, o seu pensamento sobre essa Questão, para que o Congresso boliviano pudesse deliberar proveitosamente sobre o caso, foi-lhe dito que o:

Brasil não se opunha ao funcionamento de uma empresa puramente industrial aos seringais do Acre, contanto que aquela República conservasse conjuntamente a administração e a fiscalização dos contratos e, de acordo conosco, estabelecesse a sua Recebedoria em um porto seu ou em Manaus.

Isto é nada mais e nada menos do que reconhecer o direito da Bolívia a arrendar aquele Território a uma companhia estrangeira, do que admitir como inócua o instalação de uma grande empresa americana no coração do Amazonas, em contrário a tudo quanto se alegou, com mais ou menos energia, junto ao governo de La Paz e se repetiu junto às chancelarias das principais nações sul-americanas.

Ainda há pouco tempo, num “interview” publicado nas colunas de um órgão vespertino, o Sr. Ministro sustentava que não era a falta da demarcação da fronteira nesse ponto que o impelia a criar dificuldades ao arrendamento, mas, simplesmente, o fato de uma nação vizinha, fosse ela qual fosse, admitir na linha divisória o estabelecimento de uma empresa colonial estrangeira, por trás da qual, num futuro mais ou menos remoto, se estenderia uma garra usurpadora.

A imprensa oficiosa, cantou, em períodos que tinham o calor de “ditirambos” ([1]), os esforços gigantescos da nossa chancelaria para obstar a operação projetada pelo General Pando nas grandes praças europeias e americanas. O arrendamento não se fará clamou-se em toda a linha ‒ e há poucos dias ainda, a propósito da mensagem do General Pando, se pretendeu convencer o espírito público de que o presidente da Bolívia, dando formal cumprimento à sua promessa, recomendava ao Congresso a rescisão do contrato, celebrado por força de uma lei, no exercício de uma função soberana.

Eis aí está agora desmascarada toda a comédia, abatido deprimentemente o orgulho da nossa chancelaria, postas a nu a sua fraqueza e a sua inépcia. Anteontem era a Bolívia a afirmar que tinha a seu lado a opinião das potências, a dizer que em nada se incomodava com as exigências do Brasil, a provar aos governos mais fortes do nosso continente a nossa sem razão, a nossa má vontade, o nosso prurido de a desgostar e a perseguir, em contraste com as suas demonstrações de cordialidade, de lisura, com o seu empenho de não, lesar os nossos interesses nem ferir o nosso melindre nacional.

Hoje é o governo do Brasil que vem dar ganho de causa à Bolívia e confessar a incapacidade da sua administração, aceitando à última hora o contrato de arrendamento com a ressalva de que ele de modo algum importará a solidariedade política de qualquer governo, de que a empresa seja simples e claramente mercantil, sem faculdades que de leve possam recordar uma delegação da soberania. Não é espantoso tudo isso?

Até agora o arrendamento era um perigo a integridade nacional, era a porta aberta à expansão americana, e exigia-se da Bolívia formalmente a rescisão desse negócio, tramava-se nas diferentes praças e junto a diversas chancelarias contra o êxito da tentativa do Sr. Aramayo, por um instinto de defesa continental, ante a febre da denominação Yankee.

E, no desejo de intimidar a Bolívia, de lhe fazer sentir a nossa irritação, de a convencer da leviandade de seu projeto, promovemos espalhafatosamente a retirada do Tratado de Comércio, retiramos o consulado de Porto Alonso, mandamos tributar, como nossa, a borracha de procedência acreana, impedimos o livre trânsito no Amazonas às mercadoria importadas ou exportadas pela Bolívia, estivemos na iminência de romper hostilidades.

A Bolívia, desdenhosa, mostrava-se insensível a estes amuos e a estas provocações. A todo o momento, a imprensa governamental, para dar alento à nação, assegurava que, apesar de todas as dificuldades, a vitória seria nossa, muito em breve.

O oposicionismo rubro para impopularizar o governo e aumentar-lhe as dificuldades, insinuava demagogica­mente a proteção americana a essa negociata, e um escritor, célebre pelos seus carnavalescos avatares políticos, hoje a boa razão para nos atar todas as tardes ao pelourinho motineiro da sua prosa gingada, insinuou que o aparecimento de vasos da Marinha de Guerra dos Estados-Unidos nas nossas águas valia por uma careta para nos obrigar a ter juízo e fechar os olhos à sua gula. Afinal de contas, verificou-se que o governo estava representando uma farsa de péssimo gosto para o Brasil e para o estrangeiro, mostrando a todos um arreganho, uma belicosidade que não passavam, no fundo, de bazófias de sendeiro a querer passar por leão.

O Dr. Campos Salles, que, na sua omnipotência, já revogara o decreto da livre navegação do Amazonas, que já andava com ideias de mandar o estado-maior estudar um plano de invasão da Bolívia, que encarregara os nossos representantes junto a certos governos de promoverem uma liga internacional contra as ambições americanas, no continente, resolveu, por fim, capitular ante a diplomacia do Gen Pando, considerar como um serviço ao nosso progresso o que há pouco era um atentado à nossa integridade e reconhecer como legítimo, como inocente, como vantajoso, até, o arrendamento do Acre ‒ desde que ele só se revestisse de um caráter industrial. Mas a quem pensa o Dr. Campos Salles iludir neste jogo? Porque o país inteiro é paciente e suporta resignado os seus desacertos e as suas opressões, não se segue que ele seja composto de imbecis. As ressalvas que S. Exª manda agora abrir no contrato do arrendamento, de modo a dar ao público a impressão de que ele vai ser modificado de acordo com as exigências de nossa chancelaria, não passam de um artifício vulgar, de um engodo inútil à credulidade brasileira.

O Gen Pando sempre sustentou que esse contrato era de natureza exclusivamente comercial e os argumentos que em defesa dessa opinião formulou ao nosso Ministro em La Paz, sustentou-os com galhardia junto às potências sul-americanas, cujo protesto o nosso governo pretendeu levantar contra o ato da Bolívia. Temos sobre a mesa um número da “Opinião de La Paz”, contestando as ponderações feitas pelo Dr. C. Salles, na sua última mensagem, sobre esse contrato, e pena é que os raciocínios apresentados, nesse longo artigo de inspiração oficial, só agora pudessem calar no espírito do chefe da nação e predispô-lo a ver nesse negócio uma simples e inocente exploração de seringais, sem o menor alcance para o expansionismo americano.

Do contrato, com efeito, não ressalta expressamente a intervenção dos Estados-Unidos, nem o seu governo era tão tolo, que deixasse perceber o objetivo de mais tarde apropriar aos seus interesses essa esplêndida concessão. O perigo para o Brazil não está nos termos do contrato ‒ está no negócio em si, seja qual for a amplitude dos direitos e dos favores que o Decreto outorgue. O que convém à política americana é que uma empresa comercial, de largo folego, se instale no coração do Amazonas, aí firme a sua autoridade, aí alargue a sua influência.

Depois do sindicato lá estar, lá ficará para sempre, em Território sujeito às leis bolivianas, sobre o qual mais tarde qualquer exigência nossa revestirá uma feição provocadora à grande potência americana. Sobre o Acre, o Brasil, ainda desta vez, tratou bem ou mal com a Bolívia: depois da companhia americana entrar em operações é com esta que teremos de nos entender. A concessão agora será, na aparência, simples, para afastar as suspeitas, para dar entrada à poderosa companhia de exploração colonial; mas dentro em pouco, quando o domínio da empresa estiver consolidado, ela obterá em seu benefício as alterações que quiser, sem receio de impertinências da nossa chancelaria.

Só o Dr. Campos Salles finge à última hora não ver este perigo e, capitulando ante a chancelaria de La Paz, lavra pusilânime e ineptamente uma sentença de morte à integridade do Amazonas. O Acre está, pois irremediavelmente perdido, por culpa exclusiva do governo que faz o nosso infortúnio e nossa vergonha. Ontem exigindo, com altivez, de pé; hoje condescendendo, com desculpas, de cócoras… Que outras misérias e outras humilhações estarão guardadas a esta infeliz República? … (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, N° 204)

Tertius Gaudet

Diário de Pernambuco, n° 249
Recife, PE – Sexta-feira, 31.10.1902

A Conquista
(D’O Paiz) 

[…] Trate-se embora de um simples despacho, de caráter reservado, dirigido à “Folha”, do Pará, ele é, verdadeiramente, de natureza a sobressaltar o espírito nacional, rasgando aos olhos da Pátria, negros, tristes horizontes em cuja orla se vislumbram amargas horas de provação e de sofrimento. No seu laconismo ameaçador dizem esses telegramas haverem embarcado em Nova York os representantes do “Bolivian Syndicate”, escoltados por tropas norte-americanas, encarregadas de garantir a expedição tornando efetiva a ocupação do Território do Acre, onde mourejam, esparsos pelas margens dos rios e pelos seringais cerca de 30 mil brasileiros que desbravaram o solo aspérrimo, em meio de árduos trabalhos, confiantes na proteção que a todo momento e em qualquer emergência lhes dispensaria a bandeira de sua Pátria.

A ser verdadeira a notícia; se efetivamente partiu daquele porto a comissão sindicatária, acompanhada de força regular de uma nação que até aqui nos tem afirmado a sua amizade, protestando sempre a sua boa camaradagem internacional, garantindo-nos a sua nenhuma intervenção, a sua completa neutralidade na pendência do Acre, o fato assume as proporções da mais audaciosa da mais cobarde e cavilosa das traições, afrontadora da dignidade dos povos cultos e das mais rudimentares praxes do direito das gentes. […] (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, N° 249)

Imperialismo

Goyaz, n° 757
Goiás, GO – Sábado, 21.03.1903

Notícias
O Acre 

O “Jornal do Commercio” publica os seguintes telegramas’:

Nova York, 28 de fevereiro de 1903: “Ontem e hoje foi assinado nesta cidade o termo de renúncia do “Bolivian Syndicate” a todos os direitos e favores que lhe foram concedidos por contrato firmado, em 11.07.1901, entre o Sr. Felix Aramayo, Ministro da Bolívia, em Londres, e Mr. Frederick Willingford Whitridge, de Nova York, para a administração fiscal, polícia e exploração do Território do Acre ou Aquiri, contrato aprovado pelo Congresso Nacional da Bolívia, e promulgado pelo Presidente Pando, em 21.12.1901. Assinou também o termo, que é bastante longo, o Ministro do Brasil em Washington, Sr. Assis Brasil, o qual, segundo as instruções que recebeu, declarou que o seu Governo não reconhece a validade do contrato de que se trata:

1° Porque o Território é litigioso;
2° Porque pelo contrato o Governo Boliviano concedeu a uma sociedade estrangeira poderes que não podia transferir.

Entretanto, com o fim de evitar controvérsias e liberar a Bolívia de pagamento de indenização muito maior se este negócio fosse liquidado mais tarde, resolveu o Governo Brasileiro desinteressar das negociações diplomáticas entre o Brasil e a Bolívia o mesmo sindicato, aceitando a proposta que este lhe fez de renúncia formal do contrato, mediante a indenização de 110 mil libras, além de mil para advogado e 4 mil para o agente, ou sejam ao todo 115 mil libras, quantia que o Brasil pagaria dentro do prazo de, trinta dias. A negociação com o sindicato foi feita, por parte do Brasil, pelos Srs. Rothschild de Londres, seus agentes, financeiros e pelo Sr. Assis Brasil, servindo de intermediário o delegado do Tesouro em Londres. As instruções do Presidente Rodrigues Alves foram transmitidas para Londres e Nova York pelo Sr. Barão do Rio Branco. O advogado do sindicato, em todo este negócio, foi Mr. Cadwalder, um dos mais afamados deste país, e o do Brasil foi Mr. John Bassett Moore, professor de direito internacional na “Columbia University” desta cidade, autor de obras conhecidas, ex-Subsecretário de Estado durante a guerra com a Espanha e consultor dos comissários que negociaram em Paris a paz com a Espanha. O professor Moore é amigo particular do Barão do Rio Branco desde a missão que o ilustre diplomata brasileiro desempenhou em Washington há cerca de dez anos. (GOYAZ, N° 757)

Imperialismo

O Apuizeiro
(Alexander von Humboldt)

O apuizeiro é um polvo vegetal. Enrola-se ao indivíduo sacrificado, estendendo por sobre ele um milhar de tentáculos. O polvo de Gilliat dispunha de oito braços e quatrocentas ventosas; os do apuizeiro não se enumeram. Cada célula microscópica na estrutura de seu tecido, se amolda numa boca sedenta. E é uma luta sem um murmúrio. Começa pela adaptação ao galho atacado de um fio lenhoso, vindo não se sabe donde. Depois, esse filete intumesce, e, avolumado, se põe, por sua vez a proliferar em outros. Por fim, a trama engrossa e avança constringente, para malhetar a presa, a que se substitui completamente. Como um sudário, o apuizeiro envolve um cadáver; o cadáver apodrece, o sudário reverdece imortal. O abieiro teria vida por pouco. Adivinhava-se um esforço de desespero no mísero enleado, decidido a romper o laço da distinção, mas o maniatado parecia fazer-se mais forte, travando com todas as fibras constritivas o desgraçado organismo, que um arrocho paulatino e inaudito ia estrangulando. E isto irremediavelmente.

Com um facão poder-se-ia despedaçar os tentáculos e arrancá-los. Bastaria, porém, deixar um pequeno pedaço de filamento capiláceo colado à árvore, para que, em renovos, o carrasco recometesse a vítima, que não se salvaria. O pólipo é um polipeiro. Vivem gerações num só corpo, numa só parte, numa só esquírola. Tudo é vida por menor que seja o bloco. Não há reduzi-la a um indivíduo. É a solidariedade do infinitamente pequeno, essencial, elementar, inseparável na república dos embriões sinérgicos. O que fica basta sempre à revivescência, reproduz-se fácil, na precipitação latente e irrefreável de procriar sempre. A copa de pequenas folhas coriáceas e glabas do abieiro sumia-se, quase, na larga folharia da parasita monstruosa. Representava, na verdade, esse duelo vegetal, um espetáculo perfeitamente humano.  

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.12.202I – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, N° 204. Ontem e Hoje – Brasil – Recife, PE – Diário de Pernambuco, n° 204, 07.09.1902.  

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, N° 249. A Conquista – Brasil – Recife, PE – Diário de Pernambuco, n° 249, 31.10.1902.  

GOYAZ, N° 757. Notícias – O Acre – Brasil – Goiânia, GO – Goyaz, n° 757, n° 757, 21.03.1903.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Ditirambos: nos primórdios do teatro grego, o ditirambo era um canto coral em honra à Dioniso ou Baco.